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Na apreciação do que foi a Bossa Nova, toda reflexão nunca pode se restringir apenas ao seu elemento musical, ainda que a sua face mais visível tenha sido de fato as mudanças ocorridas na música popular. Isso porque, paralelamente à atividade musical, o tempo de surgimento da Bossa Nova foi também um tempo de transformação histórico-cultural, cujos desdobramentos chegam-nos até hoje.

Todos aqueles acontecimentos dos anos 1950 permitiram que se sonhasse com uma nova era para o Brasil. O ímpeto desenvolvimentista parecia ser a base sobre a qual todos os equívocos do passado poderiam ser de uma vez suplantados em prol de uma era de prosperidade e valorização do brasileiro. O estrangeiro exalta a

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Há vários rascunhos da música na série Produção Intelectual do Titular, incluindo alguns registros na subsérie Cadernos de anotações.

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Há também uma correspondência oficial da Sinatra Enterprises, assinada por Serge Weiss, de 16 de fevereiro de 1973.

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criatividade brasileira: a criatividade musical, futebolística, arquitetônica. O Brasil é agora o Brasil de um Pelé e de um Garrincha, de um Tom Jobim e de um João Gilberto, variações de um mesmo matiz: a potencialidade do homem brasileiro. Para Nelson Motta, essa foi “uma época de liberdade, de democracia, de entusiasmo. O governo JK, a construção de Brasília, indústria automobilística… era um clima maravilhoso. Além de todas as coisas naturais do Rio, as praias… A Bossa Nova foi a trilha sonora perfeita para aquele momento.” (DIRECTV, 2006)

O termo “Bossa Nova” sempre ultrapassou o cenário musical, possuindo utilizações das mais variadas, retratando, em cada uma delas, especialmente um estado de espírito. Assim é que um presidente da República podia ser, ao seu modo, o “presidente Bossa Nova”. A bossa, gíria jovial há muito usada na linguagem coloquial, significava uma moda, uma onda. Se é verdade que foi a cena musical que elevou o termo Bossa Nova até o ponto dele se tornar uma referência de toda uma época, cumpre um breve registro da origem desse termo. Quando se dizia, “fulano tem bossa para isso ou aquilo”, ainda que hoje este emprego tenha sido diminuído, se queria dizer: ele tem uma inclinação especial para isso que se propõe a fazer; possui uma maneira ou uma qualidade especiais para tal. Assim, Bossa Nova, do ponto de vista musical, surge como o cotejamento entre jeitos diversos de fazer música, sendo ela, um jeito novo. O novo aí não quer dizer ruptura absoluta, mas sim incorporação do antigo da cena musical anterior à Bossa Nova. Segundo Zuza Homem de Mello, havia dois gêneros musicais que conviviam nessa época: “um mais ligado aos rádios, que imperava, era o baião. E o outro, era o samba-canção, principalmente no Rio” (DIRECTV, 2006). Os grandes cantores do rádio (Emilinha, Silvio Caldas, Marlene, Orlando Silva) não se importavam com aqueles garotos, que se sentiam “modernos”, que queriam modificar tudo e procurar novidades. A música norte-americana também estava cheia de novidades: Gerry Mulligan, Gizzy Gillespie, Duke Ellington… O jazz atraía essa rapaziada. Os primeiros foram: Johnny Alf, Dick Farney e Lúcio Alves, que serviram de inspiração para começar uma grande revolução na história da música brasileira. Segundo o próprio Johnny Alf, todo o movimento foi despretensioso, seguindo apenas a inspiração de cada um: “a inspiração que eu tive, talvez, foi por um modo de ver diferente. Eu não sabia que era um negócio que ia marcar, porque a inspiração […] vem de repente. Não posso dizer: vou fazer isso, fazer aquilo. E, de repente, você faz um negócio que vai marcar…” (DIRECTV, 2006).

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Desde o fechamento dos cassinos, no Rio de Janeiro, em 1946, as boates (Hotel Plaza, Beco das Garrafas) se tornaram opção para a classe média. As músicas feitas dessa época até 1956 foram específicas para esse público e estabelecimento: era a música romântica tocada por grupos recentes: Namorados da Lua, Os Cariocas e Os Anjos do Inferno.

Há contradições no que diz respeito ao marco inicial da Bossa Nova no âmbito musical: alguns apontam o disco de Sylvia Telles, A revelação de 1955 canta “Foi a noite” e “Menino”; outros, o LP Canção do amor demais (1958), de Elizeth Cardoso, com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes; ou ainda o disco Chega de saudade, de 1959, o primeiro de João Gilberto. Entretanto, importa dizer que eles criaram, definitivamente, a ponte pela qual o samba tradicional é incorporado por uma nova marcação rítmica, um novo tom para dizê-lo. Elizeth também participou do Chega de saudade, mas João Gilberto lhe pediu que ajustasse o ritmo que ela usava à batida do violão que ia dar. E gravaram perto de vinte vezes a mesma música! O impacto do LP foi enorme — ficaram registrados pequenos depoimentos no conjunto que a TV Directv reuniu para homenagear o movimento, em 2002: Zuza Homem de Mello disse que “nunca tinha ouvido aquilo. Parecia um som extraterrestre”; já para Nelson Motta, o LP do João Gilberto

está para minha geração de músicos e poetas brasileiros como para os americanos estava ‘onde você estava no dia em que mataram Kennedy?’. Para nós, é ‘onde você ouviu

Chega de saudade pela primeira vez?’. Ele combinou a sua voz ao violão perfeitamente. E

ficou constituído o tripé da Bossa Nova, a santíssima trindade. E o João Gilberto é o espírito santo! (DIRECTV, 2006).

