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As reações africanas

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 116-119)

Entre 1787 e 1807, fase pré -abolicionista ocidental, mais de um milhão de africanos foram deportados para as Américas. A este número acrescentam -se uma mortalidade aproximada de 15%, na travessia do Atlântico, e o número desconhecido de mortes provocadas pelos deslocamentos para a costa e durante as operações locais de produção de cativos pelos africanos “pescadores de homens”23.

A abolição estava longe de perturbar de imediato a vitalidade do mercado de exportação ao longo da costa. A indecisão abolicionista deixou a Portugal e ao Brasil o lazer de traficar ilegalmente ao Sul do equador, e o lucro era tão alto quanto no século XVIII. Combatido seriamente após 1842, o tráfico não desapareceu das costas de Loango antes dos anos 190024. Ao Norte do equador,

a abolição imposta aos estabelecimentos europeus suprimiu postos de tráfico tradicionais, na Senegâmbia, em Serra Leoa, na Libéria e na Costa do Ouro. Mas o efeito real quase não passou da periferia da implantação onde a autori- dade política era fraca. Às vezes ainda negreiros continuavam operando nestas paragens. Porém, desapareceram progressivamente. A produção e a distribuição de mão de obra exportável estavam doravante nas mãos dos africanos.

Nas fronteiras da Serra Leoa, a geomorfologia favorecia ativas feitorias negreiras inglesas e espanholas, ou pertencentes a mulatos, nos rios Nuñez e Pongo, no Noroeste, e no rio Gallinas, no Sudeste. As regiões produtoras, às vezes separadas umas das outras por 400 ou 500 quilômetros, estavam geral- mente situadas próximas à costa. As transações eram pessoais, entre dirigentes, caravaneiros, agentes e feitores. Em Daomé, ao contrário, o tráfico era um dos suportes do poder político, que delegava a gestão dele a seus mais importantes

23 R. Thomas e R. Bean, 1974.

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parceiros. Devedor ao mulato Francisco Félix da Souza, Ghezo fixou -o, em 1818, como chacha, “chefe dos brancos”, conselheiro econômico e administrador do tráfico em Uidá. Este cargo sobreviveria à morte do primeiro chacha, em 1849, e o filho de Ghezo o herdaria. Tratava -se de uma gestão em grande escala: esto- cagem das mercadorias ocidentais, liquidação das dívidas e créditos, embarque rápido de cargas previamente preparadas, arrecadação das taxas, filtragem dos estrangeiros brancos e divertimento da clientela. Estas funções econômicas eram capazes de adaptar -se a outros tipos de produção. A do tráfico, que pertencia aos chefes de guerra, era assegurada por expedições militares anuais, nem sempre vitoriosas, contra os países vizinhos, e sobretudo os iorubás. Provinha igualmente do Sudão Central que distribuía também cativos para o Norte e para o Egito, dirigindo sua carga pelos confins do Estado: bom portador, o indivíduo devo- tado à exportação era conservado e integrado à equipe ordinária de transporte25.

Mais a Leste, de Badagri às fronteiras do reino do Benin, os tumultos internos do povo iorubá sobrecarregaram um mercado ligado com Uidá. Poderes locais, negreiros negros e brancos das lagunas atendiam as fortes demandas portugue- sas e brasileiras, que ali encontravam a maior parte de seus recursos antes de se adaptarem à nova realidade26.

A Leste do Cabo Formosa, nas margens do delta do Níger, de Nun ao Velho Calabar, os notáveis mecanismos adotados no último terço do século XVIII continuavam administrando o tráfico negreiro, mas já se aplicavam a outras atividades comerciais exploradas simultaneamente. As forças religiosas e sociopolíticas locais, o oráculo Arochuku, as “Casas de Canoas” e a sociedade

ekpe mantinham um mercado que representava a metade do tráfico negreiro ao

Norte do equador, cerca de 200.000 unidades. A produção chegava de Sokoto, da Bénoué, do Nupe, do Noroeste camaronês e das regiões interiores do delta, onde era conseguida com métodos clássicos, guerra ou rapto, pagamento de dívidas ou tributo de proteção, expurgação social da comunidade, simples compra nos mercados e simples brindes. Uma sucessão de negociantes ou as redes habituais de escoamento encaminhavam -na para os pontos de distribuição27. Lá, métodos

bem corriqueiros também presidiam às transações. O preço unitário das cargas era previamente fixado na moeda de cálculo local, a barra de cobre, equivalente a certa quantidade de mercadorias – não diferente daquela dos períodos ante- riores. Em 1825 e em 1829, homens e mulheres valiam 67 barras; e o preço

