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O reino de Gaza

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 150-166)

Soshangane foi o primeiro dos generais de Zwide a se retirar, seguido de um pequeno grupo de fiéis, e a se estabelecer no país tsonga, não longe da baía de Delagoa, onde parece ter vencido e sujeitado tranquilamente vários pequenos grupos, tais como os manyika, os ndau e os chopi, por ele incorporados aos seus partidários. Em Moçambique, os partidários de Soshangane, geralmente, eram denominados shangana, segundo seu nome. Foi aí que ele tentou fundar seu próprio reino, chamado Gaza. Em todas as direções, enviou seus regimentos em expedições para capturar gado, jovens (homens e mulheres) e grãos. Solidamente estabelecida, a potência econômica do reino de Gaza tinha por base o controle do comércio entre o interior e os estabelecimentos costeiros dos portugueses na baía de Delagoa47. Este comércio já estava florescendo antes da formação do

reino de Gaza. De fato, a baía de Delagoa, feitoria portuguesa, já atraía os navios mercantes de outras nações estrangeiras, notadamente, ingleses e austríacos48. A

baía de Delagoa servia, sobretudo, de escoadouro do marfim e de outros produ- tos exportados do reino de Nyaka e dos Estados thembe e maputo49.

O novo reino de Gaza assegurou, pois, o controle de um comércio que alcan- çava uma boa parte de Natal e atingia, muito provavelmente, os limites orientais da colônia do Cabo50. Mas o reino de Gaza contava demasiadamente com suas

expedições militares e com a guerra. A partir de sua capital, Chaimaite, no Médio Sabi, os regimentos de Soshangane combatiam as chefias das redondezas e perseguiam os Estados shona do Leste. A maioria desses ataques foi dirigida contra os povos do Sul de Moçambique, notadamente, os tsonga51. Houve um

reforço do elemento nguni na sociedade gaza em 1826, no momento em que os homens de Soshangane juntaram -se aos ndwandwe derrotados, vindos do Norte da Zululândia, após a derrota de Sikunyane, o filho de Zwide, vencido por Shaka52.

As comunidades tsonga submetidas foram incorporadas a uma estrutura correspondente às formas características do Estado zulu. Gaza estendia -se do Zambeze inferior até o Sul do Limpopo. A autoridade do rei apoiava -se em um

47 A. T. Bryant, 1929, p. 313; J. D. Omer -Cooper, 1966, cap. 4. 48 A. K. Smith, 1969, p. 176 -177.

49 S. Marks, 1967b. 50 A. K. Smith, 1969, p. 169. 51 J. Stevenson -Hamilton, 1929, p. 169. 52 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 57.

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exército organizado em regimentos alistados por faixas etárias e utilizando as técnicas de combate do exército zulu. O núcleo de origem dos nguni oriundos do Sul formava uma espécie de classe social superior designada pelo nome de “ba -nguni”, ao passo que os cidadãos incorporados recentemente eram chama- dos “ba -tshangane”. Contrariamente a vários de outros fundadores de Estados oriundos do Mfecane, Soshangane não utilizou seus regimentos constituídos por grupos etários para unificar as comunidades sujeitadas e o núcleo nguni. Segundo J. D. Omer -Cooper, os homens de grupos vassalos eram formados em regimentos distintos daqueles dos nguni, mas colocados sob o comando de oficiais “ba -nguni”. Ele aponta também que se considerava que tais regimentos pudessem ser sacrificados e que, no campo de batalha, eram sempre engajados na linha de frente53.

Os ndebele

Mzilikazi, o fundador do Estado ndebele, era filho de Mashobane, chefe de um pequeno principado khumalo estabelecido nas margens do Mfolozi Negro, que pagava um tributo a Zwide, o monarca ndwandwe. Nascido em 1796, Mzi- likazi tornou -se o chefe de seu povo em 1818, quando Zwide encomendou a morte de Mashobane, sob a suspeita de traição. Na condição de filho da pri- meira esposa de Mashobane (filha de Zwide), Mzilikazi, o herdeiro oficial, foi devidamente instalado por Zwide à frente da chefia khumalo.

