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O Selo de Aprovação da SBC e a legislação brasileira

Foto 4: Parte de trás da embalagem do Quaker Cereal M

4. O Selo de Aprovação da SBC e a legislação brasileira

A relação do selo com o Estado é um aspecto importante para entender como o primeiro conseguia configurar a qualidade do saudável. No entanto, mapear esta relação não é fácil. A ANVISA, o Inmetro e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) são os órgãos que regulamentam os diversos tipos de certificação existentes no Brasil. Seguir as legislações sobre certificação no Brasil é um trabalho desafiante pelo emaranhado de material, mas consultas à ANVISA e ao Inmetro por canais oficiais disponíveis em seus sites na internet ajudaram a esclarecer alguns pontos 88. Nas correspondências via email que trocamos em 2014, perguntamos à ANVISA e ao Inmetro sobre a existência de algum regulamento para selos de aprovação outorgados por sociedades médicas a alimentos. Ainda, questionamos o Inmetro sobre a possibilidade de uma sociedade médica como a SBC ser acreditada pelo Inmetro como um organismo certificador. Em resposta a estas questões a ANVISA e o Inmetro responderam:

“Em atenção a sua solicitação, informamos que a ANVISA não regulamenta a fixação de selos nas embalagens. A veracidade dos selos é de responsabilidade da empresa privada e da entidade a qual vincula. Porém, as informações dos selos não podem entrar em contradição com os requisitos obrigatório constante da RDC 259/2002, conforme item 7.1 da referida resolução.” (ANVISA, 2014)

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Tanto a ANVISA quanto o Inmetro disponibilizam em seus sites na internet uma área em que qualquer pessoa pode enviar dúvidas diretamente ao órgão que serão respondidas via email no prazo de alguns dias.

"Desde 2002 não existiu nenhum regulamento para as sociedades médicas que conferem selos de aprovação para alimentos. Qualquer instituição pode ser uma certificadora, desde que realize certificação de 3ª parte baseada em normas ou regulamentos." (INMETRO, 2014)

As respostas da ANVISA e do Inmetro indicam que a legislação brasileira no setor de alimentos não regula os selos de sociedades médicas. A resposta da ANVISA que menciona o item 7.1 da Resolução 259/2002 diz respeito à proibição de declarações sobre propriedades ou informações enganosas nos rótulos. No entanto, esta é uma regra geral da ANVISA que vale para todos os alimentos embalados. Não há regras específicas para os selos de sociedades médicas outorgados a alimentos. A ausência de regulamentos específicos indica que selos de aprovação outorgados por sociedades médicas, tal como o selo da SBC, eram juridicamente invisíveis no Brasil.

Ainda que o selo da SBC não fosse regulado por órgãos como a ANVISA, o Inmetro e o MAPA, o selo conta com a infraestrutura legal do Estado brasileiro. O selo da SBC observava voluntariamente algumas normas básicas sobre alimentos no âmbito da ANVISA. Elas seriam o Decreto-lei 986 de 1969, e as Portarias CVS/MS n.27, 41 e 42 de 199889.

O Decreto-lei 986 de 1969 é aquele que define as regras mais básicas sobre alimentos no Brasil – voltaremos a ele a seguir. A Portaria n.27 dispõe sobre a informação nutricional complementar em rótulos de alimentos – ela estabelece regras para classificar produtos como “diet”, “light”, “rico em”, “fonte de”, “livre de”, “baixo em”. Estas informações são adicionais e voluntárias, de modo que a Portaria n.27 estabelece regras para os fabricantes que desejarem estampar por espontânea vontade estas alegações nas embalagens. Por fim, as Portarias n.41 e 42 aprovam o regulamento técnico para a rotulagem nutricional obrigatória.

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Esta informação sobre as regras da ANVISA que eram observadas voluntariamente pelo selo da SBC constam no parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) de 2013 que vimos no capítulo anterior. Relembrando: o parecer era uma resposta a algumas sociedades médicas, inclusive à SBC, que tentaram recorrer da decisão do CFM de proibir sociedades médica de concederem selos de aprovação. O selo da SBC foi um dos afetados por esta decisão que o proibiu de circular.

