• Nenhum resultado encontrado

Atividades missionárias cristãs

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 79-85)

Não menos revolucionária e durável em seus efeitos foi, à mesma época, uma outra cruzada religiosa que atingiu outras partes da África, a saber: a campa- nha empreendida pelos missionários cristãos. Ainda que as primeiras tentativas de se implantar o cristianismo nas regiões que se estendiam ao Sul do Sudão Ocidental remontem à época das explorações portuguesas do século XV, mal se encontravam traços desta religião na África ao final do século XVIII. Todavia, isto se alteraria radicalmente a partir dos últimos anos daquele século, mais particularmente durante as primeiras cinco décadas do século XIX. Sob o efeito principalmente do despertar, na Europa, do espírito missionário, devido essen-

cialmente à obra de John Wesley e pelo aparecimento dos ideais antiescravo- cratas e humanitários inspirados pelo radicalismo e pelas revoluções americanas e francesas, os esforços realizados para implantar e propagar o cristianismo tiveram o mesmo dinamismo, senão a mesma forma conquistadora, que a onda islâmica que se alastrou no Sudão Ocidental. Desta vez, não foram utilizados o alcorão e a espada, mas a Bíblia, o arado e o comércio. A ação dos chefes, do clérigo e dos porta -bandeiras das jihad seriam substituídas pela de um grande número de sociedades missionárias, fundadas e baseadas na Europa e na Amé- rica, e por seus representantes na África. Deste modo, no inicio de 1800 somente três sociedades missionárias trabalhavam em toda a África Ocidental, a saber: a Society for the Propagation of the Gospel (SPG) (Sociedade para a Propagação do Evangelho), a Wesleyan Missionary Society (WMS) (Sociedade Missionária Wesleyana) e a Glasgow and Scottish Missionary Society (Sociedade Missionária Escocesa de Glasgow). Em 1840, apenas quarenta anos mais tarde, elas já eram mais de quinze. As mais importantes eram a Church Missionary Society (CMS) (Sociedade Missionária da Igreja), a Missão da Alemanha do Norte ou a Missão de Bremen, a Missão Evangélica de Basileia, fundada na Suíça, a United Presbi‑

terian Church of Scotland (Igreja Presbiteriana Unida da Escócia), e a Sociedade

das Missões Estrangeiras fundada na França. Durante as três décadas seguin- tes, mais de uma dezena de novas congregações de origem americana vieram engrossar esta lista.

Na África Oriental e Central, em 1850, havia somente uma congregação missionária, a Church Missionary Society. Em 1873, no momento da morte de Livingstone, contavam -se mais duas novas. Uma era a Universities Mission to

Central Africa (UMCA) (Missão das Universidades para a África Central),

criada em 1857 para fundar «núcleos de cristianismo e de civilização que pro- pagassem a religião verdadeira, a agricultura e o comércio legítimo”, em res- posta ao apelo apaixonado feito, neste mesmo ano, por Livingstone à opinião pública britânica em um discurso pronunciado na Universidade de Cambridge; e a segunda era a Congregação dos Padres do Espírito Santo, ordem católica fundada na França em 18688. São as viagens, bem como as circunstâncias e o

impacto da morte de Livingstone, que deram o impulso decisivo para a onda religiosa que sacudiu a África Oriental e Central. Em apenas quatro anos, quatro novas missões foram criadas, a Livingstone Mission criada pela Free Church of

Scotland (Igreja Livre da Escócia), em 1875; a Blantyre Mission foi criada no ano

53

Tendências e processos novos na África do século XIX

seguinte pela Igreja oficial da Escócia, com intuito de evangelizar o atual Malaui; a London Missionary Society (LMS) (Sociedade Missionária de Londres) que, na sequência a uma carta publicada pelo Daily Telegraph, na qual o explorador e jornalista Stanley convidava as missões a se encontrarem no Buganda, estender o seu trabalho a partir da África do Sul até a atual Tanzânia; por fim, a missão católica dos Padres Brancos, implantando -se neste país dois anos após a Church

Missionary Society9. Deste modo, a evangelização da África Oriental e Central

no final do século XVIII encontrava -se a bom caminho.

