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A desapropriação como instrumento de função social

9. A atuação do Poder Público em face dos problemas socioambientais

3.7. A adequação das sanções como fator de inibição ao dano ambiental

4.1.4. A desapropriação como instrumento de função social

O reconhecimento da função socioambiental da propriedade estabeleceu, no ordenamento jurídico, limitações a sua utilização. Todavia, quando a propriedade é integralmente destinada à proteção ambiental e, para tanto, de domínio público, ela deverá ser desapropriada de forma justa visando a não causar prejuízos ao seu dono. A exceção é a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), onde o proprietário assume voluntariamente esse ônus.

De acordo com o Direito Administrativo, intervenção na propriedade privada é “todo ato do Poder Público que compulsoriamente retira ou restringe direitos dominiais privados, ou

348 Cf. ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Direito de Propriedade e Meio Ambiente, 2000, p. 114. 349 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro, 1995, pp. 65-66.

sujeita o uso de bens particulares a uma destinação de interesse público”.351 No atual contexto, deve-se analisar o instituto sob a perspectiva constitucional, vinculado ao contexto socioeconômico e ambiental.352 A propósito, assim dispõe o art. 5º da CF:

“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes:

I - ... ... XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

... XXVI – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento” (grifo nosso).

O instrumento da desapropriação é o instrumento legal utilizado pelo Estado para retirar compulsoriamente o bem do domínio privado para seu domínio. Constitui uma exceção ao Direito de Propriedade, no sentido que esse é a regra, enquanto a desapropriação só se verificará nos termos da lei. A lei, por sua vez, dispõe que a desapropriação dar-se-á por necessidade ou utilidade publica, ou por interesse social.

O atual texto constitucional fez menção ao instituto em diversas passagens, trouxe algumas inovações e ampliou seu campo de aplicação. Segundo Melo, a desapropriação é “um procedimento administrativo mediante o qual o poder público, compulsoriamente e por ato unilateral, despoja alguém de um bem, adquirindo-o originariamente, mediante indenização prévia e justa”.353 Santos afirma ser

“um ato coercitivo, mediante o qual, por razões de necessidade ou interesse coletivo, o Poder Público retira do domínio do seu próprio proprietário bens ou direitos, incorporando-os ao seu patrimônio ou entregando-os a quem deles possa fazer melhor uso, para que atinjam os fins pretendidos e especificados na declaração expropriatória, indenizando-se o seu legítimo dono pelo valor fixado na forma que a lei estabelecer.”354

A desapropriação tem como característica principal ser um ato impositivo e que deixa o desapropriado em situação de desvantagem perante o Poder Público, uma vez que não se discute a conveniência e a oportunidade do ato expropriatório e o expropriante vê-se apoiado no argumento de que age em nome do interesse da coletividade. Uma segunda característica

351 Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 1997, p. 507.

352 Cf. ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Direito de Propriedade e Meio Ambiente, 2000, p. 72.

353 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Prestação Jurisdicional dos interesses legítimos no Direito Brasileiro, 1973, p. 511.

da desapropriação é a indenização, eis que objetiva substituir o bem ou Direito retirado do patrimônio individual, mesmo que o valor recebido não se afigure justo para o expropriado. A propósito, comentando possível indústria das indenizações, Granato traz uma interessante contribuição pela qual o autor denuncia a ocorrência de superavaliações e outros fatos envolvendo indenizações de terras no estado de São Paulo.355

Por certo, o Direito à propriedade está intimamente atrelado à função social da propriedade. Entretanto, essa condição só se materializa por meio do uso racional e adequado dos recursos naturais disponíveis e à preservação do meio ambiente. Como assevera Gomes da Silva, baseado em entendimento esposado pelo STF, “ é a passagem do Estado-proprietário para o Estado-solidário, transportando-se do ‘monossistema’ para o ‘polissistema’ do uso do solo.” Ademais, consoante o autor, “o direito privado de propriedade seguindo-se a dogmática tradicional, e à luz da Constituição, dentro das modernas relações jurídicas, políticas, sociais e econômicas, com limitações de uso e gozo, deve ser reconhecido com sujeição à disciplina e exigência da sua função social.356

De há muito, a civilização é dominada pelo conceito de que o Direito de Propriedade privada é um direito natural. A tese é admitida e absorvida, consciente ou inconsciente, por muitos, como verdadeira. No entanto, não se trata de tese absoluta, porquanto o Direito de Propriedade, como vimos, está sujeito a condicionamentos. A propriedade tem, pois, uma função social a cumprir, com vistas ao bem-estar social e ao bem comum. Por isso, justifica- se a intervenção do Estado no Direito de Propriedade, de forma a regulá-lo para uma convivência pacífica dos homens.

