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A diferenciação simbólica: a representação nos estudos sobre certificação

3. A importância das práticas nos estudos sociais da ciência

3.2 A diferenciação simbólica: a representação nos estudos sobre certificação

Como vimos, um marco importante na teoria social é a ideia de ciência como prática, o que levou parte da literatura a propor que deixássemos de lado o vocabulário e questões de representação e passássemos a considerar as práticas científicas como problemas ontológicos. Nesta seção, gostaríamos de voltar ao tema da certificação e qualidade. Inicialmente vamos ver como a questão da representação aparece em estudos sobre qualidade e certificação.

73 Dentro de uma perspectiva que considera a relação entre certificação e qualidade como um problema de representação temos a noção de diferenciação simbólica. Bostrom e Klintman (2008) criaram o termo “diferenciação simbólica” a partir da sua pesquisa sobre a rotulagem verde (green labeling). A rotulagem verde seria um mecanismo de mercado orientado para os consumidores e baseado na estandardização de princípios e critérios prescritivos, de modo que os produtores que esperam usar um selo verde em seus produtos devem seguir a eco-standards e pagar um preço pela licença (BOSTROM, KLINTMAN, 2008, p.28). Apesar do esforço em definir o que seria a rotulagem verde, os autores elaboram um conceito bastante geral que se aproxima de outros tipos de certificação por terceira parte.

Böstrom e Klintman (2008) afirmam que os selos são formas de sinalizar propriedades inerentes aos produtos certificados ou aos seus processos de produção que o objeto em si não seria capaz de mostrar de outra maneira. Para explicar a dinâmica da certificação, os autores criaram a noção de diferenciação simbólica: a partir do selo os produtos certificados podem ser distinguidos de versões convencionais (BOSTROM, KLINTMAN, 2008, p.29). De acordo com esta perspectiva, os esquemas de certificação e seus respectivos selos estabelecem diferentes representações de características que subjazem aos produtos. A diferenciação simbólica seria a tarefa-chave que esquemas de certificação e selos desempenham no mercado. O selo torna visual a certificação de produtos verdes e comunica aos consumidores quais seriam as “melhores” escolhas (BOSTROM, KLINTMAN, 2008, p.201).

Com isso, o conceito de diferenciação simbólica coloca a certificação como um processo de diferenciação em relação a outros produtos discursivamente assinalados como “convencionais”. A distinção entre produtos “verdes” e convencionais seria dada principalmente por uma representação visual: o selo que os produtos certificados exibem em seus rótulos. Portanto, esquemas de certificação e selos produzem diferença. Nosso argumento é o de que o conceito de diferenciação simbólica propõe uma forma particular de pensar a diferença gerada por certificações e selos. Neste caso, a diferença entre produtos certificados e convencionais seria discursiva e visual. A diferença estaria nas representações simbólicas da qualidade “verde” que os diversos tipos de certificação criam.

De acordo com Bostrom e Klintman (2008), a relação entre qualidade e certificações/selos deve ser tratada como um problema de

representação. Isto tem consonância na análise destes autores sobre sete tipos de certificação: alimentos orgânicos e transgênicos, certificação florestal e de papel, eletricidade e fundos de investimento. Todas estas certificações estão relacionadas à qualidade “verde”, isto é, são produtos certificados que reivindicam estar atentos a questões ambientais diversas. Nos exemplos trazidos pelos autores, as certificações são entendidas como diferentes maneiras de representar a qualidade “verde”. Estas representações da qualidade verde, resultante de certificações e uso de selos, distinguem os produtos certificados dos convencionais em variados setores de produtos e serviços.

Ao abordar a diferença como uma questão discursiva e visual, a proposta de Bostrom e Klintman (2008) estabelece uma divisão entre a representação da qualidade e a qualidade em si. Se por um lado há diversas representações da qualidade “verde” de acordo com o setor de produtos e serviços que os autores analisam, por outro lado, o mesmo não acontece com a qualidade. A qualidade “verde” é tratada como uma qualidade única. É sempre a mesma qualidade que ganha uma representação diferente em cada certificação.

Contudo, nós discordamos desta proposta da diferenciação simbólica. Consideramos que cada certificação produz uma qualidade diferente e, por isso, analisamos a relação entre certificação e qualidade por outro caminho que não o da diferenciação simbólica.

A discordância inicial é a de que não distinguimos entre a representação da qualidade do saudável e a qualidade em si. Neste ponto nos inspiramos no que já apresentamos sobre a virada ontológica nos estudos sociais da ciência e nas discussões sobre a separação entre Natureza e Cultura na Modernidade. Latour (1994) caracteriza a Modernidade segundo as grandes divisões que esta estabelece – entre elas a separação entre Natureza e Cultura enquanto dois polos independentes. De um lado estaria a Natureza universal, onde encontramos as coisas em si e os objetos das práticas científicas, e de outro lado a Cultura, em que estariam as diversas representações da Natureza (LATOUR, 1994, p.102). A descrição de fatos científicos enquanto representações parte desta distinção entre Natureza e Cultura. No entanto, esta descrição é assimétrica, pois a multiplicidade está somente do lado da Cultura. As Culturas seriam múltiplas, pois seriam diferentes pontos de vista históricos de uma Natureza singular, universal e a-histórica. Esta separação entre Natureza e Cultura está associada a diferentes versões de relativismo cultural que, no entanto, não conseguem descrever satisfatoriamente as práticas. Em uma versão do relativismo, as culturas são pontos de vista incomensuráveis da Natureza

75 e que, portanto, não são comparáveis. Em outra versão do relativismo, as culturas são representações mais ou menos precisas do mundo – com a exceção do Ocidente que por meio da ciência tem acesso privilegiado à Natureza (LATOUR, 1994, p.103-104). Ambas as versões apresentam explicações restritas que não permitem a análise comparativa19.