Mas a amplitude e o sucesso das atividades missionárias foram ainda maiores na África Austral. Ao final das guerras napoleônicas, havia não mais que duas sociedades em atividade em toda a região: a Missão Morave, que entrou na província do Cabo uma primeira vez em 1737, retirando -se apenas seis anos mais tarde e só regressando em 1792, e a London Missionary Society, que surgiu na região em 179910. Mas, a partir de 1816, um grande número de sociedades da

Grã -Bretanha, da Europa continental e dos Estados Unidos, tanto protestantes como católicas, penetraram não somente na província do Cabo, mas também na região de Natal e do Transvaal. Por volta de 1860, elas haviam avançado para o Norte até as regiões que são agora o Botsuana, o Lesoto, o Sudoeste africano e a Zâmbia. Elas compreendiam a Wesleyan Missionary Society; a Glasgow Mis‑

sionary Society; a Church Missionary Society; a sociedade missionária norueguesa;

a United Presbyterian Mission; a Sociedade de Berlin; a Sociedade do Reno; a Missão Evangélica de Paris; a USA Mission to Zululand and Mossega; a Sociedade Missionária de Hamburgo; e a Swiss Free Church (Igreja Livre Suíça)11.

Uma diferença importante entre a empreitada missionária na África Austral e aquela que teve lugar, por exemplo, na África Ocidental, se deve à participação direta e ativa que os missionários tiveram, na primeira destas regiões, nas ques- tões políticas e, sobretudo, nas relações estreitas que se instalaram entre alguns missionários e alguns reis africanos. Desde o início, missionários como Van der Kamp e John Philip participaram ativamente da política local; enquanto Loben- gula, Lewanika e Cetshwayio tornaram -se grandes amigos de Moffat, Coillard e Colenso, respectivamente12.

9 A. J. Wills, 1964, p. 82 -97; R. Oliver, 1965, p. 1 -48; N. R. Bennett, 1968, p. 231 -235. 10 E. Roux, 1964, p. 25 -26; E. A. Walker, 1957, p 92 -93, 144 -146, 173 -175.

11 E. A. Walker, 1957, p. 133, 144 -146, 178; E. Roux, 1964, p. 24 -31; C.P. Groves, 1954, vol.2, p. 118 -161; D. Denoon, 1973, p. 26 -29, 67 -90; H.W. Langsworthy, 1972, p. 82, 105, 115.

figura 3.1 As missões cristãs e o islã, 1800 -1860. [Fonte: J. F. Ade. Ajayi e M. Crowder (orgs.), Historical

Atlas of Africa, 1985, Londres, Longman.]

No início, acreditou -se que os missionários na África Austral estivessem sempre do lado dos africanos e sistematicamente defendessem sua causa. Mas trabalhos recentes mostraram que eles eram “frequentemente empregados como negociadores entre as autoridades coloniais e as autoridades africanas, muito mais como diplomatas do que como evangelizadores”13, e que, se os coloni-

55

Tendências e processos novos na África do século XIX

zadores os consideravam como perigosamente pró -africanos, muitos chefes africanos viam neles (a título muito justo) agentes perigosos dos colonizadores e do imperialismo.

Estas sociedades missionárias não se limitaram a construir igrejas, a converter a população e a traduzir a Bíblia para as línguas africanas. Elas consagraram também muito tempo a desenvolver a agricultura criando plantações experimen- tais; a ensinar profissões como pedreiro, carpinteiro, gráficos e alfaiates; a elevar o nível de vida da população e, sobretudo, a promover o comércio, a alfabetização e o ensino do tipo ocidental. Todas criaram escolas primárias, escolas técnicas e mesmo escolas secundárias. Na África Ocidental, a Church Missionary Society criou o Colégio Fourah Bay em 1827. Em 1841, ela já administrava vinte e uma escolas primárias em Serra Leoa e, em 1842, fundou duas escolas secundárias: uma para rapazes e outra para moças14. Em 1846, os Wesleyanos tinham tam-

bém quatro escolas para moças e vinte escolas para rapazes na Costa do Ouro e, em 1876, abriram a sua primeira escola secundária, a Wesleyan High School, atualmente denominada Mfantsipin School. A Church Missionary Society criou também uma escola secundária, em 1859, em Lagos, enquanto os Wesleyanos abriam a Methodist Boy`s High School em 187915. Precisa -se sublinhar que estas

escolas não foram construídas somente no litoral, sendo que algumas dentre elas foram em cidades do interior.