Pouco tempo após a vitória de Shaka sobre Zwide na batalha do Mfolozi Branco, Mzilikazi traiu seu avô Zwide e fez aliança com Shaka. Enviado por este último em expedição contra um grupo sotho vizinho, em 1822, Mzilikazi desa- fiou Shaka recusando -se a lhe entregar o gado capturado. Tendo então reunido seus khumalo no cume da colina de Ntumbane, ele rechaçou um regimento zulu que fora enviado para puni -lo. Um segundo regimento conseguiu desalojá -lo de sua fortaleza, tida como impenetrável, e infligiu uma punição severa aos regi- mentos khumalo. Mzilikazi escapou pelas montanhas do Drakensberg, à frente de um pequeno grupo de aproximadamente 200 homens, mulheres e crianças. Segundo a descrição de um autor:

Tendo perdido uma grande parte de mulheres, crianças e gado, e apoiado somente por algumas centenas de soldados a pé, dotados de armas de punho, Mzilikazi

encontrava -se no limiar de uma odisseia que o levaria a percorrer mais de 2.500 quilômetros em vinte anos, por muitas regiões desconhecidas.

Mzilikazi conseguiu escapar dos regimentos zulus que o perseguiam, abrindo caminho através de vários pequenos grupos sotho do Highveld. Quando de sua travessia do Vaal, capturou gado, homens, mulheres e crianças. Sua tropa tam- bém aumentou com os grupos isolados nguni que, antes deles, atravessaram o Drakensberg para viverem entre as comunidades sotho do Highveld. Em 1824, ele se estabeleceu nas ribanceiras do Olifants, em uma região habitada principal- mente pelos pedi, grupo sotho -tswana que, até 1820, fora chefiado por Thulare. Seu estabelecimento foi chamado de Ekupumleni. As campanhas militares que Mzilikazi empreendeu contra os pedi e outros grupos sotho, fixados principal- mente no Norte e no Leste do que hoje é o Transvaal, tiveram como efeito não só o enorme aumento do efetivo de seus rebanhos, mas também a multiplicação do número de seus vassalos: ele recolheu habitantes de regiões conquistadas, além de refugiados que fugiam de Shaka. No Highveld do Transvaal, habitado sobretudo por comunidades sotho -tswana, os nguni de Mzilikazi foram desig- nados sob o nome de ndebele. Por volta de 1825, os regimentos ndebele com- bateram as comunidades sotho -tswana em todo o Highveld e atacaram a Oeste, até o Botsuana Oriental. No espaço de dois ou três anos, o reino de Mzilikazi se tornou o mais poderoso e o mais rico do Highveld.

A notícia da fortuna de Mzilikazi se propagou e atraiu bandos de aventu- reiros e saqueadores, como aqueles comandados por Moletsane, o taung (cuja base encontrava -se no Vaal), ou Jan Bloem, cujos cavaleiros mestiços, equipados com armas de fogo, perseguiam, há algum tempo, vários Estados africanos da região de Trans -Orangia. Eles atacaram os enormes currais de Mzilikazi, perto do Vaal, dividindo entre eles parte dos imensos rebanhos desse último54. Essa

situação, agravada pelos ocasionais ataques dos regimentos zulu e a ameaça de um possível ataque da parte de Zwangendaba e de Nqaba55 – ambos antigos

generais de Zwide –, incitou Mzilikazi a deslocar sua capital, em 1827, para estabelecê -la nos declives setentrionais dos montes Magaliesberg, perto da fonte do rio Odi (Crocodile), ou seja, no coração do país kwena e kgatla, lugar que constitui agora a província do Tranvaal. Foi aí, não distante da atual Pretória, que Mzilikazi instalou seu novo quartel general, Mhlahlandlela, a partir do qual, durante cinco a sete anos, seus regimentos lançaram ataques sistemáticos contra

