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INTERDISCIPLINARIDADE: UMA SOLUÇÃO PARA A FRAGMENTAÇÃO

1. O MOVIMENTO PELA INTERDISCIPLINARIDADE

1.1. INTERDISCIPLINARIDADE: UMA SOLUÇÃO PARA A FRAGMENTAÇÃO

Um dos primeiros estudos brasileiros sobre a temática da interdisciplinaridade, trata-se de Interdisciplinaridade e patologia do saber e data de 1976. Nesse texto, parte da tese de doutorado defendida na França por Hilton Japiassu, a interdisciplinaridade é concebida como uma solução para o esfacelamento do saber instaurado pelo positivismo. Já no título da obra, o autor (p. 30) destaca o campo semântico de “doença”, a falta de integração dos saberes é considerada uma patologia, um mal a ser execrado.

O número de especializações exageradas e a rapidez do desenvolvimento de cada uma culminam numa fragmentação crescente do horizonte epistemológico (...) o saber em migalhas [é] o produto de uma inteligência esfacelada

Conforme ressalta o próprio autor (p. 29), o objetivo geral da obra é fornecer elementos e instrumentos conceituais básicos para a conscientização do “lugar real da posição e do tratamento dos principais problemas epistemológicos colocados pelas ciências humanas, do ponto de vista de suas relações interdisciplinares”. Para o autor, a interdisciplinaridade é uma exigência interna dessas ciências, “uma necessidade para uma melhor inteligência da realidade que elas nos fazem conhecer” (idem).

Japiassu (1976) parte de uma perspectiva epistemológica, tentando afirmar a necessidade de uma mudança na concepção de conhecimento, pois, para ele, a fragmentação do saber tem levado o mundo a um desequilíbrio. Constatamos que o autor, baseado

principalmente nas idéias de Gusdorf (1967, 1974)5, um dos precursores dos estudos

interdisciplinares na França, relaciona o desequilíbrio do mundo à questão epistemológica, não fazendo muitas considerações acerca do contexto histórico no qual a necessidade de uma mudança curricular se faria presente. Além disso, apesar de propor uma metodologia interdisciplinar, Japiassu (p. 35) considera que a interdisciplinaridade parte, primeiramente, da observação e sensibilidade do indivíduo.

5 GUSDORF, G. “Projet de recherche interdisciplinaire dans les sciences humaines”. In: Les sciences humaines. Universidade de Strasbourg, 1967.

É preciso que cada um esteja impregnado de um espírito epistemológico suficientemente amplo para que possa observar as relações de suas disciplina com as demais, sem negligenciar o terreno de sua especificidade.

Por ser um conceito novo na época, o enfoque ao objeto interdisciplinar não se mostra muito claro ao autor. Em vários momentos, ao lado da afirmação da necessidade de definir uma metodologia interdisciplinar, Japiassu (1976) reafirma a dificuldade de concretizá-la, justificando que o domínio do interdisciplinar é “vasto e complexo”, “é um projeto difícil de ser estabelecido com rigor” e, além disso, é preciso que seus adeptos estejam impregnados de um “espírito epistemológico”.

Entre os maiores problemas para superar a fragmentação do saber, Japiassu (1976, p. 61) destaca a dificuldade de definição de um método adequado e interdisciplinar, já que o método em si implica certa redução do objeto. O autor destaca que, enquanto nas ciências naturais há acordo quanto à definição do método a ser utilizado, o mesmo não ocorre nas ciências humanas.

Falar em “interdisciplinaridade” implica uma definição de “disciplina” que, para o autor, possui o mesmo sentido de “ciência”, assim como “disciplinaridade” significa a exploração científica especializada de determinado domínio homogêneo de estudo. O autor reconhece que ainda não há um sentido epistemológico “único e estável” para o termo interdisciplinar.

Embasado em autores como Michaud, Heckehausen, Piaget e Erick Jantsch, Japiassu (1976, p. 32) acredita que a questão da interdisciplinaridade parte de uma gradação, que se diferencia conforme a intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integração real das disciplinas, no interior de um projeto de pesquisa. Para o autor (p. 75), “o fundamento do espaço interdisciplinar deverá ser procurado na negação e na superação das fronteiras disciplinares”.