O instrumento comporta três modalidades: i) desapropriação por utilidade pública, regulada pelo Decreto-Lei nº 3.365, de 21.06.1941, que abrange os casos de utilidade pública e de necessidade pública; ii) desapropriação por interesse social, regulada pela Lei nº 4.132, de 10.09.1962. Estas duas modalidades podem ser promovidas pela União, Estados e Municípios, podendo ter como objeto bens corpóreos ou incorpóreos, rurais ou urbanos, públicos ou privados, observado que a desapropriação de bens públicos deve obedecer ao

355 GRANATO, Fernando, in: O Estado de São Paulo, p. A8, 02.11.97. O autor declara que superavaliações, sobreposições de áreas, desapropriações de terras já doadas e até adulterações de registros em cartórios, são as características mais freqüentes e comuns encontradas nas maiores indenizações ambientais que o governo de São Paulo está sendo obrigado a pagar. Isto é atribuído ao Decreto que criou o Parque Estadual da Serra do Mar com a posterior alteração na área do Parque, em que será expedido, a cada proprietário, ato declaratório de utilidade pública, para sua oportuna desapropriação (...). Em razão disto e sob a alegação de terem perdido todo o direito de explorar economicamente as propriedades, seus donos ingressaram com ações de indenizações. Ilustra a distorção dessas indenizações com o caso de uma fazenda com cerca de 5 mil alqueires, situada numa região montanhosa que nada tem cultivado em seu solo praticamente abandonada e mesmo assim o valor da indenização está na ordem de 1,05 bilhão, que representa o maior precatório do Estado.

princípio da hierarquia dos entes federais; e iii) desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária (desapropriação agrária), regulada pela Lei Complementar nº 76, de 06.07.1993, modificada pela LC nº 88, de 23.12.1996, e, ainda, pela Lei nº 8.629, de 23.02.1993, já alterada por meio de Medidas Provisórias.

Por certo, o art. 186 da CF, tratando da Política Fundiária e da Reforma Agrária, dá competência à União para desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, os imóveis que não estejam cumprindo sua função social. Nesse mesmo artigo, recepciona o Estatuto da Terra ao estabelecer que a função social é cumprida, dentre outros elementos, “pela utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”.

Como a Constituição tratava somente de reforma agrária, entendeu-se, à época, que não caberia a desapropriação por interesse social na criação de unidades de conservação, apesar da clareza do artigo seguinte em dizer que a função social é cumprida com a preservação dos recursos naturais. Isso fez com que, na prática, aumentassem as dificuldades de regularização fundiária das unidades de conservação de domínio público.

Junto com a indefinição de limites, títulos de propriedade de procedência duvidosa, e dificuldades institucionais de diferente natureza, o Poder Público foi impedido de utilizar o instituto da desapropriação por interesse social que dava a possibilidade de utilizar os títulos da dívida agrária nas indenizações de terra nua e apenas as benfeitorias para serem indenizadas em espécie. A desapropriação pelo outro instituto, o da utilidade pública, como é agora utilizado, obriga o Poder Público a indenizar não só as benfeitorias como a terra nua sempre em espécie.357

A reforma agrária é encargo do Estado no sentido de disseminar o Direito de Propriedade privada, notadamente o uso adequado da terra. A respeito, no dizer de Borges, é preciso que “se trace uma filosofia governamental clara para a Reforma Agrária, e para a Política Agrícola ou Política do Desenvolvimento Rural, que deve acompanhar aquela”.358

A legislação prevê que a terra produtiva, trabalhada corretamente, não será objeto de desapropriação. Com efeito, desapropriar a terra produtiva, a que cumpre sua função social, seria erro político. Além de afrontar o direito positivo, seria, sem dúvida, imprudência econômica e medida contraditória em face dos princípios norteadores da Reforma Agrária.