54 J. D. Omer -Cooper, 1966, cap. 9 passim. 55 Ibid.

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os Estados kwena e kgatla do centro do Transvaal. Os regimentos de Mzilikazi partiram em expedições para o Norte, para além do Limpopo; para o Sul, além do Vaal e para o Oeste até os acessos do deserto de Kalahari. Em Mhlahlandlela, Mzilikazi construiu as fundações de uma nação bem organizada em torno de sua capital e das duas aglomerações satélites de Gabeni e Nkungwini. Entre- tanto, a perseguição continuava. Os koranna, armados e comandados por Jan Bloem, reforçados por alguns regimentos sotho -tswana, atacaram seus reba- nhos em 1828, apoderando -se de milhares de cabeças de gado e massacrando muitas outras. Os regimentos de Mzilikazi, que operavam alhures, lançaram -se, rapidamente, na perseguição dos saqueadores, os quais se dirigiam para o Sul. Esses, no momento em que deixavam o território ndebele, foram pegos, mortos, em sua maioria, e muitas cabeças de gado foram recuperadas. Um ano mais tarde, um ataque análogo conduzido contra seus currais por um forte partido griqua e sotho, comandado por Barend Barends, foi igualmente rechaçado. Mas Mzilikazi ainda vivia com medo de um ataque zulu. Em 1832, ele levantou acampamento e partiu para o Oeste a fim de se estabelecer em Mosega, no Marico (Madikwe). Desta nova base, atacou a maioria dos grupos tswana do Transvaal Ocidental e aqueles que povoavam o atual Botsuana, até o dia em que foi derrotado e expulso de Mosega por uma força composta de bôeres, tswana e griqua, em 183756.

Mzilikazi iria estabelecer seus quartéis em Bulawayo. Seus regimentos impu- seram facilmente sua autoridade às chefias kalanga e shona instaladas na região. A potência dos Estados shona tinha sido minada pelas batalhas contra os nguni de Zwangendaba e Nqaba. A partir de Bulawayo, os regimentos ndebele lan- çavam frequentes ataques contra os shona para capturar o gado. Muitas chefias shona se submeteram e tornaram -se Estados vassalos, pagando tributo, ao passo que outras resistiram bravamente. Certos grupos shona, em particular os que viviam a Leste do Sabi e do Hunyani, nunca se submeteram verdadeiramente à autoridade dos ndebele. Por outro lado, as chefias kalanga estavam muito dispersas para resistirem, e seus habitantes foram incorporados à sociedade ndebele. Alguns foram obrigados a emigrar para o Sul e para o sudoeste, e se estabeleceram no atual Botsuana.

Em seu novo domínio, Mzilikazi se sentia menos ameaçado por inimigos poderosos. Desde então, esforçou -se menos nas expedições militares do que na consolidação de seu reino. Mas, como o Estado ndebele era basicamente um

Estado militarista e expansionista, ele precisava garantir uma massa regular de tributos sob a forma de gado, grãos, utensílios, armas de ferro, adornos indivi- duais, artigos de couro; ou ainda, sob a forma de mão de obra e de serviços. Os regimentos continuaram, portanto, com suas expedições para o Norte e Leste, contra as comunidades de língua shona e, também, contra alguns Estados sotho- -tswana do Sul. Certos tswana, como os bakaa, foram poupados e encarregados de vigiar o rebanho de Mzilikazi57. Entretanto, em 1842, o rei ngwato Sekgoma

desafiou um regimento de invasores ndebele. No ano seguinte, os arrecadadores de tributos de Mzilikazi foram mortos pelos ngwato58. Teria seu ardor militar

se abrandado ou teria ele considerado que não era necessário reagir imediata- mente? Surpreendentemente ele esperou vinte anos antes de punir os ngwato por esse insulto.

Em todo caso, Mzilikazi se mostrou mais ávido por vingança após sua der- rota no Zambeze, diante dos kololo de Sebetwane, em 1839. Enviou contra eles duas expedições, uma em 1845, e outra cinco anos mais tarde. Mas, como ambas foram um desastre, ele renunciou a qualquer nova empreitada ao encontro de um inimigo tão temível. Por outro lado, em 1847, os ndebele foram surpreen- didos pela incursão de um comando bôer, sob as ordens de Hendrik Potgieter e apoiado por auxiliares pedi. A expedição foi um fracasso total. Tal como fizera contra os bandos griqua e koranna, uma vintena de anos atrás, Mzilikazi destacou um regimento para perseguir o comando que tinha conseguido rou- bar milhares de cabeças de gado ndebele. O regimento de elite zwangendaba apanhou os saqueadores em seu acampamento, massacrou os guardas pedi e retomou a posse do gado.

A partir de 1850, um decênio inteiro passou sem que Mzilikazi se lançasse em uma guerra importante. Querendo nutrir boas relações com os europeus, ele assinou com os bôeres, em 1852, um tratado que lhes permitia caçar em seu território. Também, por três vezes, recebeu a visita do missionário Robert Moffat – em 1854, 1857 e 186059. Tais visitas prepararam a entrada dos europeus

no reino ndebele. Moffat obteve de Mzilikazi a permissão para os missioná- rios desenvolverem suas atividades em seu país60. A partir deste momento, os

europeus começaram a penetrar em número crescente no reino ndebele. Eram caçadores, mercadores e missionários, todos precursores de Cécil J. Rhodes e

57 A. Sillery, 1952, p. 118.

58 R. K. Rasmussen, 1977, p. 35; A. Sillery (1952, p. 118) data esse incidente de 1838. 59 R. Moffat, 1945, vol. I, p. 225.

