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Os impulsos internos

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 51-55)

O Mfecane, considerado uma das principais causas das grandes mudanças na África do século XIX, explica -se em primeiro lugar pela maneira com que o desenvolvimento social e econômico se adaptou, antes do século XIX, à evolução histórica. O exame minucioso dos dados de que dispomos atualmente desmentiu todas as tentativas de explicação global ligando o Mfecane à presença dos euro- peus no Cabo, à crescente influência da economia pastoril capitalista praticada pelos trekboers, ou à atração pelo comércio estabelecido pelos portugueses na baía de Delagoa. Os impulsos na base do Mfecane vinham principalmente da própria África. Isso também se verifica no que diz respeito a outros grandes acontecimentos do início do século XIX, tais como as reformas de Muhammad ‘Ali e as jihad da África Ocidental.

O movimento nacional que levou Muhammad ‘Ali ao poder e do qual este último, graças a sua habilidade, soube permanecer o inspirador e dirigente, foi muitas vezes atribuído ao abalo causado pela “missão egípcia” de Bonaparte. Trata -se, contudo, de uma concepção errônea, como o mostra A. Abdel -Malek em seu capítulo intitulado “O renascimento do Egito (1805 -1881)”: “O século XVIII egípcio aparece como um laboratório do que seria o Egito renascente27

O sentimento nacional sustentado pela elite egípcia nas grandes cidades, em especial Cairo e Alexandria, e pelos shaykh e os ‘ulamā nos centros islâmicos como al -Azhar, deu origem às revoltas de outubro de 1798 e de abril de 1800, enfraquecendo a posição dos franceses e provocando sua partida. O mesmo movimento derrotou a tentativa dos mamelucos pró -otomanos para restabele- cer seu domínio sobre o Egito. Portanto, foi o sentimento nacional egípcio que permitiu as reformas de Muhammad ‘Ali e explica a vontade deste último e de seu filho de dar ao Egito um governo verdadeiramente nacional, independente tanto do sultão otomano, quanto dos europeus, e capaz de administrar um império afro -árabe.

Essa vontade de renovação e de reforma manifestou -se também junto aos diferentes soberanos que tomaram parte da aventura do Mfecane, ou que ten- taram restaurar o Império da Etiópia, ou entre os shaykh do Sudão Central e Ocidental, que tiraram das tradições do islã os princípios de uma reforma social e política. Em grande parte graças aos escritos que deixaram os combatentes da

jihad e os viajantes europeus, temos um conhecimento suficiente do conjunto

de forças e ideias que provocaram essa série de movimentos revolucionários, iniciada, no século XVIII, no Futa Toro, no Futa Djalon e no Bondu para terminar, no século XIX, em Sokoto, no Macina e em Dinguiraye. É, portanto, inútil tentar avaliar o lugar ocupado pela economia europeia neste conjunto de forças e ideias: mercantilismo na época do tráfico negreiro, ou capitalismo na época da abolição da escravidão e das viagens de descoberta. A jihad rece- beu seu impulso dos próprios africanos. Os soberanos que tomaram parte da

jihad esforçaram -se para desenvolver a produção agrícola, tanto nas explorações

familiares tradicionais, quanto nos grandes domínios explorados por escravos ou por clientes. Também incentivaram a indústria e o comércio. Melhoraram as rotas comerciais e a segurança dos comerciantes. A imensa maioria das mer- cadorias que circulava ao longo dessas rotas era destinada ao comércio local e regional, mas os chefes da jihad também criaram rotas para os mercadores que atravessavam o Saara e para os peregrinos que iam ao Sudão Oriental, ao vale do Nilo e a Meca. É cada vez mais evidente que, mesmo antes da retomada oitocentista do comércio com os europeus, essas medidas relativas ao comércio interno implantaram rotas comerciais que atravessavam todo o continente28.

