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1. O MOVIMENTO PELA INTERDISCIPLINARIDADE

1.6. INTERDISCIPLINARIDADE EM DEBATE

É sabido que existe atualmente uma vasta literatura sobre interdisciplinaridade, sob diversos pontos de vista: pedagógico, epistemológico, curricular, histórico social, entre outros. Uma pesquisa mais apurada, entretanto, revela que todos fazem referência aos precursores do movimento no Brasil: Japiassu (1976) e Fazenda (1979). Seja para concordar ou criticar seus pressupostos, esses autores são, sem dúvida, uma referência significativa no cenário dos estudos interdisciplinares, como se confirma no capítulo seguinte, no qual analisamos o tema em dissertações e teses defendidas na USP, UNICAMP e PUC/SP.

Santomé (1998) é outro autor bastante citado por aqueles que pretendem focalizar a interdisciplinaridade a partir de sua gênese histórica. A inter-relação que o autor estabelece entre fragmentação do saber e fragmentação das relações de trabalho é uma das mais aceitas para explicar o contexto histórico em que se fundamentaram tanto as disciplinas, quanto a necessidade de relacioná-las a partir da interdisciplinaridade ou superá-las com o currículo integrado. Para Santomé, o currículo escolar, de certa forma, esteve e está a serviço das relações trabalhistas e econômicas.

Uma análise do discurso desses autores revela semelhanças que os situam como adeptos da interdisciplinaridade como a conceberam os estudiosos reunidos nos seminários da OCDE na década de 70.

No caso de Japiassu (1976) e Fazenda (1979), é possível falar em similaridade de pensamentos, pois ambos consideram que a interdisciplinaridade, tal qual um remédio, pode solucionar um problema que excede o âmbito escolar e prejudica a relação do homem com o conhecimento e, por conseguinte, com o mundo: a fragmentação do saber. Ambos consideram que esta excessiva fragmentação é culpa da multiplicação de especializações que impedem a visão do todo e, em vista disso, sugerem a adoção de uma teoria e uma prática interdisciplinar. Como diz Veiga-Neto (1996, 1997), os autores prescrevem um remédio que deve ser aplicado via escola.

Japiassu e Fazenda ficam, portanto, no âmbito epistemológico ao tentarem desenvolver uma teoria e um “método interdisciplinar” e no âmbito pedagógico ao prescreverem qual seria a melhor forma de aplicação da teoria. Não se pode negar que seus ideais sejam louváveis e, até mesmo, que a interdisciplinaridade se apresenta como uma prática pedagógica inovadora. No entanto, ao longo do tempo, a inconsistência do discurso interdisciplinar, acrescentado à confusão terminológica e conceitual foram se revelando na dificuldade de aplicação da teoria.

Essa dificuldade talvez já estivesse contida nos receios demonstrados pelos autores de que a interdisciplinaridade se transformasse em modismo, slogan ou panacéia, previsão que se concretizou em muitas instâncias, pois a interdisciplinaridade virou por si só algo bom e inovador, daí advindo os termos “professor interdisciplinar”, “educação interdisciplinar”, “projeto interdisciplinar”, todos com conotação extremamente positiva.

O mesmo receio também foi apresentado por Santomé (1998) que, apesar de adotar uma perspectiva histórica e não se deter apenas na interdisciplinaridade, também a considera uma prática necessária para a superação da fragmentação do saber e, principalmente, a formação de um cidadão com as qualidades necessárias para viver no mundo globalizado.

Santomé não parece interessado em mudar o mundo por meio de um currículo, mas parece acreditar que o currículo pode mudar o cidadão que vive neste mundo capitalista e globalizado. Nesse caso, seu discurso é menos ambicioso e mais fatalista, é preciso formar um cidadão apto a lidar com a quantidade de informações do mundo globalizado, mas é preciso dotá-lo de uma ética capaz de evitar catástrofes mundiais. Assim como Japiassu e Fazenda, o autor acredita que o ensino organizado linearmente por disciplinas não pode dar conta desses objetivos.

Numa linha totalmente oposta a esses discursos, surgem os textos de Veiga-Neto (1996, 1997) e Jantsch e Bianchetti (2002), que vêm de encontro aos pressupostos estabelecidos pelo chamado movimento pela interdisciplinaridade e tentam perceber as falhas que estão em seu horizonte epistemológico.

