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O ímpeto abolicionista do Ocidente

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 105-116)

Ao longo do século XVIII, apurando a definição do direito universal ao bem- -estar e à liberdade, antropólogos, filósofos e teólogos voltaram -se para o caso do africano e de sua condição no mundo. Sua reflexão levou -os a modificar as noções ordinariamente admitidas até então sobre o negro da África e o escravo americano: de bruto e animal de carga, eles transformaram -no em um ser moral e social. Sua fórmula, “o negro é um homem”, recusava implicitamente o con- senso sobre a honradez, a legitimidade e a utilidade da venda de negros. Suas análises humanitaristas desembocaram na exigência abolicionista. Seu balanço do tráfico era inteiramente negativo.

O tráfico manchava de sangue os Estados que o encorajavam ou o sub- sidiavam. Matava dezenas de milhares de brancos e centenas de milhares de negros. Retirava de sua terra produtores -consumidores que, reduzidos à escra- vidão americana, não representavam mais nada. Impediu a diversificação da atividade comercial na costa. Perpetrou a barbárie no continente negro – opinião que tinha como base unicamente as observações dos ocidentais dotados de um

“saber” sobre a África, os negreiros. Ao denunciar um flagelo, o abolicionista não pretendia converter imediatamente traficantes negros ou escravagistas brancos. Propôs um programa de regeneração da África através da cristianização, da civi- lização, do comércio natural e fixou etapas racionais para sua execução: reverter a opinião pública do mundo cristão; levar os governos “civilizados” a tomar posições oficiais; abolir legalmente o tráfico no Atlântico.

Na França, a Grande Enciclopédia e a obra do abade Raynal, revista por Diderot, ensinou aos burgueses revolucionários a aversão à escravatura. Esta corrente de ideias nobres e profanas apoiava indiretamente o ideal da Sociedade Francesa dos Amigos dos Negros, que teria sido financiada pela Inglaterra. Os revolucionários não sentiam nem a realidade negreira nem a necessidade de levar a opinião pública a apoiar sua nova ideologia. Pelo contrário, na Inglaterra, a sensibilização do povo para a filantropia se fazia pela explicação teológica que brotava de uma profunda renovação evangélica. Após terem proibido o comércio de escravos entre eles, os quacres americanos persuadiram os quacres britânicos a juntarem -se ao movimento abolicionista inglês1. Ao mesmo tempo,

uma campanha intensa tinha sido realizada nos meios políticos. Vanguarda e porta -voz destas forças conjuntas, a Seita de Clapham levava anualmente suas reivindicações à Câmara dos Comuns por intermédio de William Wilberforce. O combate contra os numerosos obstáculos acumulados pelos escravagistas e pelos negreiros durou vinte anos. Aos 25 de março de 1807, a Inglaterra aboliu o tráfico. Foi a segunda abolição oficial, depois da Dinamarca em 1802. Os Esta- dos Unidos generalizaram as decisões individuais dos quacres em 1808. Essa defesa dos interesses humanitários pelos poderes políticos tinha tido por campeã a Grã -Bretanha, nação cujos negreiros haviam importado cerca de 1.600.000 africanos em suas colônias americanas ao longo do século precedente.

A hagiografia, segundo a qual a revolução humanitária abriu uma “das mais nobres páginas” da história inglesa, foi abalada, em 1944, por uma tese fundada no materialismo histórico. Segundo Eric Williams, a abolição servia poderosa- mente aos interesses econômicos da Inglaterra industrial nascente2. Com cer-

teza, esta abordagem fértil não negava inteiramente o papel da filosofia moral nem o de um humanitarismo ideal e triunfante. Mas fez aparecer severas con- tradições entre o pensamento teórico e a realidade prática: entre os principais dirigentes do movimento abolicionista figuravam numerosos banqueiros (o caso vale também para a Sociedade Francesa dos Amigos dos Negros), ou seja,

1 R. Anstey, 1975, cap. 9. 2 E. Williams, 1944.

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a abolição do tráfico servia aos interesses do capital. Mais tarde, as ideias teóri- cas revelar -se -iam impotentes para dominar o fluxo bem real de escravos para explorações escravagistas em pleno desenvolvimento, em Cuba e no Brasil; e as forças ditas humanitárias não conseguiriam dominar a equalização dos direitos sobre o açúcar, cuja consequência eventual, numa época em que a mecanização das plantações estava ainda bem longe de ser efetuada, seria o aumento da demanda de mão de obra negra. O principal mérito da interessante tese de Eric Williams foi talvez o de ter dado um impulso às novas pesquisas, enquanto o debate econômico prosseguia. Seymour Drescher mostrou assim que a abolição era um “econocídio”, e Roger Anstey, que a fé e a benevolência estavam na ori- gem da filantropia inglesa3. Os historiadores divergem talvez menos na crítica

dos fatores políticos da abolição.