Claro, os europeus rapidamente tomaram conhecimento do resultado dessas medidas, das quais se apressaram em tirar proveito. Pelo fato de não disporem de documentos igualmente numerosos a respeito das regiões situadas mais ao Sul, os historiadores caíram com mais frequência na tentação de superestimar a influência que teve sobre a economia do Antigo Oyo a participação desse Estado no tráfico negreiro, no século XVIII, por intermédio da região dos egba e de Porto -Novo29. Até agora, contudo, essas hipóteses sobre as consequências

da abolição da escravatura não conseguiram explicar a derrocada das bases eco- nômicas, políticas, religiosas e sociais do império, nem as numerosas tentativas feitas no século XIX no intuito de alicerçar novas estruturas em diversas ideias políticas e religiosas. É mais provável que, como nos Estados onde foi travada a jihad, essa derrocada tenha como causas fundamentais o descontentamento dos súditos e seu desejo de reformas; as causas secundárias, por sua vez, foram a penetração do pensamento muçulmano e a jihad de Sokoto, mais do que o trá- fico ou sua abolição. As guerras, as migrações, a exploração de regiões até então

28 Ver por exemplo P. D. Curtin e al., 1978, cap. 14.

29 R. Law, 1977, em particular nas p. 217 -236, recapitula todos os documentos disponíveis, mas ele tem tendência a exagerar a influência do comércio em geral, e do tráfico em particular, sobre a economia do Antigo Oyo. Ver na página 255: “É provável que o desmoronamento do tráfico nos anos 1790 tenha reduzido consideravelmente a renda dos alafin, e Awole, para enfrentar a situação, teria talvez aumen- tando os impostos dentro do reino.”

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África no início do século XIX: problemas e perspectivas

deixadas de lado, como os charcos costeiros, o desenvolvimento das cidades e de novos mercados, o gosto pelas experiências e reformas foram consequências da queda do império que criaram possibilidades que os europeus se limitaram a explorar.

É, portanto, o desejo de renovação que explica que, no século XIX, e apesar da desconfiança que as intenções dos europeus lhes inspiravam, tantos soberanos africanos – do Egito e da Tunísia, de Madagascar e de Lesoto, de Abeokuta como da região dos fanti – tenham corrido o risco de acolher comerciantes, aventureiros ou missionários vindos da Europa: esperavam que a importação das técnicas europeias ajudasse a desenvolver seus países. O Egito não foi o único país da África a ter uma sensação de renascimento. Pode -se realmente dizer que o século XIX foi, para a África, “a era do progresso”30. Mas a aspira-

ção ao progresso, que de fato dominou essa época, tinha sua origem na própria África. Os soberanos africanos tentaram tirar partido da atividade crescente dos europeus, mas, vítimas dessa atividade, acabaram vendo frustrada sua esperança de renovação.

Conclusão

No início do século XIX, surgiram novos fatores de mudança na história da África, sendo o principal deles o maior desejo de os europeus terem não apenas de fazer comércio na África, mas também intervir na vida social e econômica das populações africanas. Esse desejo se traduzia em diversas preocupações: os euro- peus queriam conhecer melhor as populações e os recursos do interior, eliminar o tráfico negreiro, desenvolver a exportação de certas culturas; os missionários procuravam impor aos africanos a maneira de viver dos cristãos; os comerciantes empenhavam -se em estender sua atividade ao interior do continente. Tudo isso abria novas possibilidade e novas dificuldades econômicas. Os centros do novo comércio nem sempre coincidiam com os do antigo. Os diferentes Estados e, dentro dos Estados, os diferentes grupos de interesses disputavam as fontes de riqueza e o comércio dos produtos agora essenciais, como as armas de fogo. A importância quantitativa dessas novas relações comerciais e, mais ainda, o estímulo que elas representaram para as trocas já existentes, foram fontes de

30 É o título (“Africa’s age of improvement”), dado por A. Hopkins, em 1980, a sua aula inaugural, que, con- tudo, versava mais sobre os objetivos gerais da história econômica da África do que sobre as tendências características do século XIX.

expansão considerável das atividades comerciais. Contudo, uma vez mais é pre- ciso frisar que o comércio praticado no século XIX era o prolongamento do que existia antes; que os homens que o inauguraram e as estruturas que o sustenta- ram eram os mesmos da época do tráfico negreiro; que esse comércio se baseava, em grande medida, no tráfico interno e no trabalho dos escravos; e, portanto, nos sistemas políticos, na rede de rotas comerciais, nas relações sociais e econômicas e, antes de tudo, no sistema de produção agrícola preexistentes. Não se deve traçar uma imagem deformada da evolução da África no início do século XIX, fazendo remontar a essa época a influência preponderante que os europeus só terão mais tarde sobre os processos de transformação. No início do século XIX, as tradições herdadas do século XVIII e as mudanças próprias à África tiveram muito mais importância do que as mudanças vindas de fora.

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