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4. Novos caminhos para o selo

4.1 Organizando uma nova infraestrutura

A partir desta gestão que começa em 2002, o selo da SBC passa por outras modificações subsequentes em sua infraestrutura. A primeira mudança importante na infraestrutura do selo aconteceu na relação entre o comitê científico que foi formado naquela época e o setor comercial da SBC. A fala dos entrevistados que trabalharam na gestão de 2002 e nas subsequentes é a de que anteriormente o setor comercial da SBC tinha um espaço de atuação maior em relação ao selo. A fala de Mateus*, um cardiologista que trabalhou neste período de transição, nos conta um pouco como isso aconteceu. Neste trecho ele responde a nossa pergunta sobre como as empresas ficavam sabendo a respeito do selo e se isto acontecia via setor comercial da SBC:

119 “Existe uma época lá do s. Bruno*, que ficou lá por muitos anos. Ele era um indivíduo que tinha certa força lá dentro, eu acho que ele era do comercial, se não era, era um indivíduo muito influente que fazia um pouco esse lado. Acho que o único indivíduo que prospectava [as empresas] era ele. Ele era o cara que mais fazia essa busca. Mas nós já não... [Comento: “Ele já não trabalhou mais com vocês...”]. Nós já fomos afastando um pouco ele, eu acho que ele era muito comercial e não era a nossa ideia. [Comento: “Ele entrava em conflito com o comitê científico?”] Isso, exatamente. Esse ponto eu me lembro. Eu me lembro que o mais comercial era ele, e o próprio s. Fábio* que era da SBC do Rio de Janeiro [Pergunto se eles seriam da parte administrativa da SBC]. Isso. Então existia esse lado comercial. Como era a divulgação [do selo para as empresas] eu não me lembro bem. Mas por incrível que pareça nós tivemos atrito com as duas pessoas [Pergunto se eles já eram de um período anterior do selo] Já, há muitos anos. Eles já estavam há muito tempo. E eles na gestão do Marcus não ocupavam o mesmo espaço. Diminuiu o espaço e aí a gente começou a prezar muito mais o lado científico. Nós não estamos aqui para vender produto e empurrar para a população. Não chega que as empresas já querem empurrar, você vai ajudar? O interesse financeiro, não fazia sentido. Você está aqui para proteger a população, não para poder auxiliar alguém para aumentar as vendas. Não era a ideia nossa.” (Mateus*, entrevista 4, 28/04/2015)

Mateus* nos conta sobre esta nova dinâmica que o comitê científico tentou impor ao setor comercial da SBC a partir de 2002. Outros entrevistados também comentam essa relação, mencionando que por vezes ela era conflituosa. Em tese, o setor comercial deveria estar subordinado às decisões técnicas do comitê científico. No entanto, esta relação de subordinação por vezes era questionada. Primeiramente, mais de um entrevistado mencionou que o setor comercial participava das reuniões do comitê científico em que eram feitas as avaliações dos produtos. Entretanto, a frequência sobre este comparecimento não é

unânime. Aqueles que participaram deste reinício do selo mencionam que o setor comercial estava presente com certa frequência, enquanto que outros contam que esta presença não era tão frequente. O ponto comum entre os entrevistados é o de que existia uma “pressão comercial” e um conflito interno do selo entre comitê científico e setor comercial. Carla*, outra de nossas entrevistadas, nos conta que durante as reuniões o setor comercial argumentava sobre o quanto de renda determinada certificação traria para a SBC, ou o quanto de renda seria perdido caso o produto não recebesse o selo.

Outro ponto de conflito surgiu por conta da revisão de contratos mais antigos. Anteriormente, a SBC concedia o selo para uma linha inteira de produtos – e.g. a linha inteira de arroz Tio João ou toda a linha de margarinas Becel. Isto foi algo que deixou de ser aceito pelo comitê científico do selo a partir de 2002. As empresas só poderiam submeter um produto por vez e não uma linha inteira. Da mesma maneira, os contratos com produtos considerados problemáticos (e.g. leites com ômega-3) ou que não tinha um diferencial nutricional (e.g. arroz branco ou água mineral) não foram renovados. Isto causou problemas tanto com o setor comercial quanto com as empresas que buscavam a certificação. João* comenta que na época o comitê científico recebeu críticas internas por conta da não renovação de certos contratos tendo em vista o retorno financeiro que eles geravam para a SBC. Mateus* também relata esta revisão:

“Quando nós entramos lá, nós percebemos que para você dar aquele selo você tinha que estabelecer regras claras e você poderia deixar até de ganhar direito. Porque o selo dá dinheiro para a Sociedade. Você até poderia deixar de ganhar muito dinheiro (...) [ênfase na fala]. Acho que foi trabalhado muito em cima disso. Foi quando a gente começou a falar “Espera aí, água?” A gente começou a fazer uma revisão geral, listando produtos que você até poderia procurar a empresa, com possibilidade de dar o selo porque traria algum benefício. Mas não ficar ali concedendo selo para produtos que não vão agregar absolutamente nada.” (Mateus*, entrevista 4, 28/04/2015).

