• Nenhum resultado encontrado

2. Comida para o coração

3.1 Tomou? Os leites do coração

Em 1999, diversos produtos enriquecidos com ômega-3, sobretudo leites, chegaram ao mercado brasileiro. Estes leites carregavam consigo os estudos sobre a alimentação de populações como os esquimós e comunidades japonesas que consomem peixes e algas ricos em ômega-3. A partir destes estudos, o ômega-3 foi relacionado a uma série de efeitos que a Cardiologia considera como um bom estado de saúde do coração: níveis baixos de triglicerídeos, baixos níveis de colesterol total e LDL, e níveis elevados de HDL. A tradução disto em termos de recomendações nutricionais seria que o ômega-3 faz bem para o coração. Com isso, os leites adicionados de ômega-3 carregavam consigo uma tradução que vai da análise de dietas mais amplas (e.g. dietas ricas em peixes gordos e algas) para uma correlação entre um nutriente mais específico da dieta e efeitos no corpo (e.g. ômega-3 e coração).

Entre as empresas que lançaram produtos enriquecidos com ômega-3 no Brasil, destacamos a Parmalat que em 1999 lançou o leite enriquecido com ômega-3 e com as vitaminas C, E e B6 que, segundo a literatura médica, contribuem para a absorção do ômega-3 no organismo. Naquele mesmo ano a SBC concedeu o seu Selo de Aprovação para a Parmalat – e esta certificação marcou a trajetória do selo por conta dos problemas que ela lhe gerou. Um dos principais motivos era a publicidade do leite com ômega-3 da Parmalat que, segundo nossos entrevistados, prometia efeitos medicinais (e.g. “o leite que salva o coração”). A questão é que, por conta desta certificação, o selo da SBC recebeu críticas não apenas externas, mas dos próprios cardiologistas. A fala de Mateus*, um dos nossos entrevistados que trabalhou na equipe do selo, exemplifica o tipo de crítica interna ao selo:

“Como, por exemplo, o leite da Parmalat. (...) a forma como eles [a Parmalat] usaram para divulgar o selo eu não chamaria de má fé, mas poderia chamar de enganosa. Eles entraram com aquela história do “leite do coração”. O que acontece “Ah, o leite do coração!”. Eu achava aquilo um absurdo porque eu sempre achei interessante o ômega-3. Aí quando eu vi o leite e analisei o pacote, eu falei “Isso aqui é propaganda enganosa”. Muito antes de tirar o leite de circulação – aquela propaganda. [Pergunto se era por conta da quantidade de ômega-3 ser muito

109 baixa]. Sim, exatamente. Se você levar em consideração o consumo de leite ali [em uma caixa], a quantidade de ômega-3 que deveria ser tomado, e o custo do leite pelo fato de ter o selo, era enganoso aquilo. Porque a quantidade de ômega-3 em que você tem um benefício maior, você teria que tomar em torno de 3g de ômega-3 por dia [Comento que, portanto, o consumidor teria que tomar muito leite]. Eu calculei na época, não me lembro mais, tinha que tomar não sei quantos saquinhos para poder ter benefícios. Vai viver de leite. Eu achava aquilo uma propaganda enganosa.” (Mateus*, entrevista 4, 28/04/2015) Entre nossos entrevistados, um comentário geral sobre este episódio da certificação do leite com ômega-3 da Parmalat foi que isto gerou uma perda de credibilidade do selo. Os próprios cardiologistas da SBC não acreditavam na capacidade do selo em avaliar os produtos adequadamente. Além do problema com a publicidade (“O leite do coração”), outro problema já indicado pela fala de Mateus* acima era a quantidade de ômega-3 no produto. Somava-se a isso o tipo de ômega-3 que era adicionado a estes leites lançados em 1999. Vamos explicar.

Como aponta Mateus*, leites enriquecidos com ômega-3 traziam quantidades muito pequenas desse componente. A crítica de Mateus se junta a observações de outros atores externos à SBC na época do lançamento destes leites. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, a diretora da Associação Paulista de Nutrição comparou as quantidades de ômega-3 de alguns alimentos com as quantidades encontradas em leites enriquecidos com essa substância. A recomendação nutricional era a ingestão diária de 1.000mg de ômega-3. Ela comparou: 1,6 kg de salmão ou ¼ de xícara de linhaça contém 9.000mg de ômega-3. Já um litro de leite enriquecido continha (em média) 800mg de ômega-3 – um valor muito baixo em comparação com os outros alimentos. Isto quer dizer que alguém precisaria tomar um litro de leite para obter a mesma quantidade de ômega-3 presente em 142 gramas de salmão. Como afirma a reportagem “Resumindo, vale mais ir de peixe.” (DIONÍSIO, 2000).

Além disso, a quantidade de ômega-3 no leite da Parmalat foi questionada pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) em 2002. Com base em avaliação do Inmetro, o DPDC acusou a Parmalat de propaganda enganosa. Enquanto que o leite da Parmalat

afirmava conter 0,08g de ômega-3, o Inmetro apontou uma quantidade de apenas 0,01g (AGÊNCIA ESTADO, 2002). Segundo a Anvisa, esta quantidade não permitiria ao leite da Parmalat trazer em sua embalagem a afirmação “contém ômega-3”.