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da British South Africa Company61. O movimento se acentuou a partir de 1867,

quando os europeus tomaram conhecimento da existência das antigas minas de ouro de Tati, no país kalanga62. Nesta época, Mzilikazi já estava muito doente.

Ele morreu no início do mês de setembro de 1868.

O reino ndebele era um Estado militarista. Seu estabelecimento na região que hoje corresponde ao atual Zimbábue marcou o desabrochamento de um sistema político que lentamente tinha amadurecido no Transvaal. Para cons- truir seu reino, Mzilikazi retomou certos traços do Império Zulu, do qual o seu próprio principado khumalo fora apenas um elemento menor. Ele utilizou regi- mentos constituídos por faixas etárias como principal instrumento para integrar as populações conquistadas e para amalgamar as camadas sociais que, pouco a pouco, se constituíram na sociedade ndebele, no Norte do Limpopo.

Após 1840, eram três o número de tais camadas sociais. A primeira era constituída pelos grupos de parentes dos primeiros companheiros de Mzilikazi, originários da região de Natal -Zululândia e dos que se juntaram a eles no Sul do Vaal. Eram chamados de zansi. O segundo grupo, pela ordem decrescente de prestígio, era composto de pessoas que foram incorporadas ao longo das peregrinações no Norte do Vaal. Eram chamados de e -nhla. Por fim, a base da hierarquia era ocupada pelo grupo dos hole, constituído pelas populações con- quistadas no Norte do Limpopo63. O prestígio que se atrelou à posição social

dos zansi incitava os outros grupos a se esforçar para imitar os modos de vida dos primeiros, falar sua língua e adotar sua cultura. Os casamentos entre pes- soas de classes sociais diferentes não eram vistos com bons olhos64. Entretanto,

os indivíduos que conseguiam se exprimir com destreza em sindebele e que se distinguiam na guerra escapavam ao ostracismo social e até podiam ascender na hierarquia militar. O sistema dos regimentos constituídos por faixas etárias tinha como efeito a mistura dessas classes sociais e a facilitação de uma integração mais rápida dos jovens dos países conquistados. Ele permitia impregnar tais jovens dos costumes ndebele, da língua sindebele e da fidelidade a Mzilikazi.

Em virtude de sua posição, o rei desempenhou um papel capital no dispo- sitivo que ligava estes diferentes grupos de sujeitos entre si. Notadamente, isso aparecia na cerimônia anual do incwala. Mais do que qualquer outro rito, tal cerimônia evidenciava o papel primordial da figura do rei na vida da nação.

61 Ibid., p. 152.

62 L. Thompson, 1969b, p. 446. 63 A. J. B. Hughes, 1956. 64 Ibid.

Segundo a análise feita por um antropólogo, a cerimônia das primícias ritua- lizava a função real e servia para proteger toda a comunidade, “apaziguando as forças maléficas que poderiam prejudicar o seu chefe e consolidando, ao redor dele, a unidade política da nação”65. A cerimônia reunia todos os súditos do rei

e ocorria na capital66. Em princípio, sendo o proprietário de todo o gado do

reino ndebele, Mzilikazi podia conceder ou recusar a seus súditos os meios de contrair casamento. Além de ser o guardião do rebanho nacional, também o era de todas as jovens capturadas. Em outros termos, era senhor, ao mesmo tempo, da capacidade de produção econômica e do potencial de reprodução biológica de seus súditos. Ele próprio ligou -se, pelo casamento, a um grande número de seus súditos.

Dado que o reino ndebele era um Estado fundado na conquista, a organi- zação de seu numeroso exército recortava, em parte, a organização política e administrativa do Estado e até mesmo tendia a tomar a frente desta última. Este exército de aproximadamente 20.000 homens, nos últimos anos do reinado de Mzilikazi, foi dividido em regimentos, sendo cada um deles comandado por um

induna. Os próprios induna eram controlados por quatro induna divisionários,

todos subordinados a Mizilikazi, que reinava no cume da pirâmide.

