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1. As definições de qualidade

1.1 A qualidade como convenção

Nesta seção, consideramos pertinente trazer a abordagem da teoria das convenções que apresenta uma perspectiva crítica em relação à Economia. Seguindo a esta teoria francesa, as qualidades são sempre convenções de qualidade, isto é, regras socialmente definidas que funcionam como mecanismos de coordenação, pois permitem a continuidade das atividades econômicas em situações de incerteza (BUSCH, 2000, p.276). A teoria das convenções afirma que o preço seria a principal forma de coordenação do mercado se não houvesse incerteza alguma. Estas incertezas têm a ver com a impossibilidade de prever todas as contingências futuras das transações econômicas, de modo que os contratos não conseguem antecipar tudo o que pode acontecer. Nesse cenário em que o preço não consegue ser o único

59 mecanismo para avaliar a qualidade de um produto, a teoria das convenções defende que os contratos só são possíveis graças a outras formas de coordenação – como as convenções de qualidade (PONTE; GIBBON, 2005).

A teoria das convenções adapta a ideia de que convivemos simultaneamente com diversos “mundos” de valores, conforme proposto originalmente por Boltanski e Thévenot em seu livro De la Justification. Nesta obra os autores propõem que todo tipo de ação é justificada segundo estes “mundos” de valores, que seriam formas de bem-estar- comum. Boltanski e Thévenot atribuem à Filosofia Política a formulação destes mundos de valores legítimos que justificam as ações, de modo que distinguem seis tipos de mundos: 1) o inspirado, 2) o da opinião, 3) o doméstico, 4) o industrial, 5) o do mercado, e 6) o cívico (WILKINSON, 1999, p.67).

Cada um destes mundos tem suas próprias definições do que seria o “bom”, “o justo” e o “igual”, assim como suas próprias formas de avaliar isto, de modo que cada mundo constitui uma espécie de “economia moral”. Segundo a teoria das convenções, as convenções de qualidade são definidas pelas diferentes formas de “economia moral” propostas por Boltanski e Thévenot (BARBERA; AUDIFREDI, 2012, p.313). Uma vez que o preço não funciona como a principal forma dos atores avaliarem as qualidades dos produtos, estes recorrem às convenções de qualidade. A teoria das convenções argumenta que os contratos no mercado só são possíveis porque existem convenções sobre o que são os produtos trocados (BUSCH, 2000, p.276). Portanto, as convenções seriam outras formas de coordenação no mercado para além do preço, pois garantem a continuidade da atividade econômica em situações de incerteza.

Cada tipo de coordenação está ligado a um mundo de valor e representa uma maneira de negociar as incertezas a respeito da qualidade dos produtos (BARBERA; AUDIFREDI, 2012): a coordenação doméstica negocia a incerteza por meio de relações de confiança; a industrial, recorre ao uso de standards técnicos comuns, aplicados através de testes baseados em instrumentos, inspeção e certificação; a coordenação cívica funciona a partir de um compromisso coletivo voltado para o bem-estar e a identidade de um produto está relacionada aos efeitos socioambientais; na coordenação por opinião, a incerteza é resolvida segundo a avaliação de especialistas; e o inspirado negocia a incerteza valorizando o que vem da experiência subjetiva e da criatividade, e que rejeita hábitos e regras.

Seguindo a esta literatura, as qualidades seriam convenções que aparecem como resultado dos diversos modos de coordenação das ações no mercado. No entanto, há qualidades que funcionam como pontes, pois reúnem valores e formas de justificação reconhecidas por diferentes grupos. Wilkinson (2002, p.819) relata os conflitos de regulação na União Europeia (UE) no caso de produtos lácteos, quanto ao uso do leite cru. O autor aponta dois polos: de um lado o mundo industrial, em que economias de grande escala privilegiam o leite pasteurizado por conta de questões logísticas e de produção, e de outro, o mundo artesanal, que relaciona a qualidade do produto final com o uso do leite cru. Seguindo a teoria das convenções, o conflito entre definições de qualidade é um conflito entre os mundos de valores em que os atores estão. Wilkinson (2002) mostra que diante da dificuldade em negociar interesses setoriais, o conflito na UE foi em direção à reivindicação de valores comuns – a saúde pública e bem-estar do consumidor. Assim, quando o mundo industrial defendeu a pasteurização do leite por questões de saúde pública, o mundo artesanal mostrou que esta preocupação poderia ser compatível com a produção de queijo com leite cru sob determinadas condições sanitárias (WILKINSON, 2002, p.819). O exemplo das normas técnicas para produtos lácteos na União Europeia ilustra o caso de qualidades que conjugam diferentes mundos e funcionam como “pontes”.

Como mostra o caso acima, a teoria das convenções propõe uma forma de descrever as variações organizacionais entre contextos de qualificação de produtos, analisando as normas que definem convenções de qualidade a partir de mundos de valores (WILKINSON, 1999, p.73). No entanto, há diferenças entre os autores que dialogam com a teoria das convenções para falar de qualidades. Alguns (e.g. CALLON; MÉADEL; RABEHARISOA, 2002; TEIL, 2011) assinalam o caráter duplo das qualidades, no sentido de que estas dependem simultaneamente de como os produtos respondem quando são colocados à prova e das formas de mensuração e testes utilizados. Enquanto que outros autores consideram a fabricação de um produto a partir das negociações entre os atores humanos, de modo que enfatizam as convenções como modelos compartilhados de interpretação para julgar a adequação das ações (e.g. BIGGART; BEAMISH, 2003; BARBERA; AUDIFREDI, 2012).

Para além dessa variedade de perspectivas, a teoria das convenções traz contribuições importantes para a análise das qualidades em certificações. A principal delas seria a de evidenciar os valores presentes em critérios técnicos que definem, entre outras coisas, as

61 qualidades em certificações no mercado – algo que já foi observado anteriormente na literatura (e.g. BUSCH, 2000; WILKINSON, 2002; THÉVENOT, 2009). A teoria das convenções mostra que negociar critérios técnicos implica em negociar, simultaneamente, valores e interesses. Isto faz com que esquemas de certificação e standards sejam objetos privilegiados para o estudo da intersecção entre ciência e política atualmente. Em um processo de certificação, a constituição de uma qualidade também implica em eleger certos valores como prioritários.

Além disso, a teoria das convenções traz uma crítica importante à Economia ao problematizar a questão da incerteza no mercado. Como aponta Busch (2000), a teoria das convenções mostra que o estudo de standards e esquemas de certificação como mecanismos que reduzem o problema da assimetria da informação no mercado é uma perspectiva extremamente simplista. Primeiramente, porque resolve o problema da incerteza ao mostrar que as contingências futuras, que não estão previstas no contrato, são negociadas por meio das convenções. Em segundo lugar, a ideia de que standards e certificações seriam dispositivos que apenas acertam assimetrias da informação no mercado deixa de lado os valores que estes incorporam e impõem no mundo.