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3. A importância das práticas nos estudos sociais da ciência

3.3 A certificação como prática científica

No que se segue, discutimos em que medida os debates sobre as práticas, seguido pelas questões de representação versus ontologia contribuem para o estudo de certificações, standards e qualidades.

Nosso primeiro ponto baseia-se na constatação de que a noção das práticas envolvidas na produção de conhecimento foi estendida para outros locais além do laboratório. Atividades como o diagnóstico e escolhas de tratamento médico (BERG, HARTERINK, 2004), decisões políticas feitas por agências regulatórias (JASANOFF, 2005; WINICKOFF, BUSHEY, 2009) e as maneiras como novas tecnologias são utilizadas e consumidas são exemplos de outras práticas que também passaram a serem vistas como parte do processo de produção do conhecimento (AMSTERDAMSKA, 2008, p.209). Dessa maneira, considera-se que a produção de conhecimento passa também pelas mãos de atores não-cientistas e que há uma intersecção entre o conhecimento considerado científico e outros tipos de conhecimento.

Com isso, as atividades que compreendem um processo de certificação, assim como a definição de seus standards também estão incluídos no hall das práticas científicas a serem estudadas. Existe uma literatura crescente que tornou processos de certificação e standards temas de investigação nos estudos sociais da ciência (ver, por exemplo, BOWKER, STAR, 2000; LAMPLAND, STAR, 2009; BUSCH, 2011). Portanto, o estudo da qualidade do saudável a partir do processo de certificação da SBC se junta a este interesse do campo. Se as práticas

científicas e standards criam realidade (MOL, 2002; BUSCH, 2011), então o processo de certificação da SBC pode ser estudado como uma prática científica que confere existência à qualidade do saudável.

Nosso segundo ponto é o de que dentro da literatura das práticas, a chamada ontologia empírica contribuiu para os estudos sobre certificações, standards e qualidades. A literatura que trata a ontologia como resultado de práticas permite pensar que a certificação da SBC faz a qualidade do saudável existir de maneira específica. Portanto, se há diferença entre as práticas de certificação, então há diferenças entre as qualidades certificadas.

Para um exemplo, não é preciso ir longe: apesar da SBC reivindicar que se inspira na certificação para alimentos criada pela American Heart Association (AHA), os standards nutricionais que a sociedade cardiológica brasileira utilizava para avaliar os produtos submetido à certificação não são os mesmos. Para citar um desses pontos contrastantes, enquanto que no Brasil a SBC colocava certas vitaminas no conjunto de nutrientes que observava nos alimentos, a AHA não elenca as vitaminas como parte dos critérios de sua certificação. Ainda que a AHA e a SBC sejam sociedades médicas do mesmo campo, a Cardiologia, elas fazem a qualidade do saudável existir de modo diferente em suas certificações. Com isso, os testes aplicados, processos de definição e utilização dos standards, assim como a atenção para o que conta como prova no processo de certificação são pistas importantes nesse sentido.

As formas de avaliação são marcadores centrais para entender as particularidades da qualidade tendo em vista o que acontece durante o processo de certificação. Além disso, mudanças em outras práticas associadas à certificação, tais como a avaliação que cardiologistas brasileiros fazem de fatores de risco para o coração (e.g. colesterol) ou em recomendações no consumo de nutrientes como o sódio e gorduras modificam como o selo da SBC configura a qualidade do saudável. Pela via que articula práticas científicas e ontologia, atentamos melhor para o caráter situado do saudável e para a questão de que este é uma versão entre outras possíveis.

Em terceiro lugar, o estudo da certificação em termos de práticas enfatiza o que está ativo nas práticas. Aqui entendemos que o que está ativo nas práticas pode ser encontrado não apenas no discurso, mas também na materialidade, tais como os instrumentos presentes nos laboratórios de pesquisa, o laudo físico-químico dos produtos, as diretrizes médicas, nas embalagens e rótulos dos alimentos e os artigos

79 científicos. Este último ponto requer uma discussão um pouco mais extensa e, por isso, é tratado no item a seguir.