Quase todos os homens adultos faziam parte do exército e pertenciam, por consequência, a um regimento. Tais regimentos estabeleciam -se em cidades guarnição. Os militares casados eram autorizados a viver na cidade guarnição com suas mulheres e seus servos. Constituíam uma espécie de força de reserva que poderia ser chamada ao combate, em caso de urgência. Os filhos eram alis- tados no mesmo regimento de seus pais. Assim, em vez de serem os jovens de todas as comunidades do Estado incorporados a um mesmo regimento (como era o caso entre os sotho -tswana), o pertencimento a uma cidade guarnição tornava -se hereditário. Por vezes, quando o aumento da população o requeria, Mzilikazi escolhia jovens em diversas cidades guarnição para formar um novo regimento, sob o comando de seu próprio induna, o qual recebia a autoriza- ção de construir uma nova cidade. Cada cidade guarnição encontrava -se sob a dupla responsabilidade do induna de seu regimento e de uma das esposas de Mzilikazi.

Se o sistema regimentar funcionava desta maneira visando à integração dos jovens, nem todos os habitantes dos países conquistados viviam em cidades guarnição. Havia no reino ndebele aldeias ordinárias cujos habitantes continu-

65 H. Kuper, citado em T. R. H. Davenport, 1978, p. 45. 66 R. K. Rasmussen, 1977.

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avam vivendo segundo seus costumes. Contudo, tais aldeias encontravam -se, em geral, ligadas às cidades guarnição.

Enfim, no reino ndebele, o próprio Mzilikazi concentrava sobre sua pessoa a totalidade do poder político. Nomeava todos os induna e todos os chefes de aldeia, e recebia deles relatórios detalhados. Mzilikazi, frequentemente ia às diferentes cidades guarnições e fazia visitas inopinadas de inspeção nas cidades- -satélites. Em um intervalo de tempo relativamente curto, ele chegou a edificar um reino solidamente implantado, no qual os povos conquistados – dentre os quais alguns eram associados ao Estado, porém sem fazer realmente parte dele – adotaram a língua e a cultura ndebele. Inversamente, os ndebele tornaram -se adeptos da religião shona mwari/mlimo, cujos sacerdotes pronunciavam oráculos e praticavam o espiritismo67.

Os sotho

O reino de Lesoto é outro Estado que nasceu da efervescência do Mfecane, constituindo -se a partir de uma constelação de pequenas comunidades autô- nomas de língua sotho, as quais se encontravam largamente dispersas pelas planícies que se estendiam a Norte e a Oeste da cadeia do Drakensberg. A maioria destas comunidades compreendia vários clãs e linhagens pertencentes aos grupos kwena e fokeng das sociedades sotho -tswana.

As guerras mortíferas lançadas pelas campanhas dos hlubi e dos ngwane contra essas comunidades de língua sotho do Highveld de Trans -Orangia for- neceram a Moshoeshoe uma boa oportunidade para exercer seus talentos de chefe e de organizador. Moshoeshoe era o filho do chefe relativamente obscuro do pequeno clã mokoteli, ramo menor de uma das chefias kwena da região. A tradição atribui certas realizações de Moshoeshoe à tutela e à influência de um eminente “rei filósofo” do mundo sotho, Mohlomi, rei dos monaheng, um outro ramo da confederação kwena das chefias do Highveld. Os Estados de língua sotho de Trans -Orangia dispensava um imenso respeito a Mohlomi devido a sua sabedoria e a sua reputação de fazedor de chuva. As frequentes viagens feitas por este último a tais Estados e os numerosos casamentos diplomáticos contraídos por ele com filhas de chefes teriam, segundo alguns, preparado o terreno para a unificação desses Estados concluída mais tarde por Moshoeshoe68.

67 Ibid.; A. J. Wills, 1967, p. 155.

Entretanto, não seria preciso exagerar a influência do sábio Mohlomi sobre o caráter e os êxitos de Moshoeshoe. Este era dotado de incontestáveis quali- dades de chefe. Primeiramente, após ter se destacado por suas iniciativas entre os camaradas de sua mesma idade durante a iniciação, ele provou amplamente essas qualidades no momento em que as incursões dos hlubi e dos ngwane pro- vocaram o desabamento geral da maioria das chefias sotho de Trans -Orangia69.

No início de sua carreira, Moshoeshoe tomou consciência das possibilidades

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