Como último grau de integração, Japiassu (1976) cita a transdisciplinaridade, termo novo na época, recém cunhado por Piaget (Apud JAPIASSU, 1976, p. 75) para definir uma etapa superior à interdisciplinaridade, na qual haveria um sistema total, sem fronteiras disciplinares. Assim como o próprio Piaget, Japiassu (p. 81) considera tal etapa um objetivo distante, quase uma utopia, principalmente pela falta de determinação de um único conceito

de interdisciplinaridade: “Não podemos alimentar ilusões: ainda está por ser construída uma teoria do interdisciplinar”.

Em várias partes do texto, o autor (1976, p. 92) reafirma a dificuldade de execução de um trabalho verdadeiramente interdisciplinar, pois este precisaria passar por algumas fases: 1. informação mútua, em que cada especialista considera o outro como exterior a si mesmo; 2. cada especialista entrevê as questões que os outros colocam; 3. tomada de consciência coletiva das questões em jogo.

Segundo Japiassu (1976, p. 93), o interdisciplinar passa por vários obstáculos epistemológicos: resistências dos especialistas; inércia das situações adquiridas e das instituições de ensino e de pesquisa que continuam a valorizar a especialização; a pedagogia que só leva em conta a descrição ou análise objetiva dos fatos observáveis para deles extrair leis funcionais; o não questionamento das relações atuais entre as ciências humanas e as ciências naturais. Outro obstáculo colocado é a idéia de que a interdisciplinaridade levaria a uma postura de síntese, cuja disciplina especializada seria a filosofia e não a ciência.

Quanto às exigências à interdisciplinaridade, Japiassu (1976, p. 113) destaca o domínio, por parte dos especialistas, do método da disciplina lecionada, o reconhecimento da parcialidade e relatividade de sua própria disciplina e certa familiaridade com uma disciplina diferente da sua. Uma última exigência seria polarizar o trabalho interdisciplinar sobre pesquisas teóricas ou aplicadas.

O conhecimento humano é sintético e global antes de ser analítico e especializado (...) redescobrir ou tematizar essa dimensão sintética de nosso saber é uma exigência fundamental, se quisermos descobrir e desenvolver em nós o sentido da interdisciplinaridade.

Japiassu (1976, pp. 123, 124) tenta propor uma metodologia interdisciplinar, discernindo dois métodos distintos e complementares na maneira de abordar o interdisciplinar. No primeiro método, chamado prospectivo, a interdisciplinaridade é considerada uma tarefa que “tem em vista a procura e a descoberta de um objeto comum aos vários conhecimentos a se traduzirem em prática”. No segundo método, chamado retrospectivo, o trabalho interdisciplinar faz apelo à reflexão, desdobra-se sobre os saberes já constituídos a fim de instaurar uma crítica, tendo em vista a unidade do saber.

(...) muito embora sejam distintos os dois métodos interdisciplinares – o da tarefa e o da reflexão - são convergentes e complementares. (...) sem o nível prospectivo da tarefa interdisciplinar, o nível retrospectivo da reflexão estaria fadado à esterilidade (...) mas sem este segundo nível, o primeiro estaria fatalmente condenado ao pragmatismo e, muito provavelmente à arbitrariedade.

O autor afirma que, devido às numerosas possibilidades de interconexões disciplinares, é praticamente impossível falar em um método único a guiar todo o empreendimento, mas, uma vez analisado o porquê da interdisciplinaridade, trata-se de precisar suas condições de efetivação e seus procedimentos de realização. Para tanto, é preciso passar por algumas etapas (pp. 125 – 135):

1. Constituição de uma equipe de trabalho

2. Estabelecimento de conceitos-chave do empreendimento comum 3. Estabelecimento da problemática de pesquisa

4. Repartição das tarefas. Estabelecer a função e a autoridade que cada um deverá ocupar, precisar estatutos e os papéis dos pesquisadores durante todo o tempo de trabalho.