4. A materialidade

De maneira geral, a importância da materialidade nos estudos sociais da ciência tem duas justificativas principais. Primeiramente, a atenção aos elementos materiais que participam das práticas é parte do que é considerada uma boa descrição no campo. Isto tem a ver com o argumento de que fatos e artefatos científicos não existem por inércia, mas demandam manutenção contínua – é necessário que atores continuem trabalhando para sustentar um fato como verdade ou fazer uma tecnologia funcionar (LATOUR, 2001, p.194-195). Por isso, é necessário descrever o que os atores mobilizam para garantir o sucesso da tecnologia ou do fato científico que promovem não apenas em termos discursivos.

Em segundo lugar, a atenção à materialidade está relacionada a discussões sobre o caráter da agência e o papel dos não-humanos, sobretudo na tradição da ANT. A noção de não-humano denota uma série de entidades que participam no curso das ações e que, assim como os humanos, podem assumir a condição de atores. De acordo com Sayes (2013, p.136), o termo não-humano funciona como um conceito guarda- chuva que denota entidades como animais (CALLON, 1986), fenômenos naturais (LAW, 1987), ferramentas e artefatos técnicos (LATOUR, WOOLGAR, 1986), estruturas materiais (LATOUR, HERMANT, 1998), dispositivos de transporte (LAW, CALLON, 1992), textos e bens econômicos (CALLON, 1999). A ANT promoveu à posição de ator estas entidades que até então não apareciam em descrições sociológicas. O argumento seria o de que os não-humanos criam uma assimetria de forças e, portanto, fazem diferença nos acontecimentos. Os humanos deixaram de ser os únicos atores e as ações passaram a ser consideradas o resultado das associações entre humanos e não-humanos22.

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Como nota Latour (2005) sobre o papel do não-humanos nas ações segundo a ANT:

“(…)things might authorize, allow, afford, encourage, permit, suggest, influence, block, render possible, forbid, and so on. ANT is not the empty claim that objects do things ‘instead’

A ideia de que os não-humanos devem ser tratados como atores está associada ao que ficou conhecido como o princípio de simetria generalizada, em referência ao princípio de simetria proposto por David Bloor. Bloor (1976) e o Programa Forte marcaram os estudos sobre ciência ao propor que todo tipo de conhecimento científico deve ser explicado pelos mesmos fatores, independente de este ser considerado falso ou verdadeiro. Bloor e ao Programa Forte criticaram a ideia de que apenas o que era considerado falso precisava ser explicado segundo fatores sociais (e.g. ideologia), enquanto que o que era considerado verdadeiro era motivo de sua própria explicação. O Programa Forte foi um avanço histórico ao exigir que o verdadeiro e o falso fossem tratados simetricamente, no sentido de que os mesmos fatores sociais que podiam explicar o conhecimento falso deveriam servir também para explicar o conhecimento verdadeiro.

Anos mais tarde, a ANT propôs o que chamou de segundo princípio de simetria ou simetria generalizada. De acordo com este, devemos suspender a divisão entre Natureza e Cultura, entre os humanos e não-humanos (CALLON; WOOLGAR, 1997, p.24). A ANT argumenta que estas seriam fronteiras conflituosas: a atribuição de propriedades humanas e não-humanas, assim como a distinção entre Natureza e Cultura são efeitos de como as práticas científicas organizam o mundo (CALLON, 1986) – como já vimos na formulação de Latour anteriormente. Independente de um ator ser considerado humano ou não-humano por quem estudamos, o princípio de simetria generalizada prevê que a descrição das práticas científicas deve levar em conta o que está ativo, o que participa na ação.

