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Pesquisas sociológicas sobre recomendações médicas para uma “boa dieta” identificam tensões entre diferentes formas de se relacionar com a alimentação (BEADSWORTH; KEIL, 2002, p.130; FISCHLER, 2010; MOL, 2012, p.383). De um lado estariam as recomendações nutricionais que seguem um modelo biofísico. Neste modelo, os alimentos são mobilizados pelas recomendações médicas enquanto combustíveis para manter o funcionamento adequado do organismo. Nestas práticas o corpo é feito como uma máquina que precisa de energia para funcionar, e os alimentos como inputs que podem ser mensurados e quantificados66. Mol (2012) relata em sua etnografia que as recomendações médicas para pessoas que precisam perder peso indicam que estes pacientes devem passar a contar calorias. Dessa maneira, os pacientes conseguiriam reduzir seu peso ao controlar e reduzir as calorias que consomem.

Mol (2012, p.383) tem razão quando assinala que as calorias são uma forma calculista de se relacionar com a alimentação. As calorias, assim como os nutrientes, inserem em práticas alimentares o que Weber chama de “racionalidade formal” (WEBER, 2012, p.53). A racionalidade formal das calorias tem a ver com o grau de cálculo tecnicamente possível que elas viabilizam. Elas ajudam as pessoas a controlar o que comem sem que precisem contar com a sensação de satisfação. O problema da sensação de satisfação é que ainda não existe uma metrologia para ela como a que temos para a composição dos alimentos em uma escala bioquímica – as calorias e nutrientes. Com

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Como veremos mais adiante neste capítulo, este modelo do corpo como máquina e dos alimentos como inputs subjaz também a legislação brasileira na área de alimentos.

169 isso, a sensação de satisfação não fornece o mesmo grau de cálculo possível que calorias e nutrientes permitem. Ainda que sentir-se satisfeito seja uma forma do corpo reagir quando comemos, é preciso saber reconhecê-la. Para não ganhar peso sem contar calorias, é preciso treinar o corpo e a mente para distinguir a sensação de satisfação de outras sensações. As calorias e os nutrientes racionalizam o “comer”, pois aumentam o nível de cálculo possível, de modo que aliviam o esforço envolvido em ensinar o corpo a reconhecer a sensação de satisfação.

Contudo, as práticas que privilegiam os alimentos como recursos que mantêm o funcionamento do organismo não são universais. Encarar o alimento como um combustível não é a única maneira de se relacionar com a alimentação67. Ela coexiste com outras práticas em que o alimento se torna fonte de prazer. Mol (2012) afirma que estas variações ontológicas do alimento – feito ora como combustível, ora como prazer – estão em conflito com recomendações médicas que aconselham, por exemplo, a contar calorias. Desse modo, alguns autores argumentam que o auto-controle e modos de se relacionar com a alimentação que buscam o prazer não conseguem ser reconciliados em muitas das recomendações médicas (BEADSWORTH; KEIL, 2002, p.52; MOL, 2012, p.383). Portanto, a literatura aponta que estas diferentes maneiras de se alimentar estão em tensão. Enquanto que treinar o corpo para que ele não coma demais seja desejável, permitir que os alimentos deem prazer pode ser um perigo.

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Vale colocar que não há um consenso entre as recomendações nutricionais quanto à contagem de calorias. Nem todos os profissionais da área da saúde concordam que contar calorias seja a melhor maneira para a perda de peso ou para ter uma alimentação saudável (e.g. BRODY, 2011). Um dos argumentos seria que o mais importante é prestar atenção à qualidade das calorias consumidas e à composição da dieta. Alimentos diferentes, ainda que com as mesmas calorias, provocam efeitos diversos no corpo. Dietas com baixo teor de gorduras têm efeitos no metabolismo diferente das dietas com poucos carboidratos ou de baixo índice glicêmico (níveis de açúcar no sangue), por exemplo. Um estudo de Harvard sugere que enquanto dietas com poucos carboidratos são eficazes na redução de peso, elas aumentam os níveis de cortisol e da proteína-C reativa (um biomarcador de inflamação no corpo). Em comparação, pessoas com dietas com baixo teor de gordura tiveram uma redução do gasto calórico conforme perderam peso e níveis de colesterol alterados. Disponível em: http://news.harvard.edu/gazette/story/2012/06/when- a-calorie-is-not-just-a-calorie/

Diante desses apontamentos da literatura, nosso argumento é o de que muitos dos produtos certificados com o selo da SBC, ou que já foram certificados, tentam reconciliar, ou pelo menos amenizar, esta tensão entre alimentos saudáveis e os alimentos prazerosos. Nesta seção seguimos a publicidade online de produtos que são ou já foram certificados pelo selo da SBC e algumas entrevistas de representantes destas empresas. Estes produtos promovem uma maneira de se relacionar com a alimentação em que o prazer não estaria em oposição ao saudável em termos de calorias e nutrientes.

