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A demografia e os movimentos populacionais

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 31-35)

No início do século XIX, os principais grupos linguísticos e culturais que compunham a população da África haviam se estabelecido há muito tempo

3 Ver a tentativa de I. Hrbek em 1965 (publicada em 1968): “É surpreendente o número de acontecimentos de grande alcance ocorridos na África entre 1805 e 1820; ainda que não tenham ligações entre eles, constituem um movimento distinto na história da África.” Ele cita as jihad dos fulbe da África Ocidental, o levante dos zulus e o do Buganda, a fundação do Egito moderno por Muhammad ‘Ali, a expansão do Imerina em Madagascar, o levante dos omani em Zanzibar e a abolição do tráfico de escravos. Ver I. Hrbek, 1968, p. 47 -48. Os historiadores, que almejam doravante por uma síntese aplicável a todo o continente, acreditam, muitas vezes de forma simplificadora, que a explicação global reside na integração progressiva da África à economia global.

4 T. Hodgkin, 1976, p. 7, a respeito do ponto de vista daqueles que ele chama “os sábios administradores imperialistas”.

5 Essa seção inspira -se em grande parte de dois capítulos da presente História, escritos respectivamente por J. Vansina (cap. 3, vol. V) e J. C. Caldwell (cap. 18, vol. VII).

nos diferentes territórios dos quais reivindicavam a posse. Na maior parte do continente, essa partilha havia se findado antes do século XVII. No século XIX, os diferentes grupos, após terem assentado suas posições, haviam alcançado uma certa estabilidade. Nos séculos XVII e XVIII, foi apenas no Chifre da África e na África Oriental (com exceção do centro da região dos Grandes Lagos), bem como em Madagascar, que importantes migrações ocorreram rumo a regiões relativamente pouco povoadas. Mesmo nessas regiões, as populações haviam atingido, no início do século XIX, uma estabilidade que implica o domínio do espaço.

Entenderemos aqui por migração o deslocamento extraordinário de um grande número de pessoas em vastos territórios e durante um longo período. Os deslocamentos regulares efetuados, a fim de garantir sua sobrevivência, por cria- dores de animais transumantes, por cultivadores praticantes de culturas alterna- das, por caçadores e aqueles que vivem da colheita, que percorriam determinados territórios à procura de caça, de mel ou até de palmeiras das quais comiam as frutas, por pescadores que seguiam as migrações sazonais dos peixes, por merca- dores e artesãos especializados, como os ferreiros, que exerciam sua atividade em colônias longínquas, todos esses deslocamentos ainda ocorriam, mas geralmente não implicavam uma mudança definitiva e não apresentavam o caráter de uma migração, no sentido que demos à palavra. Todavia, a pressão demográfica ligada ao tipo de uso das terras, muitas vezes resultante de um crescimento popula- cional normal durante um período de relativa prosperidade, ou a imigração provocada por vários fatores – guerra, desmoronamento dos sistemas políticos, seca prolongada, epidemia ou outra catástrofe natural – podiam acarretar pro- cessos de expansão progressiva. Ocorreu um grande número dessas expansões no século XIX. Algumas, como a dos fang na zona das florestas equatoriais, desencadearam -se em função de movimentos anteriores ao século XIX; outras, como a dos chokwe de Angola, foram provocadas pela modificação das relações comerciais no século XIX. Os movimentos populacionais de maior amplitude eram ligados ao declínio ou ao avanço dos sistemas estatais. Limitavam -se a uma região, como aquele que se seguiu à queda do Antigo Oyo na parte ioruba da Nigéria Ocidental, ou se estendiam em toda uma parte do continente, como aquele dos nguni do Norte que, na África Austral, se seguiu ao Mfecane. As populações em movimento muitas vezes tiveram que ocupar e cultivar terras que, até então, haviam sido consideradas de qualidade inferior, e, por conseguinte, desenvolver culturas e técnicas agrícolas adequadas a seu novo meio.

Estima -se habitualmente em 100 milhões de habitantes a população total da África no início do século XIX. Este número é arbitrário, pelo menos em parte,

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África no início do século XIX: problemas e perspectivas

e resulta de uma extrapolação fundada nos poucos dados demográficos relativos ao período posterior a 1950. Tal estimativa pode se revelar muito diferente do número real. Porém, do ponto de vista histórico, as questões essenciais referem- -se menos ao número exato da população do que às tendências demográficas e às suas relações com os sistemas econômicos, a atividade agrícola e a repartição geográfica da população em relação aos recursos do solo.

