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Reformulação do modo de inserção do trabalhador no mercado de trabalho

No documento Direito do trabalho em perspectiva : (páginas 135-140)

A DESCARACTERIZAÇÃO DA REGULAÇÃO TUTELAR DO TRABALHADOR

4.2. Reformulação do modo de inserção do trabalhador no mercado de trabalho

A emergência de uma (des)ordem social a que Boaventura Santos, com visto supra, denomina fascismo societal tem ligação imediata com a desconstrução da tutela jurídico-social por parte do Estado para com os grupos sociais desprivilegiados na pirâmide social. Isso não quer dizer que antes do movimento de flexibilização tomar força o mercado de trabalho brasileiro não se caracterizasse por grandes níveis de exclusão. Pelo contrário: informalização do trabalho, precarização das relações, não observância de direitos minimamente garantidos sempre fizeram parte da nossa realidade. A grande questão é que antes o ordenamento jurídico, enquanto regulação tutelar ideal do mercado de trabalho, procurava coibir estas práticas, como se pôde apreender no segundo capítulo. Agora, a normatividade jurídica parece incorporar gradualmente o que antes representavam distorções do sistema, de modo que deixam de se caracterizar como distorções, oficializando-as e incentivando-as como práticas reconhecidas pública e institucionalmente.

A ênfase de se consagrar um ordenamento jurídico laborai flexível no Brasil vem na esteira do movimento global de economização das discussões politico- sociais. A tese da flexibilização tomou força inicialmente na Europa, devido à perda

271 Apresenta-se esta afirm ação com base na noção de que nenhum ramo do direito pode ser desenvolvido satisfatoriam ente se não estiver sustentado em princípios próprios, uma vez que estes constituem proposições diretoras de qualquer ramo científico. Toda a lógica que direciona os princípios do Direito do Trabalho volta-se para a proteção do trabalhador e desta form a caracteriza peculiarm ente este ramo do direito. Modificando-se esta lógica, segundo o raciocínio, há a construção de um novo conjunto de princípios e a caracterização de um novo ramo do direito.

de competitividade de seus produtos em função dos encargos sociais financiados pelo sistema produtivo. Embora o contexto sócio-político-econômico europeu não guarde muitas semelhanças com o dos países periféricos, em função principalmente da existência de um efetivo aparato de bem estar e de um forte nível de organização sindical272, as idéias sobre flexibilização não tardaram a ser introduzidas no contexto brasileiro.

Segundo SEQUEIRA NETO:

“A justificativa fundamental da flexibilidade das normas trabalhistas - segundo seus adeptos - é a imperiosa e inexorável adaptação do país aos padrões da concorrência internacional travada em uma realidade de economia globalizada. Nessas circunstâncias, o direito do trabalho brasileiro é definido como excessivamente rígido, estimulador de conflitos e inibidor da produtividade, caracterizado pelo intervencionismo exacerbado do Estado e, portanto, insuscetível de viabilizar uma regulamentação do trabalho capaz de atender (...) à dinâmica desse admirável mundo novo”2 3

A solução oferecida para superar esta alegada “rigidez” assenta-se na redução dos Direitos Sociais, em especial os Trabalhistas, muitas vezes pincelada por um caráter pseudo-democrático, visto que combinada com o incentivo das negociações coletivas de trabalho para o estabelecimento da flexibilização de direitos. O caráter pseudo-democrático deve-se tanto ao fato do incentivo à negociação coletiva vir em paralelo a um movimento de desestabilização dos movimentos sindicais274, como ao fato do fantasma do desemprego, que assola o mundo atualmente, forçar a classe

272 V ide CORNAGLIA, Ricardo. J. La Flexibilidad y el Orden Publico Laborai. Derecho dei Trabajo

- Revista Crítica Mensual de Jurisprudência, Doctrina y Legislacion, Buenos Aires, n.6, tomo

XLVIII-A, p. 883-890, ju n .1988.

273 SIQ U EIR A NETO, J. Francisco. Direito do Trabalho e Flexibilização no Brasil. São Paulo em

Perspectiva - Flexibilidade, em pregabilidade e direitos, p. 33.

274 Note-se que esse movimento, ao contrário do que ocorre com relação à norm atização do contrato de trabalho, não é perceptível no plano regulatório. Nesse sentido, DEDECCA afirma haver uma mudança drástica na dinâmica das negociações coletivas, deslocando a centralização que lhe era característica para as realizadas no âmbito da empresa. “Na maioria dos países desenvolvidos, e mesmo nos em desenvolvimento, a estrutura sindical manteve-se intocada, apesar das mudanças radicais observadas na dinâmica das negociações coletivas.” Segundo o autor, esse processo vai de encontro ao processo de transform ação das relações de trabalho em relações contratuais privadas, bem como de increm ento da assimetria das partes na relação de trabalho. É, em suma, um processo de troca da regulação social pela privada. Vide DEDECCA, Cláudio Salvadori. A quem interessa a flexibilização das relações de trabalho? Revista Debate Sindical, São Paulo, a. 13, n. 30, p. 50-54, jun./jul./ago. 1999.

trabalhadora a abrir mão gradativamente de seus direitos em qualquer processo auto-regulador275.