Entretanto, não merece subsistir o latifúndio por mera exploração, que é prejudicial à sobrevivência humana. Por outro lado, a adequada fixação do homem à terra tem previsão na

357 Cf. WIEDMANN, Sônia Maria Pereira. O Direito de Propriedade e as Unidades de Conservação, 2002, p. 1. 358 BORGES, Paulo Torminn. Importância do Direito Agrário no Desenvolvimento Social e Econômico, 1998, p. 21.

legislação, ou seja, “as legitimações de posse, as regularizações de posse e as transações em torno de domínio com defeito em sua formação, todos estes institutos já têm forma administrativa apropriada a tornar tranqüila e definitiva a fixação do homem à terra.”359

A história nos dá conta de que um dos maiores óbices à implementação da preconizada reforma da estrutura fundiária brasileira consistiu na inviabilidade financeira das indenizações, concebidas apenas em dinheiro, à força da legislação subjacente, notadamente da Lei nº 4.132, de 10.09.64, que veio disciplinar a desapropriação por interesse social criada na Constituição de 1946. Além disso, quando o Estatuto da Terra, em seu art. 2º, garantiu o Direito de Propriedade condicionado ao cumprimento da função social, fixando-se os requisitos de forma clara e objetiva, praticamente derrogou a regra de conteúdo individualista impregnada no art. 524, do antigo Código Civil, sobre o direito absoluto da propriedade. Com efeito, a CF previu no art. 184 que a União pode desapropriar, por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo a sua função social. Ademais, pelo art. 185 da CF previu que são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; e II – a propriedade produtiva.

Pereira afirma serem três os requisitos da função social da terra; i) sob a ótica econômica, como sendo o aproveitamento racional e adequado; ii) sob o ângulo social, correspondendo à observância das disposições que regulam as relações de trabalho e ao bem- estar do proprietário e dos trabalhadores; e iii) ecológica, referindo-se à utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente.360

É urgente um debate jurídico-político sobre as constantes invasões e ocupações de terra. Na ótica do MST, os trabalhadores rurais fazem meras ocupações, já que o seu alvo são as propriedades improdutivas ou que, mesmo sendo produtivas, não cumprem a sua função social. Segundo os detentores das terras atingidas, os chamados “Sem Terra” praticam invasões e, portanto, praticam esbulho possessório, que é punível criminalmente, além de ensejar a retomada dos imóveis por interditos possessórios.

Os conflitos se multiplicam. A imprensa destaca o pior lado da questão. O Governo ensaia ações paliativas e os problemas persistem. A manutenção de latifúndios improdutivos, com grandes concentrações de terras, demonstram a inoperância governamental. A discussão não alcança o verdadeiro sentido de que a terra não é bem de especulação, mas um bem de

359 Cf. BORGES, Paulo Torminn. Importância do Direito Agrário no Desenvolvimento Social e Econômico, 1998, p. 23.

produção. Para o equacionamento de tais questões, temos no Brasil suficientes instrumentos jurídicos-legais. Na verdade, temos um abundante e até exagerado acervo normativo. Todavia, muitas de nossas leis são elaboradas ao sabor dos interesses imediatos dos legisladores, por isso que, não raro, se tornam inócuas.

Discute-se sobre a viabilidade jurídica de o Poder Público promover a desapropriação agrária sobre a Propriedade Produtiva, quando esta não cumpre a sua função social. Há autores, a quem nos filiamos, que seguem esse entendimento, sob o fundamento básico da desapropriação agrária que é o não-cumprimento da função social, conforme se extrai do art. 184, da CF, preceito harmônico com o art. 170, do mesmo texto constitucional, que subordina a ordem econômica a diversos princípios, entre eles, a função social da propriedade (inciso III).361

4.2. O Poder Legislativo e a (in)efetividade da função socioambiental da propriedade