Proposições de abolição coletiva, lançadas pela Inglaterra em 1787, depois em 1807, haviam fracassado. Em 1810, Portugal fez vagas promessas em troca de aberturas para o mercado britânico. Um mundo desmoronou com o fim das guerras napoleônicas. A paz de 1815 devolveu o Mediterrâneo, o Oceano Índico e o Atlântico ao comércio marítimo, e os reabriu ao tráfico negreiro. No Con- gresso de Viena, buscando uma condenação explícita do tráfico, a diplomacia inglesa obteve uma declaração platônica e temporizadora, retomada em Verona. A partir de 1841, esta aparência de moral abolicionista oficial autorizou daí por diante todas as estratégias combinadas do Foreign Office e do Almirantado nos negócios negreiros mundiais. Em três pontos, Londres propôs às nações um procedimento pretensamente radical contra o tráfico internacional: legislações internas proibindo o tráfico negreiro aos nacionais; tratados bilaterais conferindo às marinhas de guerra o direito recíproco de visitar e prender no mar os navios de comércio de cada nação contratante pega no tráfico ilegal; e colaboração nas comissões mistas habilitadas a condenar os negreiros presos e a libertar os negros encontrados a bordo. Tais disposições funcionariam também no Oceano Índico, especialmente entre Maurício e Bourbon (a atual Ilha da Reunião).

Este projeto agradou a um público de perfil liberal ou filantrópico. Por outro lado, nenhuma economia nacional podia negligenciar a clientela ou as fabrica- ções inglesas. Ademais, para os governos novos ou em dificuldade que buscavam a aprovação ou a passividade de Londres, um gesto abolicionista equivalia a um verdadeiro gesto de cooperação. Inversamente, o projeto inglês só podia suscitar a resistência dos interesses que a supressão do tráfico pela força lesaria.

Resistência dos Estados, em nome de sua soberania nacional: direito de visita e comissões mistas pressupunham um abandono parcial desta soberania. Resistên- cia dos clássicos “interesses superiores”, a fim de fazer frente ao “maquiavelismo” e às ambições hegemônicas que repousavam sobre a preponderância absoluta da Royal Navy. Resistência à ruína das marinhas, das colônias, dos comércios nacionais. Portugal, Espanha, Estados Unidos e França consumiam e distribu- íam algodão, açúcar, café e tabaco de produção escravagista ligada à importação de africanos no Brasil, em Cuba, nos Estados do Sul dos Estados Unidos e nas Antilhas. Diretamente envolvido, o empreendedor marítimo drenava os investimentos e oferecia emprego aos pequenos setores econômicos locais que tiravam proveito do tráfico.

Sempre escravagistas nas colônias menores, a Dinamarca, a Holanda e a Sué- cia subscreveram à repressão recíproca4. Substancialmente indenizados, Portugal

e Espanha aceitaram -na em 1817. Mas Portugal conservou um tráfico essen- cialmente lícito no Sul do Equador, que não se atenuaria senão em 1842, sob a ameaça de severas sanções militares inglesas. A Espanha reforçou sua legislação antinegreira e suas convenções com Londres; mas Cuba continuou o tráfico até 1866, ano da terceira lei abolicionista espanhola: Cortes Gerais, o Conselho de Estado e a Tesouraria cederam à chantagem para a fidelidade ou para a seces- são dos plantadores da Ilha5. A chantagem dos ingleses para o reconhecimento

jurídico do Brasil obrigou o novo império ao tratado repressivo de 1826. Mas o tráfico brasileiro cresceu até 1850. No ano seguinte, ele cessou, mas somente por que a Royal Navy violou as águas territoriais do Brasil para purgá -las dos negreiros: o café dependia do mercado britânico; os fazendeiros se arruinaram para reembolsar suas dívidas aos mercadores de escravos; e a população branca temia um superpovoamento negro6.

Às pressões inglesas, os Estados politicamente mais fortes responderam de modo diferente. Sedenta de prestígio, a França adquiriu sua autonomia por um simulacro de legislação e de cruzeiros de repressão, inofensivo, fosse na metró- pole ou na costa. Entre 1815 e 1830, o tráfico ilegal francês mobilizou 729 expe- dições negreiras para as costas Oeste e Leste da África. Mas quando se tornou evidente que tais operações não constavam mais do balanço social e financeiro dos portos, o governo assinou uma convenção de visita recíproca. Outra razão foi o fato de a monarquia oriunda da revolução de 1830 ter tido interesse em se

4 S. E. Green -Pedersen, 1975; E. Ekman, 1975; P. C. Emmer, J. Mettas e J. -C. Nardin (org.), 1976. 5 A. F. Corwin, 1967.