O período compreendido entre o pós-guerra e o início da década de 1970 foi considerado a “época de ouro do capitalismo”, ao menos nos países centrais. Nessa época, houve a combinação equilibrada entre crescimento econômico e pleno emprego, combinação sustentada por uma intervenção ativa do Estado, com a resultante elevação dos níveis de produtividade e de distribuição de renda276.

No entanto, a partir da década de 1970, a reestruturação capitalista vem causando profundo impacto sobre a institucionalização jurídico-política anterior, rompendo não apenas com o paradigma produtivo e tecnológico, mas também com os mecanismos de gestão social e de regulação do trabalho até então consolidados. Na regulação do trabalho, o impacto destas restruturações é inevitável: este “(...) assistiu a uma imponente reestruturação capitalista que redesenhou a geografia das atividades produtivas e, conjuntamente, a tipologia das formas do emprego da mão-de-obra; terciarizou a economia e convulsionou o mercado de trabalho, mundializou os mercados e produtos e

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modificou, por efeito das novas tecnologias, também os trabalhos tradicionais.”

Nesse contexto mundial, investe-se também no Brasil contra toda forma de regulamentação estatal e contratual fora dos limites da empresa para que a mesma não tenha restringida sua autonomia ou elevados os custos da produção. Enfatiza- se a competitividade no cenário capitalista global. Fortalecem-se, assim, as teses que propugnam a flexibilização do Direito do Trabalho.

275 No m esm o sentido, CUNHA afirma que “(...) diante da dura realidade brasileira, face ao desemprego massivo, os empregados, os desempregados, ou na eminência de o serem, aceitam trocar a aquisição ou a manutenção de um emprego pela dispensa de algumas benesses asseguradas pela legislação trabalhista, muitas vezes comprometendo o mínimo de dignidade humana que essa legislação buscou assegurar durante a evolução do Direito do Trabalho.” CUNHA, Hilda Maria Brzezinski da. Vantagens e Desvantagens da Flexibilização do Direito do Trabalho no Brasil. R evista do TRT da 9a R egião, Curitiba, v. 22, n. 02, jul./dez.1997, p. 174.

276 Segundo MÁRCIO POCHMANN, em palestra ministrada no III Seminário Internacional “A Crise do C apitalism o Globalizado na Virada do M ilênio” realizado nos dias 18 a 22 de outubro de 1999, em Porto Alegre, enquanto a quantidade total de arrecadação fiscal no primeiro estágio do capitalismo representava aproxim adamente 15% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países, no segundo estágio, passou para algo em torno de 37 a 55%. Com este crescimento na arrecadação, aproxim adam ente 6 em cada 10 em pregos (60%) eram criados com financiam ento público no pós-guerra.

O processo de flexibilização em curso no Brasil, portanto, corresponde a uma nova (des)ordem social que sustenta a eliminação de grande parte das normas trabalhistas por entender que as mesmas representam entrave à competitividade e ao crescimento da economia de mercado, estes últimos tidos pelo Capital hegemônico como premissas para o desenvolvimento e a elevação do nível de vida. Constitui-se um uma das principais medidas de estabilidade econômico-social na ótica do receituário neoliberal. Para se entender esta afirmação, há que se ter em mente que a “(...) estabilidade de que fala o consenso neoliberal é sempre a das expectativas dos mercados e dos investimentos, nunca é a das expectativas das pessoas. Aliás, a

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estabilidade dos primeiros só é obtível à custa da instabilidade das segundas.”

As teses neoliberais contrapõem-se ao sistema de mercado de trabalho estruturado através de políticas públicas ou de negociações coletivas realizadas fora do âmbito restrito da empresa. A proposta flexibilizadora, portanto, tem o intuito de eliminar ou adaptar, de acordo com os casos, a proteção trabalhista clássica para aumentar o emprego e/ou a competitividade internacional. Na prática, no entanto, vem traduzindo-se em um processo de legitimação pelo Estado do dano social.

