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A descaracterização dos meta-princípios tutelares

No documento Direito do trabalho em perspectiva : (páginas 157-160)

A DESCARACTERIZAÇÃO DA REGULAÇÃO TUTELAR DO TRABALHADOR

Fins 1 Desregulam entação e re-regulam entação

4.2.3. A descaracterização dos meta-princípios tutelares

No segundo capítulo, buscou-se abordar os princípios de Direito do Trabalho a partir de perspectiva sistêmica complexa, de permanente interatividade com a sociedade. Segundo essa abordagem, os princípios refletem os elementos (valores) emitidos pela sociedade ao Direito, bem como um padrão de relações estabelecidas entre o conteúdo de suas normas internas a partir da integração deste elemento valorativo emitido pela sociedade, para a qual acaba retornando sob a forma de normatividade jurídica.

À época de seu surgimento, o Direito do Trabalho refletia a consagração de um grande pacto social, possível pela consolidação do fordismo-keynesianismo, tendo como característica básica a inserção do Trabalho, ao menos no projeto de desenvolvimento sócio-político-econômico. Sendo assim, ao direito foi possível recolher e consolidar princípios como o da continuidade da relação de emprego - o que foi permitido pela estrutura “rígida” da organização fordista de produção - e o da tutela, meta-princípio juslaborista - o que foi permitido somente com o reconhecimento da classe trabalhadora como agente social ativo no processo instituinte de direitos na dinâmica social.

Com a passagem para o capitalismo desorganizado, o pacto social referido se desmancha. Com isso, o Direito do Trabalho nos moldes tutelares vai aos poucos perdendo sua sustentabilidade e, portanto, transformando-se335. Anteriormente, viu- se que a principal função normativa do Direito do Trabalho era não deixar que a

conciliando, através da resolução de sucessivos conflitos, o Direito Público e o Direito Privado.” GENRO, Tarso. Reflexão Prelim inar sobre a Influência do Neoliberalismo no Direito. In ARRUDA JUNIOR, Edm undo Lima de e RAMOS, Alexandre (orgs.). Globalização, Neoliberalism o e o Mundo do

Trabalho. Curitiba: IBEJ, 1998, p. 34. Grifado no original.

335 Segundo RUIZ, “(...) o reconhecimento da condição hipossuficiente do trabalhador, a vigência do princípio protetor, a distinção de uma Ordem Pública Laborai e a ftmção do Estado na consagração de um nível básico de garantismo, constituem notas essenciais do Direito do Trabalho que não podem estar ausentes sem pôr em risco sua própria existência.” Em outras palavras, ao não estarem presentes, tais elementos desconstituem o Direito do Trabalho clássico. DANIEL RUIZ, Alvaro. Conflicto Social, Crisis Econom ica y Derecho dei Trabajo. In ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de e RAMOS, Alexandre (orgs.). G lobalização, Neoliberalism o e o Mundo do Trabalho. Curitiba: IBEJ, 1998, p. 53. [No original: “(...) el reconocimento de la condición hipossuficiente dei trabajador, la vigência dei principio protectorio, la distinción de um Orden Público Laborai y la función dei Estado en la consagración de um nivel básico de garantismo, constituyem notas essenciales dei Derecho dei Trabajo que no pueden estar ausentes sin poner en riesgo su existencia misma.”]

diferença sócio-econômica entre empregado e empregador aumentasse. Atualmente, não se consegue visualizar esta função normativa, ao menos nas normas mais recentes, pois as mesmas vão no sentido de desconstrução de garantias clássicas, ou seja, justamente em um movimento contrário.

Os grandes princípios tradutores da lógica do Direito do Trabalho sempre foram o da proteção e o da progressão. Como visto, os referidos princípios inspiravam-se no propósito de estabelecer um anteparo normativo preferencial ou preservacionista ao trabalhador. Contrapunha-se, dessa forma, à igualdade formal estabelecida pelo regramento contratual civilista burguês, que se inspirava na soberania de contratar e que conferia à lei um caráter suplementar. No entanto, as transformações normativas inspiradas pela flexibilização em curso vão no sentido de reaproximar a regulação da relação de trabalho à lógica civilista, restringindo o caráter imperativo predominante no ordenamento juslaborista (desregulamentação e incentivo à negociação coletiva), mas enfocando privilegiadamente o aspecto da economia de mercado, transformando o Direito do Trabalho de um direito visando a distribuição da riqueza para um direito que visa apenas a produção de riqueza336

Esta afirmação é facilmente constatável na crescente divergência entre os princípios clássicos do Direito do Trabalho e a sua atual configuração a partir da recaracterização dos valores normativos circundantes da inserção do trabalhador no mercado de trabalho. No grande cenário social, o trabalho vem passando por um processo de desprestígio que se traduz, no plano jurídico-normativo, na descaracterização da regulação jurídico-social do trabalhador. Atualmente, continuidade da relação de emprego, irredutibilidade salarial ou mesmo tutela do trabalhador - meta-princípio de Direito do Trabalho - apresentam-se como institutos bastante debilitados. O mesmo vale para a idéia de progressão social através de melhorias contínuas na condição social dos trabalhadores.

