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1. O MOVIMENTO PELA INTERDISCIPLINARIDADE

1.5. A DESCONSTRUÇÃO DO DISCURSO DO MOVIMENTO PELA

No texto Currículo e interdisciplinaridade (VEIGA-NETO,1997), uma síntese das idéias defendidas em sua tese de doutorado (idem, 1996), Veiga-Neto relata brevemente as mudanças na concepção de currículo, desde que o termo surgiu no século XVI até a atualidade, estabelecendo diferenças entre as denominadas correntes de estudos internalistas – que dão maior importância ao conteúdo e metodologia curriculares - e externalistas - entendimento do currículo num contexto mais amplo envolvendo fatores sociais, históricos, psicológicos entre outros.

Esse mapa dos estudos curriculares, na verdade, serve apenas de pano de fundo para seu objetivo central: analisar, sob uma perspectiva pós-estruturalista, o discurso de um outro movimento curricular que, segundo o autor (1997, p. 57), correu paralelo às discussões críticas sobre currículo iniciadas na década de 70, e que se aproxima dos estudos internalistas: o movimento pela interdisciplinaridade.

Veiga-Neto (1996, 1997) centra sua análise, principalmente, nos discursos de Japiassu (1976) e Fazenda (1979), os precursores do movimento no Brasil. Neste sentido, sua primeira crítica refere-se a duas características que, a seu ver, prejudicam o movimento: sua fundamentação epistemológica e a desarticulação argumentativa que sustenta seu discurso.

Os estudos epistemológicos desenvolvidos pelo movimento chegaram à conclusão de que a fragmentação do saber, configurada na diversidade de disciplinas e na falta de inter- relação entre elas, constituía-se numa “grave doença”, para a qual o único remédio seria a maior articulação entre as disciplinas. Neste ponto, Veiga-Neto considera que o movimento instaura uma epistemologia transcendental, que ignora outros fatores externos à aplicação pedagógica de uma teoria.

Veiga-Neto (1996, 1997) detecta no movimento pela interdisciplinaridade uma conjunção entre ambição e modéstia programática, um dos motivos do insucesso do movimento, que, apesar de ter adquirido status no meio educacional, não se estabeleceu como uma prática coerente e fundamentada. Isso porque, segundo o autor (1997, p. 75), apesar de apresentar um discurso ambicioso que visa à solução para diversos males do mundo moderno,

seus objetivos são modestos, pois não vislumbram nenhuma mudança social, nem questionam as relações entre escola, currículo e cultura.

Do seu fundamento programático, ou seja, do emolduramento iluminista e epistemológico que o movimento escolheu para si, resultam a sua postura otimista e ambiciosa quanto as suas dificuldades em se estabelecer como prática não-discursiva.

Veiga-Neto (1996, 1997) destaca como problemático o enquadramento iluminista dos discursos que sustentam a interdisciplinaridade pois, apesar de partirem de denúncias de crises comuns ao mundo moderno, limitam-se ao plano epistemológico que sozinho não pode dar conta da compreensão e muito menos da solução dessas crises. Para o autor, contraditoriamente ao que deseja, o discurso em prol da interdisciplinaridade caracteriza-se como iluminista ao demonstrar fé na razão e inter-relação entre essencialismo, melhorismo e noção de uma história progressiva, fundamentadas na crença de que a adoção da interdisciplinaridade solucionaria as crises mundiais e aproximaria o homem de sua essência, em busca de um mundo melhor.

Veiga-Neto (1997, p. 90) também considera que o ideal de totalidade almejado pelo movimento demonstra uma busca a um método único, considerado “um caminho seguro para um saber seguro.” Neste caso, para o autor, esse discurso revela um retrocesso ao programa cartesiano tão criticado pelos adeptos da interdisciplinaridade.

Além disso, a idéia de totalidade leva a uma contradição dentro do próprio movimento, já que “um saber total é a antítese de um saber disciplinar. Então uma interdisciplinaridade radical vem a ser uma antidisciplinaridade” (idem, p. 91). Nesse sentido, adotar a interdisciplinaridade levaria ao fim do próprio movimento, considerando-se que, para existir inter é preciso que existam disciplinas.