191 Ainda que todas as normas mencionadas aqui sejam regras básicas sobre alimentos, o selo observava voluntariamente estas normas da ANVISA. Como já argumentamos no capítulo 2, o selo inscrevia a legislação brasileira na infraestrutura do seu processo de certificação. Todas as empresas que desejassem certificar seus produtos deveriam estar em conformidade com estas regras. No Decreto-lei 986 de 1969 encontramos a definição oficial de alimento para a legislação brasileira:

“I - Alimento: toda substância ou mistura de substâncias, no estado sólido, líquido, pastoso ou qualquer outra forma adequada, destinadas a fornecer ao organismo humano os elementos normais à sua formação, manutenção e desenvolvimento” (BRASIL, 1969 [grifo meu])

Esta definição que encontramos no Decreto-lei 986 marca as fronteiras do que é o alimento no Brasil. Seguindo ao trecho acima, o alimento é feito em termos funcionais: alimento é toda substância que contribuiu para o desenvolvimento e continuidade de processos do corpo. Elementos relativos a aspectos hedonistas, por exemplo, como a capacidade de um alimento proporcionar prazer e satisfação, são deixados de fora. O modo como a legislação brasileira configura o que seria o alimento lembra um modelo que vimos anteriormente neste capítulo: ela estabelece uma relação em que o alimento é visto como um input e o corpo é tornado uma máquina que necessita de energia (BEADSWORTH; KEIL, 2002, p.130; MOL, 2012, p.383). No entanto, ao seguir a legislação no âmbito da ANVISA descobrimos outra camada importante das fronteiras que marcam o que é um alimento no país, relacionadas às diferentes categorias de alimentos. Como veremos a seguir, estas fronteiras sofreram amplas transformações mais recentemente.

4.1 Negociando fronteiras: os Padrões de Identidade e Qualidade Até aqui vimos que o Selo de Aprovação da SBC inscreve a sua certificação em regras básicas para alimentos no Brasil, pois observa voluntariamente estas regras ao certificar produtos. Ao seguirmos esta legislação que aparece inscrita no selo, encontramos uma primeira camada de como as fronteiras dos alimentos são negociadas no Brasil.

Nesta seção continuamos a seguir a legislação brasileira para analisar como estas regras negociam as fronteiras dos alimentos.

A segunda camada-chave das fronteiras que demarcam o que é um alimento no Brasil é a classificação nacional de identidade e qualidade dos alimentos. As regras conhecidas como Padrões de Identidade e Qualidade (PIQ) dispõem sobre a denominação, definição e composição dos alimentos, de modo que descrevem requisitos de higiene, regras para o seu envasamento e rotulagem, assim como medidas de amostragem e análise (BRASIL, 1969). Estas normas técnicas estabelecem standards que definem cada tipo de alimento segundo: a sua designação, classificação das variações do alimento, suas características gerais, propriedades organolépticas, características físicas e químicas, características microbiológicas que ditam limites de contaminação por micro-organismos ou substancias tóxicas de origem microbiana, características microscópicas e de rotulagem. Estes standards funcionam como marcadores das fronteiras que distinguem diferentes tipos de alimentos, e.g. pão, biscoito e bolachas, verduras, legumes, café, etc. O Quadro 7 na página seguinte traz um trecho de uma Norma Técnica de 1978 que definiu standards de identidade e qualidade para diversos alimentos, entre eles o leite de coco. Este trecho fornece uma noção do tipo de informações que constam nestes Padrões de Identidade e Qualidade dos alimentos.

193 Quadro 7: Trecho da Norma Técnica para Padrões de Identidade e Qualidade para o leite de coco

Como já vimos, temos uma primeira fronteira para o que é o alimento que foi definida em 1969 pelo Decreto-lei 986. Os chamados Padrões de Identidade e Qualidade formam uma segunda camada das fronteiras mais gerais do que é um alimento no Brasil, e são standards que atuam no sentido de aumentar a especialização destas fronteiras. Os primeiros Padrões de Identidade e Qualidade dos alimentos foram publicados em 1975 para o sal e em 1976 para a água 90. Em 1978 foi publicada a maior lista já criada, que ordenou a identidade e qualidade

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O Decreto-lei 986 estabeleceu, ainda na década de 1960, que cada tipo ou espécie de alimento deveria ter um Padrão de Identidade e Qualidade. No entanto, estes padrões só começaram a ser definidos na década de 1970.

“Leite de coco

1. Definição: leite de coco é a emulsão aquosa extraída do endosperma