Em um processo que, segundo OFFE, é denominado sociologicamente como “teorema de Thomas”337, o processo de desconstrução da lógica tutelar de regulação

336 Vide BARROS, Cassio Mesquita. Flexibilização do Direito do Trabalho. Revista LTr. São Paulo, v. 59. n. 08, ago. 1995, p. 1035-1038.

337 O FFE descreve o “Teorema de Thom as” da seguinte forma: “(...) o que é real na mente e na percepção das pessoas será real nas suas conseqüências. Aposição de poder estrutural dos proprietários, gerentes e representantes associados ao capital numa sociedade capitalista é exatamente o poder que eles têm de definir a

do trabalho vai consolidando-se nas instituições jurídico-políticas sem encontrar maiores resistências no seio social338. Traduzindo para a abordagem sistêmica dos princípios, a sociedade não informa mais ao direito valores de proteção especial aos trabalhadores (descaracterizando-os enquanto princípios), bem como este também não mais os remete à sociedade, ou mesmo os nega. Em outras palavras, sendo (1) o Estado providência identificado como o grande responsável pela crise econômica dos países, “opressor da liberdade humana” como defende o neoliberalismo, (2) o trabalho não mais uma categoria central na dinâmica social atual como defendem algumas teses e (2) a regulação tutelar do trabalhador um entrave à competitividade econômica em tempos de acirrada concorrência global (no Brasil, é comum se ouvir que o Direito do Trabalho é um dos grandes responsáveis pelo “custo Brasil”, expressão largamente difundida para designar a falta de competitividade da economia nacional339), não há como sustentar uma regulação tutelar do trabalhador, por menos tutelar que tenha, na prática, revelado-se.

Assim, o Direito do Trabalho tutelar descaracteriza-se. Nesse sentido, GENRO já percebe uma contraposição entre o que pode ser chamado de “Direito do Trabalho clássico” (tutelar) e o que pode ser chamado de “Direito do Trabalho atual” (flexível). Enquanto o primeiro buscava a socialização do emprego e do salário, o segundo busca a elitização dos mesmos; enquanto o primeiro buscava organizar limites humanizadores para a inserção do trabalhador na lógica de exploração tipicamente capitalista, o segundo parece incorporar novas formas de superexploração advindas com o capitalismo desorganizado. Em suma, enquanto o

realidade de uma forma altamente conseqüencial, de forma que o que é percebido por eles como ‘real’ pode ter um impacto muito real para as outras classes e para os atores políticos.” OFFE, Claus. A Democracia Partidária Com petitiva e o W elfare State Keynesiano: fatores de estabilidade e desorganização.

Dados - Revista de Ciências Sociais, p. 47. Grifado em original.

338 “O processo atual funde no Direito Público o interesse universal da reprodução do capital financeiro (interesses privados ultra-restrilos) em nome da humanidade. A sociedade toda se move neste sentido como

que hipnotizada pelo consumo improvável, alimentada pela mídia subordinada, “fetichizada” por uma competição em que não se salte quem é o adversário, que nos espreita e estimula”. GENRO, Tarso. Reflexão Prelim inar sobre a Influência do Neoliberalismo no Direito. In ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de e RAMOS, Alexandre (orgs.). Globalização, Neoliberalismo e o Mundo do Trabalho, p. 34.

Grifado em original.

339 Ressalte-se, neste tópico, a falácia desta afirmação. O chamado “custo Brasil” é form ado em sua maioria por encargos estranhos à relação laborai. No Brasil, conforme pesquisa da UNICAMP, a média do salário-hora, acrescido de encargos sociais, é de U$ 2,70, enquanto que no Japão é de U$ 16,00, nos EUA é de U$ 17,00 e na Alemanha é de U$ 24,00. Vide SILVA, Reinaldo Pereira e. O Neoliberalism o e o Discurso da Flexibilidade dos Direitos Sociais Relativos ao Trabalho. In ARRUDA JUNIO R, Edmundo Lima de e RAMOS, Alexandre. Globalização, Neoliberalism o e o Mundo do

primeiro representava uma cláusula resultante daquele grande pacto sócio-político- econômico consolidado, e exercia uma função organizadora e reguladora da exploração da força de trabalho, o segundo parece delegar esta função organizadora e reguladora para a lógica de mercado.340

Se antes, portanto, o Direito do Trabalho revelava em seus princípios uma dupla perspectiva de preservação tão contraditória como é o próprio sistema capitalista - preservação deste indiretamente e do trabalhador diretamente - hoje, parece estar revelando em seus princípios outra dupla perspectiva mais coerente com a lógica da exclusão: preservação do sistema capitalista e dos interesses exclusivos do Capital.

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