4.2.1. Flexibilização e desregulamentação

SIQUEIRA NETO faz uma distinção inicial entre flexibilização e desregulamentação, dois conceitos muito utilizados no processo de restruturação do mercado de trabalho brasileiro. Segundo o autor, “(...) desregulamentação dos direitos trabalhistas é o processo pelo qual os mesmos são derrogados, perdendo a regulamentação. A

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desregulamentação, na verdade, é um tipo de flexibilização promovida pela legislação.” Nesse sentido, a desregulamentação traduz um determinado ideal de política pública que busca tornar as empresas mais competitivas, possibilitando que as mesmas adotem os paradigmas organizacionais flexíveis no que se refere ao recrutamento de

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SANTOS, B. de Souza. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualism o e o pós- contratualism o. OLIVEIRA, Francisco de e PAOLI, Maria Célia. Os Sentidos da Dem ocracia, p. 101.

mão-de-obra, o que antes era dificultado pela “rigidez” característica dos Direitos Trabalhistas.

Já flexibilização do Direito do Trabalho é “(...) o conjunto de medidas destinadas a afrouxar, adaptar ou eliminar direitos trabalhistas de acordo com a realidade econômica e produtiva. Ao menos em tese, não necessariamente todo tipo de flexibilização demanda uma desregulamentação. ”280

Note-se que flexibilização denota um sentido amplo, que pode traduzir-se em várias possibilidades, embora todas contestando a “rigidez” que, segundo os seus adeptos, caracteriza o Direito do Trabalho clássico281. Por um lado, pode significar mera adaptabilidade das questões relativas à produção e às mutações do contexto sócio-político-econômico, sem, necessariamente, subordinação de interesses e expectativas. Ao contrário, poderia até significar formas de tutela mais próximas da realidade. Novos paradigmas de produção, novas exigências de política econômica e outros fatores pautariam a necessidade de adaptar-se o marco regulatório do mercado de trabalho às mudanças em curso.

Nesse sentido, a flexibilização pode revestir-se de instrumento de desenvolvimento econômico-social ao ter como premissa fundamental a negociação coletiva.282 Segundo SIQUEIRA NETO, “(...) é inegável que a flexibilidade interna impulsionada pela negociação coletiva pode transformar-se em relevante instrumento de vitalidade econômica. Isto, porém, somente será viabilizado por intermédio da negociação coletiva de trabalho desenvolvida em todos os níveis, partindo-se, evidentemente, das diretrizes básicas estabelecidas pelo nível superior (ramo de atividade) em direção ao particular (empresa).” 283 Para que esta espécie de flexibilização ocorresse no Brasil, haveria a necessidade da restruturação da organização dos trabalhadores, de modo

280 SIQ U EIR A NETO, J. Francisco. Op. cit., p. 36. 281 V ide CUNHA, Hilda Maria B. da. Op. cit., p.158-198.

Provavelm ente seja nesta perspectiva que muitos autores, como NASSER e ROBORTELLA, desenvolvem seus conceitos sobre o fenôm eno da flexibilização. Vide NASSAR, Rosita de Nazaré Sidrim . Flexibilização do Direito do Trabalho. In RODRIGUES, Aluísio (coord.). Direito C onstitucional do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997. v. II, p. 88-89; e ROBORTELLA, Luiz Carlos

Am orim . O Moderno Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1994, p. 128-129. 283 SIQ UEIRA NETO, J. Francisco. Op. cit., p. 40.

a fortalecer e valorizar os sindicatos no processo de negociação, bem como um Estado comprometido com a questão social, de modo a garantir direitos mínimos.

Por outro lado, a flexibilização pode revelar-se, como parece estar na prática brasileira, um mecanismo de inquestionável conteúdo ideológico do tipo “não há alternativa”. Nesse sentido, a flexibilização traduz-se em um pretenso discurso a- político, mas que no fundo tem como base a subordinação da regulação estatal à valorização do livre mercado como marco regulatório social. Daí a sua vinculação à desregulamentação ou à re-regulamentação. Ao se traduzir na prática dominante, esta noção de flexibilização “(...) tem sido imposta à classe trabalhadora centrada em apenas aspectos concretos da regulação jurídica do contrato de trabalho, não promovendo um discurso amplo, capaz de abranger, além das mudanças no modelo de organização do trabalho e da produção, a preocupação ecológica com o modelo vigente de consumo e

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com a utilização do tempo livre do homem substituído pela máquina.”

Ao abarcar esse amplo espectro de sentidos, é possível se estabelecer uma classificação sobre a flexibilização. O quadro a seguir sistematiza a questão:

i - .. ■■ -... . ■■

i Proteção - surgimento de novos direitos Fins ' Adaptação - modificação de direitos clássicos

] Desregulam entação - derrogação de direitos CLASSIFICAÇÃO DA

FLEXIBILIZAÇÃO Objeto

i Interna - aspectos internos ao contrato de trabalho

[ (jornada, horário, condições de trabalho) 1

i Externa - aspectos externos ao contrato de trabalho

\ (entrada e saída do mercado de trabalho)

Forma

, --- --

i Autônom a - flexibilização negociada

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