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reconciliar com a Inglaterra7. Esta mudança de atitude levou à adesão de muitos

pequenos Estados às convenções de 1831 -1833. A Grã -Bretanha aproveitou -se para renovar suas tentativas de internacionalização. Estendeu a repressão naval a todo Atlântico e ao Oceano Índico. Uma cláusula de “equipamento” permi- tiu a captura de navios manifestamente armados para o tráfico, mesmo vazios de carregamentos humanos. Os negreiros dos Estados Unidos permaneceram invulneráveis. Durante quarenta anos, a diplomacia norte -americana escapou a qualquer compromisso sério. Em 1820, o tráfico foi legalmente assimilado à pirataria; em 1842, acrescentou -se o compromisso da “verificação do pavilhão”, que preservou os norte -americanos da repressão inglesa; cruzeiros repressivos de “80 canhões” salvaguardaram a dignidade nacional, embora fossem medidas formais. Nos anos 1840, os plantadores sulistas reclamaram a reabertura legal do tráfico. Todavia, tomaram suas próprias medidas ao criarem escravos para venda interna em ranchos especializados8. Durante a Guerra Civil, a Administração

Lincoln admitiu o direito de visita, suspenso desde 1820. Cessou então o tráfico norte -americano.

Assim, durante meio século, a multidão dos textos acumulados provou sobre- tudo a inanidade dos compromissos assumidos. Nesta avalanche verbal, a África e os africanos são muito raramente mencionados, como se não existissem. O trá- fico ilegal era proveitoso aos empreendedores marítimos, cujos benefícios eram mais importantes do que na época do tráfico legal e protegido9. As explorações

escravagistas estocavam mão de obra.

Os plantadores resistiam à abolição por razões diferentes. Impermeável às ideias difundidas pelos organismos abolicionistas, sua psicologia apela invaria- velmente aos estereótipos raciais e aos postulados civilizadores. A abolição não ajudaria “a raça escrava e embrutecida a sair de sua sorte10”. O prestígio social

ligado à posse de escravos e os hábitos demográficos ligados à ausência de imigração branca contribuíram para a justificação do sistema. A resistência se explicou sobretudo pela contradição percebida entre o crescimento da demanda ocidental em produtos do trabalho dos escravos e a interdição ocidental de importar os escravos julgados indispensáveis para aumentar a oferta destes pro- dutos. A exportação de café brasileiro decuplicou entre 1817 e 1835, e triplicou de novo até 1850. A exportação de açúcar cubano quadruplicou entre 1830

7 S. Daget, 1983.

8 E. D. Genovese, 1968, p. 131 -132.

9 P. E. Leveen, 1971, p. 27, tabela 3; R. Anstey, 1976, comunicação pessoal. 10 Citado em S. Daget, 1973.

e 186411. Em 1846, as medidas inglesas de livre comércio pareciam atribuir

uma preferência à produção escravagista, uniformizando os direitos de entrada dos diversos açúcares no mercado britânico. Os historiadores não chegaram a um acordo quanto à incidência dessa iniciativa no recrudescimento do tráfico negreiro12. Mas em Cuba, onde o tráfico estava regredindo, a importação dos

negros novos (bozales) ultrapassou em 67%, nos anos 1851 -1860, a dos anos 1821 -1830. Durante os cinco anos de uniformização dos direitos na Inglaterra, a introdução dos negros no Brasil aumentou 84% com relação aos cinco anos precedentes, 1841 -184513. Além disso, o explorador americano rentabilizava a

importação de mão de obra nova enquanto seu preço de compra era inferior a 600 dólares por cabeça. Isto até 186014.