A segunda mudança importante na infraestrutura do selo foi a contratação de uma nutricionista pelo Funcor para trabalhar

121 exclusivamente com o selo. Felipe*, um cardiologista que trabalhou com o selo no início dos anos de 2000, aponta que uma das dificuldades do processo de avaliação era o volume de trabalho. Ele nos conta que o comitê científico era pequeno para a quantidade de pedidos que chegavam por mês – até trinta produtos – e que o processo de avaliação era demorado e cansativo.

“A gente ficava até tarde da noite construindo aqueles laudos, fazendo aquelas coisas. (...) Com a contratação de uma nutricionista isto facilitou o trabalho – a própria redação dos pareceres. Aí nós já fazíamos a reunião e decidíamos. Era uma forma mais funcional, porque se começou de uma forma muito amadora.” (Felipe*, entrevista 10, 06/05/2015).

A fala do entrevistado marca um “antes” e “depois” na trajetória do trabalho do selo. Se anteriormente o comitê científico precisava ficar responsável por todas as etapas do processo de avaliação, incluindo tarefas burocráticas como a redação do parecer final, isto muda com a contratação de uma nutricionista que se dedicava exclusivamente ao selo. A gestão de 2002 conseguiu convencer o Funcor a contratar uma nutricionista que ficou responsável pela redação de um parecer final com a avaliação do comitê científico que era repassado para as empresas. Ao longo da trajetória do selo, o regime de trabalho destas nutricionistas contratadas não seguia o tempo de duração de um presidente eleito da SBC e suas diretorias (dois anos). Portanto, algumas delas ficaram mais de dois anos no cargo e acompanharam diferentes equipes do selo.

A contratação de uma nutricionista pelo Funcor criou uma posição pivô na certificação, pois ela articulava uma série de tarefas no processo de avaliação. A nutricionista contratada ficava responsável não apenas pela redação do parecer final, mas ela também estava presente em todas as etapas do processo de avaliação. Ela “organizava todo o processo”, segundo um entrevistado. Inicialmente, esta nutricionista recebia do setor comercial da SBC a documentação requisitada da empresa que buscava a certificação. Posteriormente em reuniões, ela apresentava este material ao comitê científico para a avaliação. Finalmente, após a avaliação do comitê científico, ela comunicava a decisão deste comitê ao setor comercial da SBC e redigia o parecer

final40. Ela também realizava trabalhos secundários. Um deles era a revisão da literatura científica sobre algum alimento que ainda não estivesse incluso nos critérios para que este pudesse ser mais bem avaliado pelo comitê científico (e.g. estudos sobre a relação entre o consumo de pães com fibras e a prevenção de doenças cardíacas). Outra tarefa era tentar situar um produto que requisitava a certificação. Nos casos de alimentos que não estavam inclusos em critérios nutricionais do selo, ocorria uma comparação com outros produtos disponíveis no mercado. Isto implicava em levantar o perfil nutricional de uma categoria de alimento (e.g. molho de tomate) em diversos países e no Brasil para que o comitê científico pudesse estabelecer parâmetros nutricionais e avalia-lo.

Além disso, esta nutricionista contratada pelo Funcor ocupava uma posição intermediária. Ela fazia a ponte entre o setor comercial que trazia os produtos para a certificação e o comitê científico. Alice*, uma das nutricionistas do selo que entrevistamos, nos conta que antes das reuniões ela já sinalizava para o setor comercial se ela achava que o comitê científico provavelmente aprovaria ou não determinado produto. Após as reuniões, ela também comunicava ao setor comercial da SBC quais foram os pareceres do comitê científico. Por vezes ela negociava a relação conflituosa entre setor comercial e comitê científico quando estes dois não concordavam sobre uma decisão. Como nos contou Alice*, ela ficava “bem no meio de campo”.