As críticas, como sempre, também vieram: para o acompanhamento especial da bateria, que necessitava da caixeta, um instrumento criado pelo músico Guarany; para a voz desafinada de João Gilberto, e para a necessidade de regravação. Além disso, André Midani relata que na hora de apresentar o disco para os dirigentes da Odeon, eles ouviram e disseram: “mas isso é música para homossexual, rapaz”! Os críticos Antonio Maria e José Ramos Tinhorão também fizeram campanhas sistemáticas contra o movimento.

A diversificação da economia, promovida pelo governo de Juscelino Kubitschek, com o implemento de novos meios de produção, alcança a ainda

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incipiente indústria de bens culturais. A produção musical e a veiculação das músicas, cada vez mais, pertencem agora ao mundo da técnica. É nesse cenário que a Bossa Nova surge e encontra terreno fértil para sua propagação.

Em 1962, a Bossa Nova já era um fenômeno internacional. O show do Carnegie Hall, em Nova York, se destaca como o momento em que a bandeira brasileira da Bossa Nova é hasteada na América. Tom Jobim, João Gilberto, Luís Bonfá, Carlos Lyra, entre outros, participam do evento, que lota a prestigiosa casa de espetáculos nova-iorquina e é transmitido, ao vivo, pelo rádio. O sucesso internacional, a fama de seus principais representantes, o vigor extraordinário da música, tudo isso já colocava a Bossa Nova à frente de quaisquer modismos. As propagandas disseminaram slogans para óculos e sapatos, além de “Bossa Nova em máquina de lavar e refrigeradores”, etc. Essas utilizações buscavam chamar atenção para a originalidade e inovação dos produtos que eram então apresentados.

Mesmo que antes da década de 1950 outros compositores fossem jovens bem formados culturalmente e fizessem sambas38, seu jeito de agir não configurou um movimento. A Bossa Nova foi uma revolução dos jovens que queriam fazer música para jovens como eles. Segundo Tárik de Sousa:

Eu acho que a Bossa Nova trouxe um questionamento. Quer dizer, ela pensa a música brasileira ao mesmo tempo em que ela faz a música brasileira — ela pratica e teoriza sobre ela e instala o pensamento reflexivo sobre a arte de fazer música. Eram músicos e pessoas bem-humoradas. Por exemplo, “Desafinado” é uma música perfeitamente harmônica, que torna impossível a desafinação. É uma música divertida, sutil, traz bem-estar, leveza, suavidade… Não é pra pensar em nada, só aproveitar. (DIRECTV, 2006).

Os convites de gravadoras rivais começaram a separar os grupos e parceiros. Além disso, o Brasil passou por outras grandes transformações políticas em apenas três anos: renúncia de Jânio Quadros, posse de João Goulart, referendo parlamentarista, agitação política, criação dos CPCs, e finalmente, instalação da ditadura. A maioria dos artistas debandou do país e aos que ficaram, restava mascarar sua insatisfação.

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A Bossa Nova começou por volta de 1956 e foi até o começo dos anos 60. Tom Jobim (LOYOLA, 1988, p. 38)

O termo “bossa” sempre foi usado no sentido de onda, moda. Embora o termo possa ser requisitado por muitos outros pais, desde que Tom escreve na contracapa do LP Chega de saudade o elogio a João Gilberto, “esse baiano Bossa Nova”, e a expressão cai no gosto da imprensa, que a populariza como sinônimo de todo um movimento musical: “muita gente se intitula pai do termo Bossa Nova, mas isso era comum, estava no ar. E isso você deve a Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Noel Rosa, claro” (Acervo ACJ, K7-147). Vale lembrar que o termo “bossa nova” ampliou-se para todos os segmentos da sociedade que puderam ser aproveitados pela propaganda e que nas palavras de Tom: “muitas vezes dar nome às coisas provoca uma imensa confusão. Tinha advogado bossa nova, geladeira bossa nova… perdeu o sentido, se tornou uma palavra praticamente imprestável” (Acervo ACJ, K7-147).