A repressão

Os navios de guerra não agiam somente na costa africana. Desde 1816, na Conferência de Londres, proposições francesas contra o tráfico dito “berbere” tinham sido rechaçadas: aliás, elas não representavam senão uma tentativa para tornar menos urgente a repressão militar no Atlântico. Mas em 1823, a França adotou uma disposição proibindo a seus navios o transporte de escravos pelo Mediterrâneo. Esta decisão inscrevia -se em um contexto político que não tinha muito a ver com o tráfico: guerra da Espanha, libertação dos Gregos, apoio ao Egito de Muhammad ‘Alī – enfim, tentativa de domínio deste mar fechado, antes mesmo da intervenção direta francesa na Argélia. Momentaneamente a Inglaterra havia sido ultrapassada. Entretanto, as operações dos navios não tiveram resultados visíveis. A repressão militar era mais séria em algumas águas do Oceano Índico, principalmente entre a ilha Maurício, Madagascar e a Reu- nião. Lá, navios ingleses capturavam navios franceses; e é verossímil que alguns negreiros ingleses de Maurício tenham ido procurar escravos em Madagas- car, onde o chefe Jean -René exercia seu domínio sobre Tamatave. Em caso de tomada “internacional”, regularizava -se o assunto restituindo o navio, mas não os africanos que ele transportava. Em caso de apreensão por um navio nacional,

11 L. Bethell, 1970, p. 73, nota 4 e p. 284; F.W. Knight, 1970, p. 44.

12 F.W. Knight (1970, p.55) não acredita na incidência da medida, contrariamente a P. E. Leveen, 1971, p. 78 -80; H. Temperley, 1972, p. 164; D. R. Murray. 1971, p. 146.

13 D. R. Murray. 1971, p. 141 -147. Ver H. S. Klein, 1976; L. Bethell, 1970, p. 388 -395. 14 P. E. Leveen, 1971, p.10, 72ss; F. W. Knight, 1970, p. 29; A. F. Corwin, 1967, p. 135 -144.

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havia adjudicação judiciária, o que não significava que os negros a bordo eram libertados. Na maior parte das vezes, eles incorporavam as plantações – enquanto as autoridades aduaneiras fechavam os olhos a essas operações.

Nas águas americanas, os franceses capturaram alguns negreiros nacionais e os levaram a julgamento em Guadalupe e em Martinica. Os escravos “captura- dos” eram escoltados para Caiena sob a ordem de Paris que era obcecada pela ideia de colonizar a Guiana. Quando medidas de repressão foram previstas nos tratados bilaterais, foram os navios negreiros – não os homens – que foram julga- dos perante as comissões mistas instauradas pelos acordos. Sua eficácia do lado americano do Atlântico dependia da mentalidade dominante nas explorações escravagistas. Em Cuba, apenas 45 negreiros foram condenados pela Comissão hispano -britânica, dos 714 conhecidos entre 1819 e 1845. Um prêmio pela captura destinado aos integrantes da marinha espanhola local levou à apreensão de 50 navios nos dez últimos anos do tráfico. Os resultados das comissões do Suriname e do Brasil não foram melhores15. Um navio a cada cinco foi capturado

nas águas americanas. Entretanto, por volta de 1840, cerca de 70 embarcações de guerra de diversas nacionalidades foram expedidas para a repressão.

O efetivo foi bem menor na costa ocidental africana. Os cruzeiros holan- deses, portugueses e americanos eram episódicos. Os cruzadores americanos eram muitas vezes comandados por sulistas. Baseados no Cabo Verde, estavam distante do tráfico. Esta situação que prevaleceu no momento do nascimento da Libéria não mudou até 1842. O acordo concluído com os ingleses exigiu a presença de quatro ou cinco navios – mas isto permaneceu teórico. Entre 1839 e 1859, dois negreiros americanos foram apreendidos com sua carga. Sete capturas aconteceram em 1860; os escravos que se achavam a bordo dos navios apreendidos foram povoar a Libéria.

Duas forças marítimas operaram permanentemente. Em 1818, a França estabeleceu seu cruzeiro, que permaneceu independente até 1831. Partindo de Gorée, que não era mais um centro de distribuição negreiro desde 1823 -1824, mas que se tornou o quartel geral das operações de repressão francesas, entre três e sete navios de guerra inspecionavam alguns negreiros, sem jamais reprimir nos quatro primeiros anos. A incerteza reinava sobre as intenções reais do governo. Londres acusava os franceses de subtrair -se a seu dever e a toda obrigação moral. Os abolicionistas franceses acusavam o ministério de conluio com os interesses negreiros. Em 1825, a marinha reagiu decidindo pela atribuição de um prêmio

de 100 francos por escravo “apreendido”. Cerca de trinta negreiros capturados no mar passaram pela justiça, elevando a uma centena o número de condenados. Teoricamente, isto deveria ter salvado alguns milhares de africanos da escravi- dão americana. Mas, na realidade, quando não foram enviados a Caiena, foram “empregados” no Senegal para as obras públicas da colônia. As convenções de 1831 -1833 foram pouco a pouco minadas pelas rivalidades e pelo orgulho nacional dos parceiros16. A Marinha francesa procurava assegurar um equilíbrio