O texto de Veiga-Neto (1997) traz uma crítica mais corrosiva ao movimento. Adotando uma perspectiva pós-estruturalista, o autor analisa várias contradições entre teoria e prática interdisciplinares, entre as quais está o fato de o movimento propalar um discurso ambicioso, conjugado a objetivos modestos, pregar um ideal de totalidade, que em si significaria o fim das disciplinas e, por conseguinte, o fim da própria interdisciplinaridade, além de adotar a perspectiva iluminista, alvo de sua crítica.

Essas contradições acabam por provocar o insucesso desta proposta curricular que, mesmo tendo virado uma “moeda forte na educação”, ainda não se efetivou como uma prática possível. Apesar das críticas ao movimento pela interdisciplinaridade, o autor afirma que não pretende aniquilar as pesquisas efetuadas até então, muito menos propor um método seguro para aplicação desta ou de outra teoria. Na verdade, sua análise do movimento pela interdisciplinaridade está preocupada em revelar as inconsistências nesse discurso pautado principalmente na epistemologia.

Mesmo sem apontar um caminho para os estudos interdisciplinares, pode-se dizer que, a partir do momento em que destaca algumas inconsistências desse movimento - embora algumas críticas possam ser contestadas -, Veiga Neto deixa implícito o conselho de que é preciso reformulá-lo, a partir da consideração de outras perspectivas que extrapolem o âmbito pedagógico.

A crítica de Jantsch e Bianchetti (2002) e dos demais autores que compõem a coletânea é similar a de Veiga-Neto (1997), embora menos corrosiva. Os autores (2002, p. 11) se propõem a refletir, questionar e superar “a hegemônica concepção a-histórica do objeto filosófico-científico denominado interdisciplinaridade”. Eles não consideram que as disciplinas se constituam num mal, muito menos que devam ser abandonadas, e acreditam ser possível instaurar a interdisciplinaridade na pesquisa científica, contanto que esta seja construída historicamente, aceitando-se suas possibilidades e limitações.

Assim como Veiga-Neto, Jantsch e Bianchetti verificam no movimento pela interdisciplinaridade um discurso romântico e positivista, que ignora o fato de as disciplinas representarem um avanço nas pesquisas científicas e fazerem parte da própria constituição do homem moderno.

Apesar das críticas, os autores que compõem essa coletânea acreditam na possibilidade de um trabalho interdisciplinar na pesquisa científica, embora Follari faça a ressalva de que isso só é possível após um estudo unidisciplinar ou pluridisciplinar, pois sem aprofundamento numa especialidade, o cientista não estaria apto para estabelecer inter-relações entre as demais áreas. Outra consideração é sobre a possibilidade de um único indivíduo executar uma pesquisa interdisciplinar, não sendo preciso uma equipe interdisciplinar.

Os autores tentam, portanto, reconfigurar o movimento, como bem revelam os comentários de Jantsch e Bianchetti (2002, p. 18), anteriormente referidos. (conferir pg. 48 desta tese).

Não se trata de destruir a interdisciplinaridade – historicamente construída e necessária – mas de lhe emprestar uma configuração efetivamente científica, que, a nosso ver, seria possível por uma adequada utilização da concepção histórica da realidade.

Veiga Neto (1997, p. 79), em parágrafo similar, também tenta justificar suas críticas ao movimento pela interdisciplinaridade: [...] “meu objetivo não é absolutamente desconsiderar os esforços que muitos têm despendido em prol da interdisciplinaridade”.

A despeito de alguns exageros nas críticas feitas ao “movimento pela interdisciplinaridade” - aliás, expressão cunhada pelo próprio Veiga-Neto em contraponto à

utilizada por Fazenda: “movimento da interdisciplinaridade”7 -, pode-se perceber que, ao

questionarem os pressupostos estabelecidos pelos precursores do movimento, esses autores trazem, para o cenário da educação e da pesquisa, reflexões que reforçam a importância da temática. Apesar de exigir reconfigurações, a interdisciplinaridade ainda se mostra uma questão instigante e necessária aos estudos relacionados ao currículo escolar.