Para o autor (1997, p. 92) não é surpresa a dificuldade no alcance da totalidade, pois a disciplinaridade, como demonstrou Foucault é um procedimento interno de controle e delimitação de discursos que, ao imprimir em cada um uma maneira de conhecer, produz um tipo de sujeito. A disciplinaridade, portanto, mais do que uma questão epistemológica é constitutiva da própria Modernidade. Sendo assim, qualquer tentativa de mudança nessa

estrutura não pode ser feita apenas pela via epistemológica e envolve esforços que vão além das mudanças curriculares.

O autor também ressalta que estudos mais recentes sobre a interdisciplinaridade têm se preocupado em superar o aprisionamento epistemológico do movimento, articulando novas práticas pedagógicas interdisciplinares e incorporando elementos da sociologia, da politicologia, do construtivismo e da antropologia às discussões sobre interdisciplinaridade. No entanto, para Veiga-Neto, em sua maioria, os estudos permanecem num nível internalista que não questiona os problemas sob um olhar externo.

Os estudos de Paviane e Botomé (1993) são os únicos apontados pelo autor como adeptos de uma perspectiva diferente das demais no campo dos estudos em prol da interdisciplinaridade. Esses autores consideram que a compartimentação do conhecimento é produto da maneira pelo qual o conhecimento é produzido e, sendo assim, “as disciplinas são um constructo histórico e politicamente determinado e não um “desvio” de uma pretensa natureza da faculdade humana de pensar e conhecer.” (in: VEIGA-NETO, 1997, p. 85)

Neste caso, Paviane e Batomé (1993) conseguiram deslocar a análise sobre a disciplinaridade, no campo filosófico, de uma pretensa natureza da razão para uma construção histórica. Ao contrário, o movimento pela interdisciplinaridade, de forma geral, revelou-se problemático, pois deslocou a natureza da razão para a atitude, ao mesmo tempo em que ancorou seu discurso numa epistemologia transcendental e reduziu a interdisciplinaridade a uma questão de sensibilidade.

As críticas de Veiga-Neto (1996, 1997) são bastante incisivas ao revelar as inconsistências do discurso propalado pelos pesquisadores da interdisciplinaridade. Realmente em suas concepções iniciais, faltou ao movimento uma maior preocupação com outros fatores externos ao processo epistemológico e pedagógico. Houve até mesmo um exagero na confiança de que uma mudança curricular instauraria uma mudança no próprio mundo, embora saibamos que, de certa forma, a configuração curricular revela a sociedade que se pretende construir ou manter.

A despeito das críticas acertadas, a perspectiva pós-estruturalista adotada por Veiga- Neto (1996, 1997) desconstrói em demasia o discurso interdisciplinar. É certo que há

contradições e inconsistências inerentes ao discurso do chamado movimento pela interdisciplinaridade, mas não nos parece que este pretenda eliminar a estrutura disciplinar do currículo, mas apenas buscar meios de aproximá-las, para que a prática pedagógica não se torne uma imensa colcha de retalhos, como vem acontecendo no sistema de ensino brasileiro. A partir do momento em que uma disciplina é ensinada apenas como uma matéria dissociada da vida do aluno, e das demais disciplinas o sentido do aprender resume-se à aprovação em testes que, por sua vez não comprovam, nem garantem a aprendizagem.

Embora se saiba que nenhum currículo escolar vai garantir, por si só, a transformação social, o aporte a várias disciplinas para solucionar problemas não deve ser considerado apenas utopia, slogan ou falácia. Na verdade, Veiga-Neto (1997, p. 82/83) deixa explícita a idéia de que o movimento pela interdisciplinaridade precisa deslocar o olhar para fora da moldura do quadro, para que tenha condições de superar o nível discursivo.

[...] compreender em que medida nos aprisionamos na idealidade de nossos discursos não é condição suficiente para mudar o mundo, mas é uma condição necessária. E se quisermos, como educadores, lutar pelas utopias, é preciso que lutemos para que aconteçam neste nosso mundo e não no mundo abstrato das idéias.

Recriminação ou conselho, a crítica de Veiga Neto sobre o movimento pela interdisciplinaridade provoca uma reflexão e uma revisão de suma importância para os interessados no assunto. Afinal, se existe a crença em um ensino interdisciplinar é preciso que seus objetivos estejam claros e se realizem “neste nosso mundo”.