entre o número de seus cruzadores e os da Royal Navy. Havia entre três e seis em 1838, e quatorze de cada lado em 1843 -1844. Em 1845, como consequência indireta do tratado anglo -americano, as convenções francesas foram emendadas, e o número de embarcações destinadas à repressão foi fixado em vinte e seis de cada lado. Desde então, contando com os cinco cruzadores americanos e os seis navios portugueses nas costas do Congo, uma verdadeira força naval parecia direcionada contra o tráfico. Em 1849, a França não cumpriu com algumas obrigações que não podia assumir. Durante sete anos, o segundo Império favo- receu os “contratos livres” de mão de obra africana. Foi um tráfico mascarado que a Inglaterra e a Holanda praticaram por sua conta. O cruzeiro francês em quase nada interferiu, mas fez tremular sua bandeira ao longo da costa, o que era talvez seu principal objetivo.

O Almirantado britânico encarregou -se da polícia humanitária, mas o fez sem entusiasmo. Os meios materiais progrediram, passando de 3 a 26 navios, mal adaptados a esta missão especial. Pesados, incapazes de subir os rios, des- tacavam botes, vulneráveis aos ataques das feitorias negreiras e dos barcos que os esperavam. Lentos, eles eram ultrapassados no mar pelos brigues rápidos e leves, antes de sê -lo pelos clíperes americanos. Na falta de vapores, no início, a administração colonial da Serra Leoa comprou alguns navios condenados, destinando -os à repressão por suas qualidades náuticas. A esquadra estacionava e abastecia -se na colônia, nos fortes da Costa de Ouro e fazia escala na ilha da Ascensão. As ofertas de compra de Fernando Pó à Espanha, a fim de melhor reprimir o tráfico no golfo de Biafra, não obtiveram êxito.

A eficácia dependia dos homens. Embebida no espírito metropolitano, a consciência abolicionista do marinheiro inglês era inegável. Era igualmente válido para seu complexo de poder. A serviço da humanidade, conduzia a Royal

Navy a nem sempre obedecer às ordens do Almirantado e a desprezar o direito

marítimo internacional. Ilegalmente, a Royal Navy visitou e prendeu franceses

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figura 4.1 “Mapa da costa ocidental da África, compreendendo todos os territórios onde ainda se faz o tráfico dos escravos, reproduzido de acordo com documentos recentes para a inteligência dos cruzadores ou dos bloqueios a estabelecer nos focos do tráfico pelo comandante barco E. Bouët -Willaumez” (Mémoires et

documents Afrique, 30, p. 415). [Fonte: documento de arquivos do Ministério dos Assuntos Exteriores, Paris.

Publicado com a amável autorização de S. E. o Ministro dos Assuntos Exteriores da República Francesa.]

e americanos antes dos acordos bilaterais, acarretando medidas de protesto e de reparação diplomáticos. Um prêmio pelas capturas, muito elevado no início, fez com que os marinheiros da Inglaterra fossem acusados de se preocuparem antes pelo proveito garantido pela captura de um navio que pelo estado dos africanos amontoados a bordo. Com efeito, a mortalidade era severa entre a apreensão e a liberação em Serra Leoa, em Santa Helena ou em Maurício. Os marinheiros também morriam de doença ou em serviço. Houve combates mortíferos entre cruzadores e negreiros17.

Estes últimos utilizavam com habilidade a incoerência das condições inter- nacionais da repressão. Na costa, muito bem informados sobre os movimentos dos cruzadores, os negreiros evitavam -nos, talvez quatro a cada cinco vezes. Içando falsos pavilhões e empregando falsos documentos de bordo comprados nas Antilhas, agiam como piratas. Apesar das leis, até então não sofriam sanções. Abandonaram seus disfarces no momento do reforço dos acordos repressivos: os documentos franceses não mais os protegiam, depois de 1831; e os portugueses, depois de 1842. Mas a manutenção da soberania americana salvaguardou efi- cazmente o tráfico com pavilhão dos Estados Unidos até 1862.

A resposta a estes estratagemas foi a escalada da violência. Os comandantes de cruzadores e os governantes locais das implantações ocidentais chegaram a empregar espontaneamente a força militar. Praticaram “expedições punitivas”18

em terra, especialmente onde o poder africano parecia desorganizado. Na zona de influência americana da Libéria, o governador, reverendo Jehudi Ashmun, atuou contra as feitorias do cabo Mount. Perto da Serra Leoa, em 1825, a campanha do governador Turner expurgou por um tempo as ilhas da península

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