Esta nutricionista também entrava em contato com as empresas depois da aprovação de um produto. Depois de 2002, as empresas passaram a ter que submeter a embalagem do produto com o selo, antes deste ser colocado no mercado. Depois dos episódios com a Parmalat e com os óleos vegetais que alegam ser “sem colesterol”, a SBC passou a supervisionar as formas de divulgação do selo pelos produtos

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Enquanto que anteriormente as empresas só pagavam por esta avaliação caso o seu produto fosse aceito, depois de 2002 a SBC passou a cobrar uma taxa por toda a avaliação. Um antigo book comercial do selo traz a informação de que esta taxa era de dois mil reais. Disponível em:

https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&c ad=rja&uact=8&ved=0CBwQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.cardiol.br%2 Fpublicidade%2Fdownload.asp%3Farq%3D%2Fpublicidade%2FBOOK%2BS ELO%2B- %2BALIMENTOS..doc&ei=9WedVdytO8q4ggT51YH4CQ&usg=AFQjCNHU for9S_ICKwiTjRKUtSFJADtElA&sig2=Let-c_Hgy- sm2S5ytVay7A&bvm=bv.96952980,d.eXY

123 aprovados. No caso, a nutricionista contratada pelo Funcor ficava responsável por receber esta material de divulgação, assim como ela supervisionava a renovação do contrato. Após dois anos de contrato, as empresas poderiam renová-lo. Para isso, esta nutricionista contratada pelo Funcor pegava uma amostra do produto em algum supermercado e o enviava para análise. Caso a composição do produto estivesse modificada, ela questionava a empresa sobre o motivo. Dependendo da avaliação dela, esta nutricionista poderia recomendar ou não ao comitê científico para que o contrato não fosse renovado.

Durante o trabalho de campo percebemos que por conta da posição que estas nutricionistas contratadas pelo Funcor ocupavam no processo de certificação, elas seriam informantes privilegiadas. Estas nutricionistas não apenas acompanhavam todo o processo, mas elas ocupavam uma posição híbrida. Elas transitavam entre o comitê científico, o setor comercial da SBC e as empresas que buscavam a certificação. Felizmente conseguimos entrevistar Alice*, uma das nutricionistas que já foi contratada pelo Funcor para trabalhar integralmente com o selo. A partir da posição de Alice* podemos entender mais detalhadamente como funcionava o processo de certificação da SBC, as avaliações e os standards, e a relação entre comitê científico, setor comercial e empresas. Por conta disso, a fala de Alice* é uma das que mais mobilizamos no último capítulo quando analisamos o processo de certificação.

A terceira mudança na infraestrutura do selo aconteceu em relação aos laboratórios que produziam o laudo físico-químico utilizados na avaliação dos produtos. Relembrando: uma das exigências da SBC era a de que as empresas entregassem um laudo físico-químico do produto que submetessem à certificação. Como nos conta Felipe*, a equipe de 2002 passou a perceber que a maioria destes laudos vinha por um ou dois laboratórios – no caso, estes eram aqueles que cobravam o menor valor. A questão é que depois de perceber isto, o comitê científico pediu que colegas visitassem estes laboratórios em nome da SBC. Quando lhe perguntei se estes laboratórios eram como o laboratório do Instituto Adolpho Lutz (um dos principais laboratórios de análises em saúde pública do Brasil), Felipe* respondeu com humor que não estes não eram “nenhum Adolpho Lutz”. Durante a entrevista, esta questão estava relacionada a uma intuição nossa. Anteriormente à conversa com Felipe*, nós já havíamos encontrado books comerciais do selo do período entre 2002 e 2011 com informações sobre os procedimentos do processo de certificação. Seguindo a estas fontes

descobrimos que o selo passou a listar os laboratórios que os fabricantes poderiam utilizar para a produção dos laudos (ver Quadro 2). O Quadro 2 traz um trecho do book comercial de 2005 em que estão os laboratórios recomendados pela SBC na época.

Quadro 2: Trecho do Book Comercial do Selo (2005)

Fonte: Book comercial 2005 (SBC, 2005)

Os laboratórios listados acima são reconhecidos como bons laboratórios de análise no país. Nossas fontes sugerem que após o período de 2002, a SBC tentou disciplinar as empresas recomendando a estas os laboratórios que elas deveriam buscar para a confecção dos laudos. Esta indicação de laboratórios está presente nos books comerciais do selo que encontramos disponíveis online durante a pesquisa, do período entre 2002 e 2011. Nossas fontes sugerem que quando o comitê científico do selo percebeu que as empresas buscavam laboratórios comerciais menores, ele entendeu que isso poderia ser um elo fraco do selo. Afinal, qual era o principal objeto a contar como prova durante a avaliação dos alimentos? O laudo físico-químico produzido por estes laboratórios. A percepção da SBC era a de que, ainda que fossem credenciados pela ANVISA, estes laboratórios menores poderiam ser espaços pouco disciplinados. E por conta disso, eles poderiam ter erros de medição ou metodológicos, o que produziria

125 laudos fracos. A força do selo, a sua capacidade de resistir a possíveis críticas, não dependia apenas do que acontecia no momento da avaliação, mas também dos aliados com os quais o selo contava. Era preciso disciplinar as empresas a procurar laboratórios adequados.