Em virtude da organização da agricultura, do grau de desenvolvimento das técnicas e da higiene, bem como da forte mortalidade infantil causada pelas doenças, os demógrafos supõem geralmente que a população total não podia aumentar muito. O crescimento anual teria se situado habitualmente na faixa dos 0,5% (ao passo que alcança atualmente entre 2,5 e 3,5%), ou seja, cada ano, o número dos nascimentos teria ultrapassado o dos óbitos de 50 por mil habi- tantes. A população teria assim duplicado em um milênio. Na África do Norte, visto que a população permanecia estável e que se praticava uma agricultura intensiva, e a irrigação nas regiões férteis, principalmente nos oásis, a população aumentava regularmente durante os períodos de prosperidade. Entretanto, tudo indica que esse crescimento não compensava as secas e as epidemias, de modo que a população podia dificilmente permanecer estável. Nas pastagens do Sudão, da África Central e Austral, as populações transformavam constantemente suas técnicas. Elas associavam a criação ao cultivo do solo ou praticavam diver- sos tipos de agricultura mista, capazes de garantir a subsistência da crescente população. Os habitantes das regiões mais arborizadas também desenvolveram tipos de agricultura permitindo o crescimento demográfico. No século XVIII, a população atingia uma forte densidade em regiões como a Baixa Casamansa, o país dos igbo no Sudeste da Nigéria, as pastagens de Camarões e a região dos Grandes Lagos da África Oriental. Contudo, acrescentando -se às catás- trofes naturais, o tráfico de escravos e as guerras mortíferas por ele acarretadas causaram perdas demográficas de grande escala e, notadamente, a diminuição, durante um longo período, do número de mulheres em idade de procriar. Tais perdas fizeram com que a população total da África diminuísse nos séculos XVII e XVIII. Esse despovoamento, desigualmente repartido, atingiu de forma mais ampla aqueles que eram menos capazes de se defender, então concentrados no oeste e no centro -oeste da África.

Ainda não se analisaram todos os efeitos desse despovoamento. As hipóteses a seu respeito continuam a alimentar uma viva controvérsia6. Considera -se hoje

que o crescimento rápido da população, associado a recursos escassos e a uma produtividade limitada, é uma das principais características do subdesenvolvi- mento7. Porém, isso apenas se verifica no caso de economias interdependentes.

No caso das economias relativamente independentes do início do século XIX, foi sobretudo o subpovoamento que constituiu um fator de subdesenvolvi- mento. Tudo indica que algumas comunidades africanas, ao compará -las com suas vizinhas, tiraram proveito do tráfico de escravos. Conseguiram conservar sua capacidade de resistência ao explorar a fraqueza de outras comunidades. Assim fizeram durar sua prosperidade o tempo suficiente para implementar sólidos sistemas econômicos, nos quais o crescimento demográfico aumentava a produtividade e garantia o desenvolvimento. É, contudo, provável que essas mesmas comunidades tenham sofrido do empobrecimento de suas vizinhas e da insegurança que reinava em suas fronteiras. Nenhuma sociedade ou econo- mia poderia ter escapado do traumatismo e do desalento geralmente causados pelas consideráveis perdas demográficas acarretadas pelo tráfico de escravos e as guerras correlatas8. O tráfico parece fornecer a melhor explicação pelo fato de a

África, entre todos os continentes, ter tido as mais instáveis e frágeis estruturas políticas e econômicas do século XIX. As fronteiras dos Estados e os centros administrativos deslocaram -se aparentemente ao ritmo de uma constante flutu- ação. Se considerarmos os métodos e as técnicas em uso na época, os agricultores não teriam tirado o melhor proveito da maioria das terras.

O século XIX não alterou de vez a situação demográfica em seu conjunto. A campanha em favor da abolição do tráfico só produziu seus efeitos de forma demorada. De início, o processo de abolição resultou menos na redução da exportação de escravos do que na concentração do tráfico em um número redu- zido de portos. Lenta no início, a queda nas exportações tomou, após 1850, proporções consideráveis. Porém, o tráfico rumo a Zanzibar e ao Oceano Índico aumentava à medida que diminuía o das Américas. Ademais, o crescimento das exportações que substituíram o tráfico fez com que, na própria África, se precisasse de um número muito maior de escravos para conseguir marfim, para recoltar o óleo de palma, os amendoins, o mel, os cravos -da -índia e, mais tarde, a borracha e o algodão, bem como para transportar todos esses produtos. O século XIX assistiu, portanto, ao crescimento considerável do tráfico interno e do trabalho servil, o que teve desastrosas consequências sobre os procedimen- tos de exploração. Alguns historiadores afirmam que a população diminuiu

7 L. Valensi, 1977, p. 286. 8 J. E. Inikori, 1982b, p. 51 -60.

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África no início do século XIX: problemas e perspectivas

pela metade, no período de uma geração, em determinadas regiões de Angola antes de 1830, e da África Central e Oriental pouco após 1880. Entretanto, a abolição da escravidão permitiu parar com a deportação maciça dos africanos. Tudo indica que, no começo do século XIX e pela primeira vez desde o século XVII, a população tendeu a crescer no conjunto do continente9. Esse movimento

acentuou -se entre 1850 e 1880, depois declinou um pouco no início da colo- nização, antes de prosseguir, lentamente de início e depois em um ritmo mais acelerado, a partir dos anos 1930. Esse crescimento demográfico do início do século XIX, devido a fatores tanto internos quanto externos, foi, por si mesmo, um importante fator de mudança, particularmente em regiões que, como a África Oriental e Austral setecentista, não foram atingidas, ou muito pouco, pelo tráfico de escravos.

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