Outro problema do leite era o tipo de ômega-3 adicionado ao produto. O ômega-3 estudado pela literatura médica como benéfico para a saúde – aquele presente na dieta de esquimós e comunidades japonesas – é o encontrado em peixes gordos, como o salmão, a sardinha, o arenque. A questão é que quando se tenta adicionar este ômega-3 ao leite, este fica com gosto de peixe. E isto era um problema para um produto que queira conquistar o paladar dos consumidores. Foi o que aconteceu com o leite da empresa espanhola Puleva, que durante a década de 1990 também trabalhou em um projeto de leite enriquecido com ômega-3, mas desistiu dele depois que não conseguiu anular o gosto de peixe do produto. A Parmalat foi por outro caminho: ela se uniu à indústria farmacêutica. A Parmalat desenvolveu uma pesquisa em colaboração com o laboratório farmacêutico Roche e com a Universidade de Bolonha que foi buscar um ômega-3 de origem vegetal. Os peixes “gordos” foram deixados de lado e a pesquisa procurou pelo princípio ativo do ômega-3 no plâncton que os peixes comiam. Felizmente para a Parmalat, o ômega-3 de origem vegetal era um componente com sabor mais neutro (LOPES, 1999). Entretanto, o ômega-3 de origem vegetal não é o mesmo ômega-3 de origem animal – e as pesquisas que apontam os efeitos benéficos são aquelas que estudaram o ômega-3 de origem animal, em peixes como o salmão35.

Por estes motivos – a publicidade, a quantidade e o tipo de ômega-3 – o leite da Parmalat foi uma certificação que gerou críticas para o selo da SBC no final dos anos de 1990, sobretudo críticas internas. O episódio da Parmalat ainda se juntou à certificação de um medicamento pelo selo. Em 2001, o selo foi concedido ao medicamento

35

Nas práticas médicas, a explicação nutricional para a diferença entre o ômega-3 de origem vegetal e de origem animal está relacionada com os ácidos graxos do ômega-3. É preciso ir para um nível bioquímico mais especializado. Enquanto que o ômega-3 animal é formado por ácidos graxos de cadeia longa conhecidos como EPA (ácido eicosapentaenoico) e DHA (ácido docosaexaenoico), o ômega-3 vegetal é formado pelo ALA (ácido alfa- linoleico). As pesquisas relacionam efeitos benéficos à saúde ao EPA e ao DHA do ômega-3 animal. Quando consumido, o organismo humano converte o ALA do ômega-3 vegetal em EPA e DHA, mas muito lentamente e em taxas muito baixas (OLIVEIRA; LUZIA, RONDÓ, 2012).

111 para hipertensão Vasopril do laboratório Biolab. Na época, uma equipe do Funcor compareceu à convenção anual da Biolab para promover o que a sociedade médica chamou de “parceria” entre a SBC e o laboratório farmacêutico (SBC, 2001). A aprovação destes produtos, assim como a certificação de óleos vegetais que traziam a afirmação “Não contém colesterol” fizeram com que o selo passasse por uma reestruturação em 200236. Um comentário geral de nossos entrevistados é o de que a credibilidade do selo dentro da SBC estava muito enfraquecida neste período do final da década de 1990 e o início dos anos 2000. A seguir, o comentário de João* é emblemático das críticas e resistências que o selo enfrentou dentro da SBC neste período. João* foi um dos nossos entrevistados que trabalhou com o selo a partir do início dos anos 2000, depois de uma reformulação de toda a equipe.

“Veja, no dia que saiu um remédio com o selo do Funcor, imagina o que eles falaram. “Isso aí é caça-níquel, não está mostrando qualidade, mas está só procurando dinheiro.” E aí nós quisemos criar um critério para falar “Olha, o critério é esse. Para poder ter o selo tem que ter isso.” Então a gente deixou de ganhar muito dinheiro no Funcor porque teve um monte de empresa que veio atrás e a gente não deu o selo.” (João*, entrevista 2, 27/04/2015).

A fala de João* sintetiza a percepção interna da SBC de que o selo tinha tornado-se apenas uma fonte de renda da sociedade médica e que o rigor na avaliação dos produtos tinha sido deixado de lado. Em 2002, uma nova equipe e procedimentos de avaliação começaram a ser desenhados por conta de certificações que enfraqueceram o selo (e.g. leite com ômega-3 da Parmalat, óleos vegetais “sem colesterol”, certificação de um medicamento), sobretudo dentro da SBC. A seguir, trataremos desta nova etapa do selo.

36

No último capítulo abordaremos os problemas com a certificação de óleos vegetais que afirmavam não conter colesterol. A questão é que nenhum óleo vegetal contém colesterol, e que trazer uma afirmação do tipo “Não contém colesterol” como se fosse uma distinção do produto constitui propaganda enganosa. O selo certificou óleos vegetais com este tipo de afirmação na década de 1990, como o óleo da Becel.