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As observações que temos vindo a fazer sobre língua, religião e festa não deixam margem a dúvidas quanto ao grau de imbricação que esses elementos experimentam no traçado da cultura baiana. Conformam, os três, um amálgama de relações tão intrincadas quanto indissociáveis.

Logo, se o barroco é parte indissociável da matriz luso-católica, o que costumamos chamar genericamente de cultura negra (aqui no sentido mais especializado da expressão, ou seja, referido diretamente ao universo de atividades artísticas) só pode ser compreendida a partir dos cultos trazidos pelas marés africanas acionadas pela escravidão. Quanto a isso, que ninguém duvide. É certo que o primeiro canto negro que se ouviu por aqui foi em louvor a alguma divindade. Talvez os que o entoaram quisessem agradecer às suas divindades o fato terem sobrevivido ao horror da travessia; muito certamente, também, não deixaram de pedir forças pra suportar, resistir, lutar. Força para se manterem física e culturalmente vivos, o que pressupunha que viva também se mantivesse a memória da terra que ficara do outro lado do oceano.

Vejamos o que diz a respeito Muniz Sodré:

o patrimônio simbólico do negro brasileiro (a memória cultural da África) afirmou-se aqui como território político-mítico-religioso, para sua transmissão e preservação. Perdida a antiga dimensão do poder guerreiro, ficou para os membros de uma civilização desprovida de território físico a possibilidade de se ‘reterritorializar’ na diáspora através de um patrimônio simbólico consubstanciado no saber vinculado ao culto dos muitos deuses, à institucionalização das festas, das dramatizações dançadas e das formas musicais (Sodré, 1988b, p. 50).

Preservação e transmissão do patrimônio simbólico, reterritorialização,

ressocialização53 foram possibilidades jamais afastadas pelos povos da

diáspora africana, em que pesem, como é evidente, as diferentes estratégias utilizadas e a eficácia alcançada em cada caso, face às condições sócio- históricas do lugar e do momento determinados.

Nestes termos, por conseguinte, recusamos em absoluto a visão elitista tradicional – e que ainda hoje informa muitos trabalhos sobre a escravidão e

sobre os negros nas Américas54 – do negro como vítima, como um ser sem

história e sem cultura. Os povos da diáspora africana foram sujeitos ativos e vitais de sua própria história. Arrancados da sua terra, dessocializados, foram trazidos compulsoriamente para o Novo Mundo no maior movimento migratório jamais visto na história. Aqui chegaram como peças humanas para serem meras máquinas produtivas. Recusaram, entretanto, a condição de indivíduos absolutamente reificados e derrotados pelo poder da sociedade senhorial. Não houve passividade. O que houve foi resistência e luta. E nessa

53 O termo “reterritorialização”, fomos busca-lo a Sodré (1988b). Já a expressão

“ressocialização” aparece no nosso texto querendo significar um contra-movimento à “dessocialização”, noção de que se utiliza a professora Kátia Mattoso (Mattoso, 1981) para descrever e caracterizar o trauma experimentado pelos povos africanos da diáspora.

54 O historiador Ciro Flamarion Cardoso, por exemplo, importante estudioso da questão da

escravidão africana nas Américas, num dos seus trabalhos, ainda que leve em conta a necessidade de se escrever uma história da escravidão “do ponto de vista do escravo”, mantêm o freio de mão puxado. Mostra-se cético quanto a determinados estudos sobre quilombos e revoltas que têm acentuado o papel do negro como sujeito ativo de suas lutas. Ciro Flamarion enxerga neles um certo “jacobinismo negro”, resultado de “alguns excessos interpretativos ufanistas” (Cardoso, 1982, p. 8-9), e nós enxergamos em Ciro um equívoco. E isto porque o seu ceticismo tem por base uma concepção da história do negro como uma “história do silêncio” – é esse o título dado por Cardoso ao texto de abertura do referido trabalho e que foi tomado por empréstimo a um livro publicado sobre o assunto na França. Segundo ele, na história do sistema escravista no Novo Mundo, “Os escravos permanecem mudos, exceto raríssimas exceções”. O que é uma afirmação verdadeira, se considerarmos que boa parte da historiografia sobre esse assunto refletiu o ponto de vista do colonizador. Mas que perde validade quando se pretende explica-la tomando em consideração o fato de que “a maioria absoluta dos escravos, e muitos dos libertos, não sabiam ler nem escrever” (Cardoso, 1982, p. 7). Argumentos dessa natureza, não deixam de expressar, consciente ou inconscientemente, uma atitude preconceituosa sobre a importância das culturas que privilegiam a oralidade face àquelas que, como era o caso da cultura do colonizador, dominam a escrita. E, desse modo, acabam por afastar a possibilidade de considerar que a preservação do patrimônio simbólico dos povos da diáspora africana representa não só o mais importante testemunho da sua história como um dos elementos centrais que explica a nossa aventura como povo e cultura.

perspectiva, alcançaram uma vitória espetacular: participaram ativa e criativamente na construção das sociedades que vingaram nas Américas, impregnando-as, para sempre, com os marcos mais vistosos de sua cultura.

Compreender esse processo exige que se dê conta de que mesmo numa sociedade profundamente autoritária como a escravista, havia espaços para os negros assumirem-se como indivíduos capazes de desenvolver táticas de resistência física e cultural, criando e reinventando permanentemente práticas e instituições. E não se trata apenas de considerarmos os processos de resistência dos escravos à escravidão – lembrando, sempre, que o primeiro e mais destacado combatente contra a escravidão foi o escravo. Como adverte o historiador João Reis, o que está em jogo é algo mais amplo e complexo, embora de uma evidência cristalina:

o escravo africano soube dançar, cantar, criar novas instituições e relações religiosas e seculares, enganar seu senhor, as vezes envenená-lo, defender sua família, sabotar a produção, fingir-se doente, fugir do engenho, lutar quando possível e acomodar-se quando conveniente. Esse verdadeiro malabarismo histórico resultou na construção de uma cultura da diáspora negra que se caracteriza pelo otimismo, coragem, musicalidade e ousadia estética e política incomparáveis no contexto da chamada Civilização Ocidental. Claro, não foi fácil. Quando o profeta do reggae, o recentemente morto Bob Marley, canta ‘Nós somos os sobreviventes negros’, ele coloca admiravelmente em perspectiva, talvez melhor que um exército de historiadores, que não foi fácil sequer sobreviver, mas para isso foi preciso muita luta. E se viver é lutar, sobreviver e ainda criar uma cultura com a expressão de liberdade que a cultura negra possui, é lutar dobrado (Reis, 1983, p. 107-108).

E é ainda João Reis que indaga: “como poderia um povo que inventou o jazz, o rock, o reggae, o samba e o afoxé ter tido um passado passivo?” (Reis, 1983, p. 108). Assim, ver o negro como um derrotado, uma vítima, um coitado, é não se dar conta de algo que ao próprio negro não passou em branco. E isto porque, mais do que ninguém, lembra a bela canção já citada

anteriormente, “o povo negro entendeu / que o grande vencedor / se ergue além da dor”55.