• Nenhum resultado encontrado

Ainda o princípio da moralidade: desvio, abuso e excesso

9. A atuação do Poder Público em face dos problemas socioambientais

5.2. A discricionariedade do ato administrativo e o dever da melhor

5.2.6. Ainda o princípio da moralidade: desvio, abuso e excesso

O desvio de poder é definido por Mello como a "utilização de uma competência em desacordo com a finalidade que lhe preside a instituição". O autor entende que o Estado de Direito deve pautar-se nas regras gerais e impessoais traçadas pelo legislativo, destacando, nesse particular, a relevância do princípio da legalidade estrita, para que a administração fique resumida a cumprir a lei e expresse a vontade popular. O desvio de poder estaria configurado, portanto, quando há a busca de um fim lícito por meio impróprio, ou quando esse fim é buscado à margem de qualquer interesse público, ocorrendo com mais freqüência o exercício do poder discricionário.419

Mello esclarece ser comum o vício de intenção no desvio de poder. Entretanto, afirma não se poder generalizar, pois nem todo desvio de poder traz consigo um vício de intenção tal como perseguição, favorecimentos, nepotismo, dentre outros, decorrendo, por vezes, de uma escolha equivocada do administrador em relação ao real interesse público. Também ensina o autor que há casos de desvios caracterizados pela equivocada sobreposição do administrador à lei, eis que este estaria adstrito aos fins legais e à forma de execução previamente estabelecida. E conclui afirmando que os vícios de intenção, conscientes ou não, resultam de um desencontro objetivo da finalidade legal e da competência que invalida o ato, pois estaria constatado o desvio de poder.420

Na verdade, o que se verifica é um descompasso entre a finalidade a que serviu o ato e a finalidade legal a qual deveria servir, havendo uma dissonância entre a norma abstrata ⎯ lei ⎯ e a norma individual ⎯ ato. Assim, será inválido o ato contrário à lei, não se levando em consideração a intenção do agente de desrespeito ou não à lei, mas o resultado, se a infringiu.

Ocorre desvio de poder por omissão quando o agente deixa de praticar ato que deveria tê-lo praticado para atender ao interesse público. Ele se verifica quando o administrador atua imbuído de sentimentos pessoais, com finalidade diversa da regra de competência que o habilitava. Ao Judiciário cabe também controlar o desvio de poder por omissão.

Nas esferas legislativa e jurisdicional também se detecta o desvio de poder, porquanto, aí, as competências públicas não são propriedade de seus titulares, que ficam obrigados a respeitar a lei e a perseguir a finalidade por ela prescrita. Segundo Brandão, o ato em que se manifesta o desvio de poder obedece a determinante imoral, não se reduzindo a mero

419

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2000, pp. 56-57.

problema de legalidade, ou seja, é principalmente a imoralidade administrativa que afeta a juridicidade do ato concretizador do desvio de poder. O ato imoral conduz a modificações ilícitas da ordem jurídica para atingir fins metajurídicos, que não são fins da Administração.421

Mello assevera ser difícil a prova do desvio de poder, pois se desconhece a real intenção do agente, que normalmente opera de má-fé, dissimulando suas verdadeiras intenções. Cabe ao Judiciário manter-se atento e investigar profundamente as questões postas, para, então, decidir baseado em provas, nas circunstâncias, na inexatidão de motivos alegados, na irrazoabilidade da medida, na discrepância com a conduta habitual da administração em casos semelhantes, na incoerência que se verifica entre as premissas lógicas ou jurídicas apontadas na justificativa e na conclusão, além de indícios convergentes. Em suma, o juiz decide fundamentado no conjunto de elementos antecedentes do ato, os quais lhe vão permitir verificar a real intenção do agente.422

Constitui também forma de ilicitude por ilegalidade a prática de atos e fatos jurídicos por titular de órgão governamental que não tenha, legalmente, poder ou faculdade para tal, ou que atue além dos limites do correspondente conteúdo e comete excesso de poder. Configura, igualmente, excesso de poder e, portanto, ato ilícito, o extravasamento dessas limitações, também sob a forma de atentado à legalidade.

A face patológica da regularidade do exercício do poder se caracteriza pelo abuso do poder. O exercício irregular, abusivo de poder, pode ter-se por incorporado ao conceito de imoralidade administrativa, tomada a noção em um sentido ainda mais lato. Em outras palavras, além da violação das limitações legais do exercício do poder, caracterizada pelo excesso de poder, por ilegalidade estrita, outra via se coloca, a do abuso de poder, por irregularidade lesiva, o que é amplamente condenado pela doutrina e jurisprudência. Na terminologia francesa, ocorre excesso de poder, quando órgãos estatais atuam além da medida, em princípio autorizados pela ordem jurídica, mas constrangendo ou inviabilizando o exercício de direitos e garantias individuais ou coletivos.423

5.2.7. O princípio da eficiência

421

BRANDÃO, Antônio José. Moralidade Administrativa, 2000, p. 79.

422

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2000, p. 108.

A Emenda Constitucional nº 19/98 gerou um processo de mudança no perfil da administração pública até então existente no Brasil. Dentre as inovações, importa destacar a nova redação do caput do artigo 37 da CF que introduziu o princípio da eficiência, com o seguinte teor: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos municípios obedeceráaos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência“. Eficiência significando excelência na qualidade dos serviços públicos ao cidadão.