25 C. Coquery -Vidrovitch, 1971, p. 109 -111; P. Manning, 1979; M. Adamu, 1979. 26 P. Verger, 1968, cap. XI e XII.

podia baixar até a 45 ou 50. Quando do desembarque da carga, o preço de cada indivíduo era de 33 dólares espanhóis, sendo 8 a 10% o valor da comissão dos distribuidores. Em Duke Town, a cidade de Duke Ephraïm, no Antigo Calabar, chefes de outras casas mais ou menos rivais, Egbo Eyo, Tom Honesty, Ogan Henshaw, contribuíam para completar os carregamentos de escravos ou comes- tíveis. 40.000 inhames se pagavam com 2.000 barras, valor de 40 indivíduos. Por volta de 1830, a maior parte do tráfico se realizaria em Bonny28.

A estimativa do tráfico negreiro ao longo dos sessenta anos da era abolicio- nista pertence ao domínio dos valores aproximados. De 1807 a 1867, entre o Senegal e Moçambique, 4.000 navios europeus ou americanos realizaram por volta de 5.000 expedições negreiras, deslocando 1 milhão de toneladas métricas de carga. Mercadorias com o valor de cerca de 60 milhões de piastras ou dólares foram negociadas por um total de 1.900.000 africanos, efetivamente embarcados nos entrepostos de exportação. 80% desse total teria sido embarcado no Sul do equador.29 Do começo do século aos anos de 1880, o tráfico transaariano, de um

lado e o tráfico árabe, de outro, exportavam em torno de 1.200.000 africanos negros no que se refere ao primeiro e 800.000 no que diz respeito ao segundo30,

indivíduos capturados no imenso arco compreendido entre o país Bambara, no Oeste e Sul de Moçambique.

Cliometristas, sociólogos e historiadores admitem que o tráfico foi uma catástrofe global para a África. A observação científica juntar -se -ia assim ao sentimento popular. Mas o propósito merece uma explicação. A ideologia huma- nitária era ocidental. É provável que não tenha havido o menor sentido no espírito dos distribuidores africanos da época – salvo raríssimas exceções. O que não quer dizer que eles fossem visceralmente incapazes de não mais praticar o tráfico, como os escravagista ocidentais o pretendiam. A permanência da oferta africana de mão de obra exportável deve ser analisada em termos de racionali- dade econômica. Distribuidor negro e exportador branco não mudavam nada em uma atividade pagadora, aproveitável às duas partes interessadas, que não visavam outra coisa além do ganho. Assim foi no estágio elementar. A constante oferta se explicava pelo bom funcionamento de um sistema integrado. Se havia resistência africana, era contra o desmoronamento desse sistema. Inicialmente arruinaria os interesses constantes dos distribuidores não preparados31, sem falar

28 S. Daget, 1983, ver, entre outros, os navios Le Charles, 1825, e Le Jules, 1829. 29 P. D. Curtin, 1969, tabelas 76 e 77.

30 R. A. Austen, 1979, tabelas 2.8 e 2.9. 31 G. N. Uzoigwe, 1973, p. 201.

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das repercussões que viriam a seguir sobre o organismo social e político próximo ou distante. Em resumo, enquanto o movimento de trocas entre o interior e a costa e o comércio externo desta não ofereciam alternativa decisiva ao tráfico, a “resistência” dos negreiros africanos à sua supressão era severamente deter- minada pela necessidade de evitar um caos comercial32. A suposta cumplicidade

dos distribuidores africanos não era senão uma resposta adaptada à realidade econômica imediata. Isto explica, aliás, a tendência à queda dos preços de venda de mão de obra exportável como defesa do mercado contra as crescentes pressões das forças repressivas. Estas teriam, portanto, sua parte em um balanço negativo. Tal argumentação precisa ser equilibrada quanto à deportação dos africanos para o Norte ou para o Leste. Se o interesse econômico dos captores e distribuidores de escravos permanecia evidente, concebe -se dificilmente que os países arruina- dos tenham recebido qualquer compensação econômica. Certas personalidades poderosas instalaram seu poder, Tippu Tip ou Rābah, por exemplo. Mas, se exis- tiu de sua parte uma contribuição positiva para as regiões que eles controlavam, o estudo desse aporte será da competência dos especialistas.

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