5. Análise de todos os dados ou resultados parciais coletados pelos diferentes especialistas.

Japiassu (1976, p. 173) declara que “a cooperação interdisciplinar exige qualidades de tolerância mútua, de abnegação e, até mesmo, de apagamento dos indivíduos em proveito do grupo” e classifica a pesquisa orientada como a síntese de compreensão da interdisciplinaridade: a que consiste em abordar os problemas de um ponto de vista comum a todas as disciplinas, e a que consiste em abordar os problemas concretos.

O espírito interdisciplinar não exige que sejamos competentes em vários campos do saber, mas que nos interessemos de fato, pelo que fazem nossos vizinhos em outras disciplinas. (p. 138)

O autor propõe que as pesquisas interdisciplinares de caráter orientado devem centrar- se em problemas concretos como as conseqüências culturais e sociais do progresso tecnológico, a evolução econômica, entre outros. Neste sentido, Japiassu parece retomar os ideais de Dewey e Kilpatrick, precursores das idéias de uma educação centrada em projetos e não necessariamente nas disciplinas. No caso da interdisciplinaridade, as disciplinas se integrariam de maneira a refletir sobre um problema, focalizando-o de vários pontos de vista e estabelecendo relações em busca de uma possível solução.

(...) o trabalho interdisciplinar surge quando, para uma consideração vinda de uma especialidade determinada, as outras especialidades se esforçam por discernir as incidências indiretas. (p. 161)

Japiassu (1976, p. 170) considera que a evolução histórica das ciências humanas, em nossa cultura, divide-se em três fases: concepção clássica do homem, concepção cristã e concepção moderna. Em todas elas “a medida do mundo se reflete na medida do homem.” O mundo, na verdade, se configura tal qual o homem o concebe. Sendo assim, a modernidade marca a exacerbação da individualidade do homem e, por conseguinte, a emergência e multiplicação das ciências humanas que colocam em questão a possibilidade de uma ciência unitária.

A primeira noção cuja compreensão clara revela-se indispensável, é a unidade da ciência: a ciência, ou as ciências? Múltipla pela pluralidade de seus objetos e pela diversidade de seus métodos, a ciência é una pelo sujeito que a concebe. (p. 186)

A unificação das ciências a serviço do homem parece ser um dos ideais de Japiassu. Embora afirme que se trata de uma missão praticamente impossível, o autor (p. 198) considera que essa unidade pode ser obtida por meio do “aprimoramento de uma nova metodologia, capaz de estudar suas correlações, seus contatos e suas permutas”.

Ao citar a necessidade de uma nova metodologia, Japiassu refere-se à necessidade de instauração de um método interdisciplinar. Novamente a interdisciplinaridade é reafirmada como uma possível salvação para o caos em que se encontram as ciências. O autor afirma também que, para que seja feita a convergência das disciplinas em torno de um núcleo comum, é preciso o auxílio de epistemólogos e filósofos trabalhando numa pesquisa fundamental orientada. Nesse caso, a mudança precisaria partir desses dois especialistas, o que parece um contra-senso aos objetivos da chamada metodologia interdisciplinar, pois exclui da discussão inicial as demais áreas do saber, instaurando uma hierarquia.

O texto de Japiassu é fruto de uma época em que a interdisciplinaridade ainda era um termo pouco comum no cenário nacional, por isso o autor (1976, p. 213) tem dificuldade em, como ele mesmo diz, “extrair conclusões bem elaboradas de um domínio de estudo que mal começa a ser estudado metodicamente”.

Apesar da dificuldade em estabelecer definições e conclusões precisas e, até mesmo, da excessiva responsabilidade que é creditada à interdisciplinaridade, o texto em questão tem o mérito da tentativa de conceituação do termo - até então pouco estudado no Brasil - bem como do estabelecimento de uma teoria e de uma possível prática interdisciplinar, servindo de referência a muitos outros pesquisadores do assunto.