A respeito, França afirma que o princípio da eficiência foi introduzido na Constituição Federal de forma a oferecer respostas às acusações de praxe contra a administração pública brasileira, tais como a corrupção, nepotismo, baixa qualidade dos serviços públicos, estabilidade do servidor como mordomia, salários exorbitantes etc. Segundo o doutrinador, “o cidadão brasileiro sempre se ressentiu dos serviços públicos que lhe são oferecidos, denunciando continuamente a ineficiência destas atividades estatais através da mídia”.424 De se ressaltar que há casos em que o cidadão necessita recorrer ao Poder Judiciário na busca de providências em razão da omissão ou da resistência à ação da administração pública.

Na verdade, o dispositivo legal da eficiência administrativa, como princípio expresso na Carta Constitucional reformada, constitui norma plenamente exigível e concretizável, vinculando imediatamente o agente público e o cidadão. A propósito, ensina Dallari que “o Poder Público somente cuida daquilo que é essencial e fundamental para a coletividade, e que, portanto, deve ser bom, produtivo, eficaz, eficiente”.425 Daí entendermos que a reclamação pela eficiência da administração pública constitui-se um Direito subjetivo do administrado, do cidadão. Como lembra Morais, o administrado “poderá exigir da Administração Pública o cumprimento de suas obrigações da forma mais eficiente possível”.426

Para França, o administrador observa e respeita o princípio constitucional da eficiência quando a ação administrativa atinge materialmente os seus fins lícitos e, por vias lícitas, segundo o ordenamento jurídico. É preciso que o administrado se sinta amparado e satisfeito na resolução dos problemas que ininterruptamente leva à Administração. Vale dizer que, por

424 FRANÇA,Vladimir da Rocha. Eficiência Administrativa na Constituição Federal, 2000, p. 166.

425 DALLARI, Adílson de Abreu. Administração Pública no Estado de Direito, 1994, pp. 39-40. A respeito, entendemos que o conceito de eficiência é ainda mais abrangente que o de eficácia. A eficácia busca a obtenção dos melhores resultados. Já a eficiência tem os mesmos objetivos, mas ao menor custo social possível.

tal princípio, “toda ação administrativa deve ser orientada para a concretização material e efetiva da finalidade posta pela lei, segundo os cânones do regime jurídico-administrativo”.427

Nesse sentido também Morais quando diz que “o princípio da eficiência dirige-se para a

razão e fim maior do Estado, a prestação dos serviços públicos sociais essenciais à população, visando à adoção de todos os meios legais e morais possíveis para a satisfação do bem comum”.428

A doutrina já mencionava a eficiência ao tratá-la como requisito fundamental do serviço público429 ou como um aspecto relevante para a aferição da razoabilidade na discricionariedade administrativa430. A propósito, na visão de Figueiredo, “é de se perquirir o que muda com a inclusão do princípio da eficiência, pois, ao que se infere, com segurança, à Administração Pública sempre coube agir com eficiência administrativa para seus cometimentos”.431 Apesar desse entendimento, julgamos que o princípio constitucional da eficiência, junto dos demais princípios constitucionais do regime jurídico-administrativo, impõe, sim, o dever da melhor administração. Como lecionam França e Moreira Neto, “não se pode conceber uma administração pública que não tenha a obrigação de ser diligente e criteriosa na busca e efetivação do interesse público consagrado em lei”.432

A eficiência administrativa pode ainda se manifestar relevante no controle da proporcionalidade dos atos administrativos. A despeito de dificuldades no controle judicial de eficiência, trata-se de elemento muito importante para se aferir a presença dos requisitos de necessidade, adequação e razoabilidade na formação do ato administrativo.433

Vale considerar ainda que, há algum tempo, reclamos do cidadão brasileiro se intensificaram quanto à má qualidade dos serviços que lhes são prestados pelo Estado. Assim, não obstante críticas à emenda constitucional nº 19, por parte de alguns estudiosos do Direito, a inserção expressa do princípio jurídico da eficiência possibilita novas visões e alternativas.

Por certo, agora é preciso admitir a inequívoca existência de um Direito subjetivo do cidadão à eficiência administrativa. Daí porque, julgamos, a palavra eficiência deverá sensibilizar efetivamente os titulares da Administração Pública, inclusive quanto à utilização de recursos públicos e, especialmente, os nossos tribunais quando, diante do argumento da

427

Cf. FRANÇA,Vladimir da Rocha. Ob. cit., p. 168.

428

MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional, 1999, p. 294.

429 Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 1997, p. 78.

430 Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade, 1991, p. 57. 431 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo, 2000, p. 60.

432 FRANÇA, Wladimir da Rocha. Eficiência Administrativa na Constituição Federal, 2000, p. 169; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade, 1991, p. 55.

433

eficiência administrativa, irão decidir sobre eventuais conflitos entre Administração Pública e administrado.

Mancuso bem expõe o sentido do termo “política pública” quando aduz tratar-se de conduta da Administração Pública voltada à consecução de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal, sujeita ao controle jurisdicional quanto à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos resultados alcançados. Segundo o autor, no Estado Social de Direito, a promulgação de uma lei não significa um “fim em si”, mas a criação de um “mero instrumento de governo, um começo de obrigações a serem adimplidas, de condutas a serem implementadas, a par das correspondentes responsabilidades administrativas e políticas atribuídas ao Estado e aos seus agentes”.434

É necessário, portanto, que o Poder Público persiga os meios adequados para implementar efetivamente os objetivos estabelecidos. Nesse sentido, “as políticas públicas demandam principalmente o gerenciamento pelo Estado, podendo sua implementação ser realizada em parcerias com a sociedade civil”.435