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Sensibilidades e ambivalências

Em trabalho recentemente publicado, o ator e professor Armindo Bião avança um conjunto de pistas da maior relevância para respondermos à indagação proposta acima. Interessado em “definir as características fundamentais que dão sustentação às artes do espetáculo – e à cultura em geral como um todo – na Bahia contemporânea”, esse trabalho se dedica a identificar as matrizes estéticas (aí entendidas como conjunto particular de características sensoriais e artísticas) que, “em contato de transculturação

comunicacional a essas artes e à cultura baiana no seu sentido mais amplo (Bião, 2000, p. 16, grifo nosso).

O primeiro elemento que vamos encontrar compondo o panorama matricial traçado por Armindo Bião corresponde a determinadas características sensoriais presentes na cultura baiana. Duas destas, em especial, são negritadas pelo trabalho. A primeira concerne ao nível de proximidade interpessoal a que as pessoas se permitem. A outra se refere diretamente à questão da percepção sensorial.

Quanto à primeira, o trabalho recorre à proxêmica, uma disciplina dedicada a abordagem semiológica dos dispositivos territoriais. Ou seja, o conjunto dos estudos voltados para a apreensão das relações de espacialidade e territorialidade a partir de “aspectos de contato e de comunicação (logo de diferença e pluralidade) nas relações funcionais de coexistência” (Sodré, 1988b, p. 18). O que está em tela, portanto, é a inteligibilidade da forma social que resulta “dos usos do espaço e dos sentidos em situação de comunicação em diferentes culturas” (Bião, 2000, p. 16).

Nesse caso concreto, a proxêmica nos oferece o resultado de pesquisas de campo realizadas em países e continentes diferentes que constataram, comparativamente, o fato de que alguns povos (os anglo-saxões estariam entre esses) estabelecem suas relações em termos de grandes distâncias pessoais e de um grau reduzido de contato, enquanto que outros (seria o caso tanto dos latinos quanto dos povos que ocupam zonas tropicais ou áreas litorâneas) admitem distâncias pessoais bem menores e um nível elevado de contato. Ou seja, há povos que se tocam mais que outros, que aceitam um nível maior de proximidade interpessoal.

Cremos que não será preciso qualquer esforço para situarmo-nos, os baianos, e confortavelmente, entre aqueles que mais se tocam. E como nos

tocamos ! Dois beijinhos aqui, um cheiro ali, um tapinha nas costas acolá, é assim o cotidiano dos baianos que se conhecem – e, incontáveis vezes, também daqueles que, por acaso, mal se conheceram. Conversamos na fila do banco, do caixa do supermercado ou com o motorista de táxi. Se o ônibus está cheio e estamos sentados, oferecemo-nos para segurar o embrulho ou tomar uma criança ao colo. Abrimos caminho com um sonoro dá licença e, claro, com as mãos, com os braços ou ainda, se for Carnaval e a conselho da canção, a gente mete o cotovelo21. Compomos as multidões que fazem as

festas de rua da cidade, momento e lugar onde tocar e ser tocado/pegar e ser

pegado é quase uma regra e, às vezes, um convite.

O professor Milton Moura (Moura, 2001) revela aspectos essenciais dessa proximidade interpessoal com que os baianos costumam relacionar-se a partir da idéia de “familiaridade”, um dos vetores que esse autor propõe como constitutivo do que chama de “texto da baianidade” e cuja inscrição histórica vemos remontar à sociedade patriarcal. Segundo ele, sob o signo da “familiaridade”, a experiência cotidiana não costuma contabilizar atitudes de “estranhamento radical”, e isso mesmo quando os atores em cena ocupam posições distintas e desiguais. Daí que, “por mais desiguais que sejam em termos de prerrogativas, os indivíduos parecem conhecidos entre si” (Moura, 2001, p. 250) o que faz com que interlocutores distantes resultem ou sejam percebidos como próximos.

Na sua leitura da sociabilidade baiana, Milton Moura descarta, acertadamente, a idéia de uma cidade polarizada entre ricos e pobres, claros e escuros, letrados e analfabetos, de uma cidade dividida por um fosso a impedir qualquer aproximação entre seus opostos. A desigualdade existe, é grande e é fato. Todavia, a experiência dessa desigualdade e o seu reconhecimento se dão a partir de uma “dinâmica complexa de

21 Cf. Caetano VELOSO, Um Frevo Novo (Caetano Veloso, Outros carnavais, São Paulo,

estranhamento e reconhecimento” que põe em movimento “distintos

mecanismos de trânsito, reconhecimento e acomodação” entre os pólos (Moura, 2001, p. 252-253, grifos do autor). Em meio a essa teia de mecanismos emerge a ambivalência como um requisito vital, um expediente indispensável para o enfrentamento de uma sociabilidade constituída em condições de intensas desigualdades e tradicionalmente afeita a práticas de clientelismo e compadrio.

Assim, se a “familiaridade” que preside as relações sociais sugere e mesmo estimula a proximidade interpessoal entre os baianos, esta por sua vez será maior ou menor em função da ambivalência dos movimentos de atração e repulsa e amor e ódio.