Um ponto importante do por que os não-humanos devem ser tratados como atores está na distinção entre intermediários ou mediadores (CALLON, 1991; LATOUR, 2005). Latour (2005) observa que geralmente os não-humanos são tratados como intermediários, isto é, como veículos do significado ou ações de atores humanos sem modificá-los. Com isso, os não-humanos não precisam ser levados em conta na explicação sociológica: independente de qual não-humano está presente na ação, não haverá alteração em como as coisas acontecem. Somente os humanos são relevantes na descrição sociológica, dado que of human actors: it simply says that no science of the social can even begin if the question of who and what participates in the action is not first of all thoroughly explored, even though it might mean letting elements in which, for lack of a better term, we would call non- humans.” (LATOUR, 2005, p.72).

81 estes seriam os únicos atores efetivamente capazes de alterar os acontecimentos. Seguindo a ANT, a alternativa a esta perspectiva seria olhar para os não-humanos como mediadores. Falar em mediador significa dizer que o não-humano soma algo à interação. Caso um não- humano seja substituído por outro, o resultado da ação será diferente. Entender os não-humanos como mediadores quer dizer que, por conta de suas especificidades, estes são tratados como atores que modificam o que acontece. Nesta linha, a modificação/substituição de um não- humano no curso das ações implica que as coisas teriam acontecido de forma diferente23.

O argumento segue afirmando que a união entre humanos e não- humanos deve ser vista como traço da ordem social (HARAWAY, 1991; LATOUR, 1994a). Nesse sentido, não apenas a ANT, mas também Haraway (1992) enfatiza o caráter híbrido da ordem social ao definir esta como um coletivo de associações entre humanos e não- humanos. Haraway (1992) mobiliza a ideia do ciborgue, um híbrido, para pensar a queda de fronteiras importantes, principalmente as que distinguem entre humanos e animais, assim como entre humanos- animais e as máquinas. O ciborgue é um argumento sobre a ambivalência destas fronteiras no final do século XX24. Assim como a ANT (e.g. LATOUR, 1994), o ciborgue questiona, sobretudo, a

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Um caso exemplar seria a análise das disputas entre campanhas contra a venda de armas de fogo e a National Rifle Association nos EUA (LATOUR, 2001, p.203). No centro da questão está a arma de fogo e como esta modifica a ação de quem a adquire. Um cidadão com o desejo de machucar, mas desarmado, torna-se um agente que adquire a capacidade de matar com uma arma em mãos. A associação entre pessoa e arma gera novas possibilidades que não poderiam ser explicadas sem levar em conta a capacidade de matar que a arma confere ao seu portador. A arma de fogo acrescenta algo à ação: o encontro entre pessoa e arma cria uma relação que não existia anteriormente. A arma de fogo é um elemento ativo porque associada a alguém transforma o curso das ações.

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O Manifesto do Ciborgue (HARAWAY, 1992) foi publicado em 1985 em um contexto de resistência acadêmica em desistir de dualismos antigos. Haraway se apropria de uma figura que geralmente aparece no cinema ou na literatura e a torna um conceito que coloca em cheque a necessidade de distinções claras. O argumento é o de que práticas científicas no final do século XX, sobretudo na Biologia e nas Ciências da Comunicação, passaram a confundir as fronteiras entre humano e animal, e entre humano-animal e máquinas em todo o mundo. Como aponta a autora, a certeza do que conta como natureza e humano está minada (HARAWAY, 1992, p.11).

distinção entre Cultura e Natureza como ponto de partida para explicar e descrever o social.

Estas são perspectivas que enfatizam a natureza coletiva e distribuída da ação: esta seria o resultado da associação entre os atores humanos e não-humanos. Vale notar que a ação em termos de associação se afasta do conceito weberiano clássico de ação social, pois não é definida pelo critério do sentido subjetivamente atribuído. Apesar de não encontramos uma tipologia da ação como em Weber (2012), os trabalhos na tradição da ANT e pós-ANT parecem deslocar o conceito de ação para a capacidade de provocar um efeito – algo que também foi sugerido em comentários mais recentes sobre o que seria um ator na ANT (MOL, 2010, p.255). A noção de ação enquanto a capacidade de produzir efeito abre espaço para que os não-humanos possam ser considerados atores e, com isso, sejam convertidos em uma parte pertinente das descrições de práticas científicas.