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3. A importância das práticas nos estudos sociais da ciência

4.1 Críticas à materialidade na ANT

Não há dúvida que as questões trazidas pela ANT, tal como a proposta da simetria e a agência dos não-humanos, ou a ideia de que as práticas científicas funcionam em rede, ocupam uma posição importante no campo dos estudos sociais da ciência atualmente. As críticas mais recentes ao princípio de simetria e a agência dos não-humanos com certeza são bem mais brandas e sinalizam a significativa aceitação no campo de trabalhos na linha da ANT. Donna Haraway em uma entrevista, por exemplo, aponta para a tendência em antropomorfizar o não-humano, e analisar a agência deste em analogia à agência do humano (GANE, 2006, p.143). A indicação da autora de que parte do desafio contemporâneo está em pensar novas categorias para descrever melhor a agência dos não-humanos ainda é bastante válida. Ainda enfrentamos a questão sobre como descrever adequadamente a ação dos não-humanos e este é um desafio que, por conseguinte, também atravessa este trabalho.

As críticas atuais contrastam bastante com o cenário das décadas de 1980-1990. A intensidade das críticas pode ser sentida pelos títulos de artigos e resenhas deste período, tais como: Surely you`re joking, Monsieur Latour!; The Eighteenth Brumaire of Bruno Latour; Epistemological Chiken; Anti-Latour (AMSTERDAMSKA, 1990; SCHAFFER, 1991; COLLINS; YEARLEY, 1992; BLOOR, 1999). Amsterdamska (1990) criticou Latour principalmente por não

83 diferenciar entre os tipos de associações estabelecidas entre os agentes. A autora aponta que há diferenças entre um ator que é bem sucedido porque usa argumentos ou mata seus oponentes, ou se os experimentos que atuam como provas são ou não uma fraude, ou se os aliados são convencidos ou forçados a apoiar um fato ou tecnologia (AMSTERDAMSKA, 1990, p.501). Bloor (1999) defendeu o Programa Forte e recusou a ideia de que a separação entre Sociedade e Natureza não consegue explicar a produção de conhecimento. Em retrospectiva, esta crítica de Bloor tornou-se derrotada no campo: na época o autor afirmou que todo o conhecimento depende somente do polo da Sociedade e que, portanto, são as diferenças entre as crenças a respeito da Natureza que deveriam ser estudadas pelo cientista social (BLOOR, 1999, p.89). Em linhas gerais, a posição da ANT seria que o conhecimento não depende apenas da Sociedade, pois nenhum objeto científico é constituído sem a participação dos não-humanos e, por isso, estes devem compor a explicação. Além disso, como vimos anteriormente, Sociedade e Natureza não podem explicar como um objeto científico é formado, pois são um efeito de como as práticas científicas organizam o mundo na Modernidade (LATOUR, 1994).

A crítica de Collins e Yearley (1992) ao princípio de simetria da ANT está entre as mais conhecidas na história do campo. Estes criticaram o princípio da simetria e a agência dos não-humanos atacando trabalhos exemplares da ANT, entre eles a história sobre uma criação de vieiras no litoral da França estudada por Callon (CALLON, 1986). Seguindo a Callon, as vieiras aparecem como atores que se recusaram a aderir aos criadouros instalados na baía de St. Brieuc. Para descrever a controvérsia a respeito de por que o criadouro francês não funcionou, a história é contada por Callon em termos de associações mal-sucedidas entre as vieiras, os cientistas e pescadores daquela região.

Collins e Yearley (1992) elaboram três pontos principais sobre o problema da simetria neste trabalho de Callon. Os autores observam que, ainda que os não-humanos devam ser tratados em pé de igualdade com os humanos, a simetria depende do pesquisador. Isto é, a simetria seria muito mais uma imposição de Callon e da ANT à análise, do que uma descrição apropriada do que acontece. Além disso, a ideia de uma simetria completa implicaria que a descrição deveria contar com o ponto de vista do não-humano (e.g. a vieira) – o que, obviamente, não seria possível (COLLINS; YEARLEY, 1992, p.333).

Entretanto, consideramos que esta parte da crítica de Collins e Yearley (1992) é problemática. Se a descrição da agência dos não-

humanos depende do pesquisador, o mesmo pode ser dito a respeito da descrição que fazemos das ações dos humanos. A crítica de Collins e Yearley sugere que as descrições sociológicas das ações humanas são um retrato fiel do que as pessoas realmente fazem, enquanto que por outro lado, a descrição da agência dos não-humanos fosse uma completa invenção. Não apenas a descrição da agência dos não-humanos depende do analista, mas também a dos humanos. É o pesquisador que faz o recorte e estabelece uma cadeia de eventos e ações, evidenciando alguns aspectos em detrimento de outros na análise que ele cria (e.g. CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996). Se Collins e Yearley (1992) consideraram que a agência dos não-humanos é uma invenção do analista, então o mesmo deve ser dito a respeito da agência dos humanos. Em ambos os casos é o pesquisador que impõem a descrição da agência à análise. Tanto na descrição da agência dos não-humanos, quanto na descrição da agência dos humanos, o pesquisador está o tempo todo no controle.

No entanto, a crítica mais robusta de Collins e Yearley foi a de que a descrição da agência das vieiras por Callon depende da avaliação dos cientistas. Dado que Callon não tinha como avaliar se as vieiras se fixaram ou não nos criadouros feitos para elas na baía de St. Brieuc, o autor é obrigado a contar com o parecer dos cientistas (COLLINS; YEARLEY, 1992, p.336). O argumento de Collins e Yearley seria que isto acontece não apenas nesta pesquisa de Callon (1986), mas atravessa a ANT. O problema desta simetria seria o de que a ANT precisa se apoiar na descrição que os cientistas e técnicos oferecem para dar conta da agência dos não-humanos.

Uma resposta para esta crítica seria que não podemos tomar o que os cientistas dizem sobre os não-humanos, como as vieiras estudados por Callon, como a única forma de descrever o que os não-humanos fazem. Na época, a resposta de Callon e Latour foi a de que a análise do que os cientistas dizem sobre as vieiras, por exemplo, serve para analisar como as práticas científicas constroem competências para os não- humanos (CALLON; LATOUR, 1992). Críticas como as de Collins e Yearley provocaram importantes rearranjos teóricos na ANT. Um desenvolvimento importante foi a ideia de que as práticas científicas constituem uma forma de existência possível entre outras (para o exemplo mais recente, ver LATOUR, 2013). Dessa maneira, as descrições das práticas científicas sobre os não-humanos indicam as formas de existência destes nestas práticas. Desse modo, a descrição dos cientistas e de outros atores que participam da produção de conhecimento nos serve para analisar como os não-humanos ganham

85 existência a partir das práticas científicas. As descrições que as práticas científicas realizam dos não-humanos devem ser vistas como traduções. Por exemplo, quando analisamos os efeitos de um alimento no corpo, seguindo as descrições das práticas médicas, não consideramos que esta seria a única descrição possível do que os alimentos fazem no corpo. Nós analisamos estas descrições dos efeitos dos alimentos no corpo como uma tradução das práticas médicas de como o alimento age.