Milton Moura captura essa ambivalência que aproxima e distancia interlocutores na sociabilidade baiana em dois trechos de sua tese de doutoramento em que o cientista cede, sem prejuízo, lugar ao cronista.

No primeiro, distância e proximidade remetem ao texto da mestiçagem. [Só a idéia de ambivalência permite que se compreenda haver] prazer em dizer: Minha bisavó era índia, foi pegada de cachorro no mato. O cabelo dela batia aqui... Ou ainda: Meu avô era bem pretinho, pretinho mesmo. Minha avó é que tinha os olhos bem azuis, aí nasceu todo mundo assim cabo-verde lá em casa... A presença do sangue africano ou índio pode ser experimentada como um trunfo, uma garantia de proximidade com aqueles situados em outro patamar social. Da mesma forma, um mestiço de pele mais escura pode mostrar satisfação em dizer: Meu pai era mais escuro, minha mãe era mais clara. Lá em casa, tem uns que puxaram a ele, outros já puxaram o jeito de minha mãe. Minha irmã, mesmo, é quase da cor dela, bem clara... (Moura, 2001, p. 252-253, grifos do autor).

No segundo a ambivalência é registrada no terreno da sensibilidade táctil. É o roçar (ou não) de corpos que está em questão.

Tomemos, por exemplo, uma senhora de classe média que deixa de freqüentar uma praia próxima por considerá-la socialmente poluída. É

um horror aquela multidão, a gente não pode nem respirar. Qualquer conhecedor da sociedade baiana percebe que o motivo do horror não é simplesmente a multidão, mas uma multidão de pessoas mais pobres, escuras e barulhentas. A senhora branca, esposa de empresário, escolhe então uma praia distante e quase deserta, na qual não faltam os personagens negros e pobres: Estou indo agora em Aleluia, é um paraíso. Tem uma baiana ótima, adoro ela. Quando eu vou chegando ela já sabe o que eu quero, é outra qualidade de serviço. Não é necessariamente uma posição falsa da senhora branca; ela ama este tipo de relação com a senhora negra que lhe vende acarajé, contanto que isto não aconteça em meio à aglomeração e ao barulho, estando bem demarcados, na praia, os espaços sociais, inclusive o seu nicho de dondoca. Em contrapartida, a baiana também ama sua cliente, gosta de sua presença e da féria que lhe proporciona, o que não a exime de comentar com alguém de sua extração, quando a freguesa se vai: barona de merda, essa mulher é muito tirada, parece que é melhor do que as outras, pega no acarajé com nojo do azeite mas quer comer... (Moura, 2001, p. 253-254, grifos do autor).

No Carnaval, momento particular e especial da vida baiana, a proximidade, com seus jogos ambivalentes, realiza-se por completo. No território da festa as pessoas se tocam. Melhor, as pessoas se pegam, pois, como bem observa Milton Moura,

O verbo pegar não podia ser mais adequado à dinâmica do encontro de todos os atores do Carnaval de Salvador na rua. Representantes de grupos diferentes se pegam, seja como fricção, seja como contato desejado progressivamente realizado, seja ainda como agressão. Há uma pulsão irresistível pelo pegar. Na zona liminar, cuja configuração mais perfeita é precisamente o meio fio, é como se a cidade toda se tocasse e entrasse em interlúdio consigo mesma. O Carnaval oportuniza, propicia e estimula o máximo de superfície de contato por várias horas durante seis dias contínuos para quem se apresenta neste meio fio geográfico, social e étnico. (Moura, 2001, p. 414, grifos do autor).

A segunda característica sensorial presente entre os baianos, e registrada por Bião (2000) no seu trabalho, deve sua revelação a estudos comparativos centrados em questões urbanísticas e lingüísticas, os quais sugerem uma correlação entre a organização físico-arquitetônica de determinado espaço e determinadas formas de percepção sensorial. Assim, a

percepção visual seria bastante para captar a organização mais “racional” que vamos encontrar em jardins de estilo francês ou inglês, enquanto que os jardins japoneses, com seus jogos de sombra e luz e seus obstáculos a uma apreensão exclusivamente visual, exigiriam para ser integralmente gozados um espectro sensorial mais amplo que incluísse, por exemplo, as sensibilidades térmica e olfativa. Pensando a questão em termos baianos, Bião (2000, p. 17) invoca o espaço dos terreiros de candomblé como uma forma social que, à semelhança dos jardins japoneses, são “mais organizados em função da imaginação, do simbólico e da vivência multissensorial”.

As duas matrizes já identificadas caracterizariam, por assim dizer, especificidades de uma sensibilidade baiana. A primeira dá conta do grau elevado de proximidade interpessoal com que as relações se estabelecem na Cidade da Bahia. A segunda informa da multissensorialidade que alimenta os processos de percepção dos baianos – característica, aliás, sumamente valorizada no mundo contemporâneo, organizado cada vez mais a partir da conexão em rede de novas formas de sociabilidade marcadas por televivências e cibervivências.