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A dignidade da pessoa humana como fundamento do ordenamento pátrio

3 A SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL

4.5 A ALOCAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE PARA UM PRIMEIRO PLANO ENTRE OS

4.5.1 A dignidade da pessoa humana como fundamento do ordenamento pátrio

A dignidade da pessoa humana pode ser conceituada como o atributo inerente e distintivo de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado mediante a consagração de um complexo de direitos e deveres fundamentais que venham a lhe proteger de atos degradantes bem como a lhe garantir as condições mínimas

179Sobre a doutrina do “Preffered freedoms” conferir MARTEL, Letícia de Campos Velho. Hierarquização de direitos fundamentais: a doutrina da posição preferencial na jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana. Is there a hierarchy between Fundamental Rights? The preferred position constitucional doctrine in the light of Supreme Court line decision. In: Revista Sequência, n° 48, p. 91-117, jul. 2004.

180 Ao comentar a garantia do direito à saúde na Espanha, Guilhermo Escobar explica que existem dois âmbitos protetivos distintos: a proteção da saúde individual, que abarca um conjunto de ações dirigidas a tutelar a saúde como o direito de se conservar vivo e consequente eliminação de enfermidades e sofrimento a partir da assistência no caso concreto e o direito a medicamentos; e a proteção à saúde de maneira coletiva, a qual abarca um conjunto de ações, em sua maioria preventivas, dirigidas igualmente a tutelar difusamente a saúde de todos a partir de políticas que indiquem as prioridades na área. ESCOBAR, Guilhermo. Las garantias del derecho a la salud en España. In: Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Ano 1, n.1. jul./dez de 2008. p. 14.

de existência para uma vida saudável que termine por propiciar sua participação ativa nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos181.

Desta maneira, pode-se afirmar que a dignidade não encerra uma criação constitucional, já que consiste em um dado preexistente a toda experiência especulativa182, havendo, em verdade, um reconhecimento pela norma da existência de tal qualidade que acaba gerando um direito ao respeito e promoção dessa relevante qualidade inerente a todo ser humano.

Esclarecendo, sob um viés filosófico, a dignidade da pessoa humana, por ser pré- jurídica, não consiste em um direito ou especificamente em uma pretensão, mas sim, em um valor espiritual e moral intrínseco à pessoa, cujo dever geral de respeito e proteção acarreta no surgimento de pretensões jurídicas a direitos subjetivos decorrentes desse valor.

Nesse contexto, a proteção normativa da dignidade da pessoa humana, além de permitir o reconhecimento do outro no que se refere às suas peculiaridades como indivíduos, assume uma feição tanto defensiva (já que o dever de respeito à dignidade atua como limite aos poderes estatais) quanto protetiva (uma vez que impõe uma tarefa promocional de caráter prestacional ao Estado) que aloca o ser humano definitivamente para o papel de finalidade última do Estado, funcionando, portanto, como um pressuposto da igualdade real183 de todos os homens e da própria democracia.

Na conjuntura pátria, tem-se que a CF de 1988, ao alçar à dignidade humana ao status de fundamento184 do Estado Democrático de Direito Brasileiro, optou por posicioná-la como um valor central que se impõe como núcleo básico informador do sistema jurídico pátrio e assume uma especial prioridade no sistema normativo já que o unifica e o centraliza, funcionando como um super princípio a orientá-lo185. Logo, a dignidade apresenta um aspecto dual visto que atua como elemento que, simultaneamente, confere unidade de sentido e legitimidade a ordem constitucional pátria186.

181 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 73.

182 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. 2000, São Paulo: Malheiros, 2000. p. 146. 183

GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos Fundamentales e Desarrollo Legislativo– La Garantía Del Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales em la Ley Fundamental de Bonn. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994 apud BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos Princípios Constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 244.

184

Art. 1°, III da CF de 1988.

185 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. In: LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 194.

186 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

Assim, no cenário do constitucionalismo tupiniquim, a dignidade da pessoa humana apresenta-se como um princípio e valor fundamental, servindo como bússola de toda ordem jurídica apta a conferir unidade de sentido e legitimidade à ordem constitucional, operando não só como elemento de integração e critério hermenêutico, mas também (e principalmente) como um portal que garante a abertura material do sistema jurídico dos direitos fundamentais.

Pode-se dizer, assim, que a dignidade enquanto valor fundamental se apresenta como um componente fundante e informador de todos os direitos fundamentais configurando-se como fonte ética dos mesmos187, visto que pressupõe o reconhecimento e proteção de todas as dimensões desses direitos, significando a ausência deles uma autêntica negação aviltante à própria dignidade.

Com efeito, por constituírem os direitos fundamentais verdadeiras explicitações da dignidade da pessoa humana, pode-se concluir que a pretensão de eficácia e inviolabilidade dessa dignidade encontra-se na dependência da sua capacidade de se integrar no contexto da dogmática dos direitos fundamentais de todas as dimensões em uma perspectiva para além do catálogo do Título II da Carta Magna de 1988, já que a dignidade funciona como critério para a construção de um conceito materialmente aberto de direito fundamentais no ordenamento pátrio.

Logo, para além dos direitos e garantias expressamente reconhecidos como tais pelo constituinte, existem direitos fundamentais alocados em outras passagens da Constituição de 1988, bem como nos tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos, além de direitos decorrentes implicitamente do regime e dos princípios consagrados pela CF188 e esse alargamento da consagração de direitos fundamentais tem como carro-chefe o aspecto transcendental da dignidade da pessoa humana.

Nesse ponto, antes de prosseguir, faz-se necessário alertar que a natureza aberta marcada por certo grau de indeterminação da noção de dignidade da pessoa humana, nesse contexto enfrentado de abertura do catálogo de direitos fundamentais, deve ser interpretada com muito cuidado de modo a não enfraquecer o instituto devido a uma expansão exagerada do leque de possibilidades materiais a serem enquadrados nessa abertura.

Melhor explicando, para a preservação da força normativa e eficácia da dignidade da pessoa humana, o reconhecimento de direitos fundamentais para além dos já expressos constitucionalmente deve ser encarado de modo a não se banalizar esse valor fundamental da dignidade da pessoa humana, o qual não deve ser tratado como um espelho no qual todos

187 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2° ed, Coimbra: Coimbra, 1998, v. 4, p. 167. 188 Por força do § 2° do art. 5° da CF de 1988.

veem o que desejam ver189, mas sim, interpretado a partir de critérios hermenêuticos seguros e respaldados na sistemática ínsita ao ordenamento pátrio evitando, desta forma, o seu esvaziamento.

Conclui-se, portanto, que ao passo que os direitos fundamentais funcionam como exigência e concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, esse atua como elemento ampliativo de tais direitos e serve de limite à restrição dos mesmos. Nesse contexto, especialmente quanto à feição promocional da dignidade da pessoa humana de impor uma tarefa de cunho prestacional ao Estado, há uma clara relevância do instituto para os direitos sociais (especialmente o direito à saúde) já que a dignidade impõe a satisfação das condições para uma vida saudável exigindo, portanto, um conjunto de direito a prestações por parte do Estado e da comunidade.