Representantes de marcas de cremes vegetais que já foram certificados pela SBC chamam a atenção para a associação entre o prazer ao comer e uma alimentação saudável em entrevistas concedidas durante o lançamento de certos produtos. Em 2004, a Sadia lançou o Creme Vegetal Sadia Vita que trazia alegações de saúde sobre a redução do colesterol. Em entrevista à revista Época, um representante de marketing da empresa Sadia comentou: “Mesmo com propriedades nutricionais de controle de gordura e sódio, conseguimos desenvolver um produto que se destacasse pelo sabor, comprovando que é possível termos uma alimentação saudável e saborosa” (MARQUES; AREAS; 2004). Em 2000, a Unilever lançou a Becel pro-activ que na época também trazia o selo de aprovação da SBC. Em entrevista a “Brasil Alimentos”, uma revista voltada para o público empresarial, o representante do setor de novos produtos da empresa comentou: “O consumidor procura cada vez mais alimentos saudáveis, que ofereçam benefícios para a saúde e tenham sabor agradável”68

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Entre os alimentos que já foram certificados pelo selo da SBC, a Quaker é um caso exemplar de empresa que busca reconciliar o prazer na alimentação com a qualidade do saudável. Vamos ao site oficial na internet dos produtos Quaker.

A Quaker contextualiza seus produtos em uma proposta mais ampla do que apenas a alimentação saudável. A Quaker promove o bem-estar. O espaço do site identificado como “Vida Saudável” é dividido em três eixos: “bem-estar”, “saúde”, “alimentação saudável”. Com isso, a empresa situa os produtos Quaker em rede com outras práticas: o consumidor é convidado não apenas a consumir os produtos, mas também a praticar exercícios e seguir certos hábitos de higiene. Na seção do site chamado de “Vida Saudável” podemos ler em destaque: “Acreditamos que uma das melhores formas de se manter saudável é

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Disponível em: http://www.signuseditora.com.br/ba/pdf/02/02%20- %20Movimento.pdf

171 comendo corretamente. Aproveite nossas dicas e informações nutricionais para incluir a aveia no seu dia a dia. Você vai ver que nunca foi tão fácil e gostoso se alimentar bem” [grifo meu]69. Assim como nas entrevistas dos representantes de cremes vegetais que vimos inicialmente, a relação entre alimentos saudáveis e o prazer em consumi-los ganha visibilidade no site da Quaker. Seguindo o site da Quaker, identificamos duas estratégias da empresa para reconciliar estes dois polos.

A primeira estratégia para aliar alimentação saudável e prazer é a formulação e publicidade dos produtos. Os cereais matinais trazem a aveia Quaker que, como vimos no capítulo anterior, historicamente conseguiu reivindicar para si a qualidade do saudável. Aliada à aveia, os cereais matinais agregam ingredientes que apelam ao paladar. Os cereais matinais são encontrados nos sabores chocolate, banana e o mel, iogurte e frutas. Os biscoitos tipo cookies são todos feitos com aveia e nos sabores cacau e avelã, maçã e canela, passas e granola. Ainda que os cereais matinais sejam feitos com outros ingredientes para além destes acima, são estes que aparecem nas embalagens e publicidade dos produtos. Isto é, para além da aveia, a Quaker torna visível nas embalagens os ingredientes que apelam ao paladar – e.g. o cacau, a avelã, a canela. Estes ingredientes são mencionados na parte da frente e na parte de trás da embalagem e são acompanhados por fotos. Nesse caso, as embalagens são artefatos importantes porque servem como fontes do que a Quaker deseja tornar visível. As embalagens inscrevem as associações que a Quaker deseja promover em um formato visualmente agradável: a aveia e o chocolate, o saudável e o gostoso.

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Foto 1: Parte da frente da embalagem da Quaker Cereal Mix