A crítica às análises que separam em lados opostos Natureza e Cultura pode ser estendida não apenas à abordagem da diferenciação simbólica, mas também aos trabalhos sobre qualidade e certificação apresentados anteriormente no campo da Economia. A separação entre Natureza e Cultura é subjacente a estas perspectivas – uma dualidade bastante criticada na literatura (e.g. STRATHERN, 1992; LATOUR, 1994, HARAWAY, 1992). Ora enfatizam demais a realidade física e naturalizam a noção de qualidade; ora consideram a qualidade um puro construto social. Ao afirmar que a certificação é uma forma de atribuir diferentes representações às propriedades de um produto, está implícito que as características físicas são um objeto natural passivo, como um cheque em branco, à espera para ser culturalmente marcado pela certificação. Tudo se torna um problema de representação cultural.

No entanto, consideramos que a qualidade do saudável não é uma propriedade anterior dos alimentos que o esquema de certificação da SBC apenas trata de representar à sua maneira. Novamente, esta seria uma perspectiva que parte de posições reducionistas sobre a produção de conhecimento em certificações.

Uma alternativa é pensar a certificação da SBC enquanto práticas científicas e a qualidade do saudável como um objeto científico que é resultado da certificação20. Nós argumentamos, seguindo à literatura que analisa os objetos científicos como um efeito das práticas (e.g. BERG,

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O tratamento que a Economia confere à relação entre certificação e qualidade a partir do problema da assimetria da informação esbarra nos problemas deste segundo tipo de relativismo. Isto porque pressupõe que as certificações e standards seriam dispositivos que amenizam o problema da assimetria da informação no mercado. Devido ao seu aspecto técnico frente a outras formas de produzir informação, esquemas de certificação e standards seriam os mecanismos de mercado com a maior capacidade de produzir representações fidedignas das qualidades dos produtos.

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A noção de práticas científicas e objeto científico é um vocabulário bastante utilizado no campo dos estudos sociais da ciência. O termo objeto científico designa tanto fatos quanto artefatos. Como vimos em seções anteriores, a ideia de “práticas científicas” marca mudanças na maneira de conceituar a ciência na trajetória deste campo.

BOWKER, 1997; LATOUR, 2001; MOL, 2002; LAMPLAND, STAR, 2009; BUSCH, 2011b), que a qualidade do saudável pode ser estudada como um objeto que vai ganhando existência ao longo do processo de certificação.

A recusa da separação entre Natureza e Cultura perpassa trabalhos nos estudos sociais da ciência que têm em comum assinalar que Natureza e Cultura não estão separadas em dois polos distintos e que descrevem a ciência em termos de práticas que constituem o mundo provisoriamente, como a literatura na tradição da ANT e no vocabulário da co-produção (e.g. JASANOFF, 2004). As práticas científicas são analisadas por essa literatura como atividades que conferem existência a naturezas-culturas com caráter contingente. Os híbridos naturezas- culturas são comparáveis porque pressupõem que as práticas constroem simultaneamente humanos e não-humanos – as diferenças estão em como e no que mobilizam para fazer isso (LATOUR, 1994, p.104).

Portanto, a partir desta recusa de uma ordem primordial (Natureza e Cultura), privilegiamos a análise da qualidade do saudável como um objeto híbrido que é provisoriamente constituído durante o processo de certificação da SBC. Primeiramente, o estudo da qualidade do saudável como um híbrido permite a comparação simétrica com outras formas de configurar o que é o saudável21. Frente aos estudos sobre certificação e qualidade apresentados aqui, nossa proposta é tratar a diferença de outra forma que não seja traduzindo-a em um problema de representação cultural. Nosso argumento é o de que se considerarmos certificações como práticas científicas que configuram natureza-cultura de maneira específica (LATOUR, 1994), cada certificação gera uma qualidade particular, e não apenas uma representação da Natureza. Uma certificação poderia, portanto, ser estudada como prática científica que engendra existência. Este é um ponto importante sobre como pensamos a relação entre certificação e qualidade, pois nos diferencia de outras análises deste tema. O que temos é uma versão possível da qualidade do saudável sendo constituída pelo processo de certificação e não uma representação desta.

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A comparação a ser feita seria entre os elementos mobilizados e a maneira como isto acontece. Dentro do próprio mercado de alimentos brasileiro, esta qualidade do saudável constituída pela SBC existe em paralelo a outras versões, como aquelas presentes em certificações de alimentos orgânicos ou isentos de transgenia. Para uma análise de uma configuração alternativa do saudável no caso dos alimentos funcionais, ver Bianco (2008).

77 Por fim, ao recusar a separação entre Natureza e Cultura também escapamos de preocupações com a comensurabilidade do conhecimento que esta divisão pressupõe. Não nos perguntamos sobre o quanto o conhecimento (Cultura) consegue ser fiel à realidade que procura descrever (Natureza), porque Natureza e Cultura são co-constituídas nas práticas científicas. Isto implica que, por princípio, a pergunta não seria se a certificação da SBC de fato revelava a qualidade do saudável nos alimentos que certificava. O que está em cheque é se a certificação da SBC conseguia produzir uma qualidade que resistisse quando colocada à prova por aqueles que criticavam o selo. Nosso argumento mais adiante, é o de que a certificação funcionava como um processo que produzia provas que em conjunto sustentavam a afirmação da SBC de que certo produto era saudável.