Tratando -se da África Oriental e Central, havia, em 1890, em Livingstone uma escola que acolhia 400 alunos, além da missão dispor de uma oficina e uma prensa tipográfica que “não cessava de produzir cartilhas de alfabetização e coletâneas das Sagradas Escrituras, de tabuadas, e de cursos elementares de geografia e história natural traduzidos para nyanja, tonga, nguni, nyakiusa, e nkonde”16. Em 1835, o recenseamento da missão Livingstone registrava 4.000

alunos em suas escolas de Madagascar, e, em 1894, 137.000 crianças merina dos altos planaltos da Grande Ilha estavam matriculadas nas escolas protestantes: ou seja, segundo Curtin e seus colaboradores, uma proporção do número estimativo da população daquela região “semelhante àquela que se registrava na Europa Ocidental na mesma época”17.

Na África Austral, prestava -se uma atenção muito superior ao ensino do que em outras regiões da África, em parte graças às subvenções dos governos do

14 A. A. Boahen, 1966, p. 118 -123. 15 J. F. A. Ajayi, 1965, p. 152 -156. 16 R. Oliver, 1965, p. 62. 17 P. D. Curtin et al, 1978, p. 414.

figura 3.2 Igreja da missão da Church of Scotland em Blantyre (Malaui). [Fonte: H. H. Johnston, British Central Africa, 1897, Greenwood Press, London. Foto reproduzida com autorização do Conselho de admi- nistração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]

Cabo e de Natal. Em 1870, os missionários haviam registrado, segundo parece, um sucesso muito maior no campo pedagógico do que em matéria de evangeli- zação18. Haviam criado não somente numerosas escolas primárias ou de vilarejos,

mas, também, desde a década de 1840, escolas normais e de ensino secundário. A Glasgow Missionary Society, por exemplo, criou a Lovedale, em Natal, em julho de 1841, um seminário ao qual estava anexado um departamento técnico que ensinava as profissões de pedreiro, de carpinteiro, fabricantes de carroças e fer- reiros e, a partir de 1861, de gráfico e de encadernador19. Em 1877, os católicos

haviam já fundado, em Natal, um convento das Irmãs da Sagrada Família com uma pensão, uma escola primária e um asilo e um outro convento no estado livre D`Orange. Em 1868, os missionários franceses criaram uma escola normal em Amanzimtote e, na metade da década de 1860, um pequeno seminário para

18 M. Wilson e L. Thompson, 1969, p. 335, 385.

57

Tendências e processos novos na África do século XIX

moças em Inanda, na província do Natal; em 1880, os anglicanos fundaram o St. Albans College em terras zulus20.

A influência daquela campanha de cristianização foi, sem dúvida, ainda mais profunda do que a das cruzadas islâmicas.

É sobre o modo de vida dos africanos convertidos que suas repercussões foram ainda mais evidentes. Estes últimos, além de terem aprendido outras pro- fissões, tinham um mínimo de atenção à saúde; ao mesmo tempo, os estilos tra- dicionais de arquitetura melhoram e o trajar de roupas ocidentais se expandiu21.

Por outro lado, ao condenar a poligamia, as crenças de seus ancestrais e de seus deuses, e o curandeirismo, os missionários enfraqueceram as bases tradicionais das sociedades africanas e das suas relações familiares.

Uma outra consequência da propagação desta nova fé foi o aparecimento de um pluralismo religioso e, portanto, a divisão das sociedades africanas em grupos rivais e concorrentes. Primeiro, as sociedades africanas dividiram -se entre convertidos e não convertidos, ou como eram chamados na África do Sul, entre «vermelhos» e «pessoas educadas»22. Da mesma forma que os fiéis e seguidores do

islamismo dividiram -se pela existência de confrarias rivais da Qadiriyya e da Tija- niyya, o cristianismo cristalizou as «pessoas educadas» em católicos, metodistas, anglicanos, luteranos, congregacionistas e presbiterianos. Se em diversas partes da África este esfacelamento não foi causa de tensão ou de animosidade social importante, o mesmo não se deu em outras partes da África como Bugamba e Madagascar, como veremos mais adiante na sequência deste volume.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 79-85)