Em 1958, Tom conhece João Gilberto e logo propõe que façam um disco juntos. Convite aceito, durante meses trabalham naquele que seria o disco inaugural da Bossa Nova: Chega de saudade. O importante aqui não é exatamente marcar o início desse movimento, mas as mudanças que o movimento trouxe para o cenário da música e, mais amplamente, para a sociedade. As músicas de então falavam de uma musa inatingível ou eram paródias sobre mulheres ingratas, “amores bandidos”, cantados em sambas-canções ou boleros e valsas. A Bossa Nova implicou uma nova visão sobre o amor, novos acordes dentro de uma batida mais leve e diferente, e uma voz mais suave, propostos por João Gilberto naquele seu primeiro LP, visto que

a modificação não foi só na batida. Você encontra aquela batida em outros lugares anteriores a João Gilberto. Mas quem fez o negócio funcionar foi o João. Ele trouxe também a maneira de cantar, a maneira de emitir uma outra concepção pro negócio todo. E aquilo se desenvolveu. […] A música brasileira sofria de excessos de acompanhamentos: na regional tem três violões… funciona ao

50 vivo, num bloco, mas a Bossa Nova viu que não podia gravar assim. […] Hoje estamos tendendo para uma música mais barulhenta (Acervo ACJ, K7-147).

Percebeu-se a necessidade de menos instrumentos e menos banda, pois os músicos queriam viabilizar suas gravações e tinham que “limpar um pouco” a melodia, diminuir os grupos: “um banquinho, um violão”, como na letra de “Corcovado”. Tom dizia que a Bossa Nova tinha “raízes seríssimas” no samba (e não no jazz), e que influenciou muito mais o jazz que o contrário, por conta da nossa maior “variedade de temas. Mas, nós temos a cultura do ‘deixa pra lá’ e os EUA, a cultura do ‘venha a nós’”. (Acervo ACJ, K7-147). Segundo Tom, a Bossa Nova nunca foi classista, como alguns críticos determinaram: aqueles jovens queriam mostrar sua leitura dos sambas do morro, falando sobre os temas que viviam: “não sabíamos que estávamos fazendo música para Zona Sul ou Zona Norte. Só queríamos fazer música!” (Acervo ACJ, K7-147).

Essas músicas que eu fiz eram músicas locais. Nunca pensei que fossem tocar lá fora. Eu vivia aquela vida na fila do lotação. A fila dava a volta no quarteirão ali na Graça Aranha e a gente para voltar para casa era aquele cheiro no ônibus, aquele ar poluído. Depois do ônibus vieram os lotações. Não havia entre nós, eu e Vinicius, uma preocupação de elite. Nada disso. Pelo contrário. A preocupação era buscar o samba do preto, da Bahia, de Dorival Caymmi, de tudo o que fosse uma coisa ligada à terra. Se você faz direito a coisa local, ela vai embora. Agora, se você ficar tentando copiar o foxtrote americano, você será sempre um copista39.

Em 1960, foi escolhido pelo presidente Bossa Nova, Juscelino Kubitschek, junto com Vinícius de Moraes, para compor Brasília: sinfonia da Alvorada, por conta da inauguração da cidade.

Pouco tempo depois, participou do III FIC, com a música “Sabiá”, em parceria com Chico Buarque. O Festival Internacional da Canção (FIC) foi concebido por Augusto Marzagão e exibido pela TV Rio, no ano de 1966, e pela TV Globo durante os anos de 1967 a 1972, totalizando sete edições. As gravações eram feitas no

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Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial.

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Maracanãzinho e reuniam multidões. A canção classificada na fase nacional representaria o Brasil na fase internacional merecendo o prêmio Galo de Ouro (ALBIN, 2008) 40. O público de 25 mil pessoas do III FIC passava pela segunda ditadura militar e conseguia ver nas músicas concorrentes, um meio de se manifestar contra o regime vigente. Por causa disso, a 29 de setembro de 1968, a música “Sabiá” foi vaiada durante 23 minutos. Era sua segunda parceria com Chico Buarque, e foi interpretada por Cinara e Cibele. Embora Tom estivesse sozinho no dia da vaia, pediu ajuda ao amigo, por telegrama, que partiu de Veneza na mesma hora. O dia seguinte era de concorrência internacional: “Sabiá” venceu e foi finalmente aplaudida, tendo sido a primeira das duas únicas vezes41 que uma canção brasileira venceu a parte internacional. Tom e Chico estavam, juntos, assistindo. Anos mais tarde ele comenta “Eu não acredito muito na multidão. […] O que foi mais duro naquele festival foi ganhar a parte nacional — duro é você ser Garrincha, duro é você ser Pelé porque lá fora você ganha fácil. Aqui, as vaias se repetem.” (Acervo ACJ, E14). O que Tom Jobim só compreendeu anos depois foi que as vaias nada tinham a ver com a letra ou melodias perfeitas da música. O problema foi a concorrente, “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, que tinha cunho político, muito mais próximo do que os jovens da época queriam dizer. Inclusive, logo após, a música teve sua execução proibida, acusada de ofender a instituição pública, principalmente nos versos: “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam antigas lições / de morrer pela pátria e viver sem razão”.