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O DÉFICIT EVOLUTIVO NA GRADUAL CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À

3 A SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL

4.4 O DÉFICIT EVOLUTIVO NA GRADUAL CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À

Nas primeiras linhas desse trabalho foi asseverado que o mesmo partiria de duas premissas, sendo uma delas exatamente a constatação de que, com o tempo percorrido pela CF de 1988, o nível atingido no processo de concretização do direito à saúde é deficiente e não condiz perfeitamente com os anseios constantes nos pactos internacionais assinados pelo Brasil, nem nos dispositivos delineados tanto na Constituição Federal159 quanto no arcabouço legislativo infraconstitucional sobre o tema.

Para tal conclusão, basta acompanhar os casos alarmantes de verdadeiro caos na realidade da saúde pública vivida no país, retratada diariamente nos telejornais160, para se chegar a conclusão de que algo está errado ou, utilizando-se de um jargão popular, de que “a

conta não bate”.

É nessa conjuntura, portanto, que surge a indagação: como um país que se compromete na ordem internacional a promover a saúde na maior medida do possível, que arquiteta tal bem jurídico de maneira ímpar em seu ordenamento, prevendo até mesmo a vinculação orçamentária de um mínimo a ser gasto com tal direito frente sua relevância, pode, ainda assim, apresentar problemas estruturais básicos tão gritantes? Não resta dúvida,

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Seria inconstitucional e colidiria com a proibição do retrocesso, portanto, a ocorrência, em um cenário de crise econômica, de restrição pontual com relação à abrangência do atendimento em saúde, previsto na legislação do SUS, sem que antes tenha sido restringida a regulamentação de todas as áreas tidas como não prioritárias pela Constituição (propaganda, construção de estádios para eventos esportivos participação de dinheiro público, por exemplo) ou, até mesmo, áreas não tão prioritárias quanto o direito à saúde.

159 Enfatiza esse ponto o fato da Constituição de 1988 ser tipicamente dirigente visto que, além da tradicional função de estruturar o Estado, incorporou-se em seus textos definições valorativas e ideológicas reconhecendo- se, assim, o seu poder de tomar decisões políticas fundamentais e estabelecer prioridades materiais e objetivos públicos que terminam por guiar o comportamento futuro do Estado. Sobre o tema da Constituição dirigente, conferir COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente, 2° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

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À título ilustrativo seguem algumas matérias que retratam as péssimas condições da saúde pública no Estado do Rio Grande do Norte, as quais tiveram repercussão nacional nos últimos anos: http://globotv.globo.com/inter- tv-rn/rn-tv-2a-edicao/v/caos-toma-conta-da-saude-em-mossoro-rn/2494580/ .Acessado em: 02/04/2013;

http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2013/01/marcha-do-fio-de-aco-reune-medicos-em-protesto- ao-caos-na-saude-do-rn.html Acessado em: 02/04/2013; http://governadoremfoco.blogspot.com.br/2013/01/caos-

na-saude-do-rn-e-destaque-no.html Acessado em 02/04/2013;

portanto, que há um claro descompasso entre a vontade constitucional e a vontade dos governantes que precisa ser combatido e corrigido.

Não obstante, para a melhor compreensão do referido descompasso é primordial abstrair um pouco a análise do plano meramente fático (que é o ponto de chegada do problema) e tentar entender melhor o fundamento jurídico que aponta para uma maximização do dever estatal em realizar o direito à saúde (o ponto de partida), e para isso é importante se ter em mente a noção de gradualidade, bem como de dever de progressividade inerente ao processo de realização dos direitos fundamentais sociais.

Nesse ponto, consoante o já analisado PIDESC, tem-se para o Estado o estabelecimento de uma obrigação de realização progressiva dos direitos sociais, a significar o dever de serem tomadas todas as providências possíveis, nos limites dos recursos disponíveis, com o escopo de alcançar gradativamente a mais completa realização desses direitos e da forma mais ampliativa possível, o que revela uma ideia de avanço e otimização.

Nesse sentido, o dever de progressividade implica na alocação dos recursos existentes sejam direcionados à consecução dos direitos especificados no PIDESC da melhor forma possível, significando, especialmente quanto ao direito à saúde, que o Brasil possui a obrigação concreta e constante de desenvolver, o mais eficientemente possível, à plena realização do direito ao mais alto nível de saúde, em respeito ao artigo 12 do referido diploma anteriormente já estudado161.

Alinha-se a essa visão, ainda, a noção de gradualidade162 de realização dos direitos sociais a prestações materiais no sentido de que, como tais direitos demandam direta e efetivamente do aporte financeiro do Estado, e este é finito, a efetivação progressiva dos mesmos deverá ser alcançada e construída pouco a pouco, passo a passo, conforme a capacidade financeira do Estado.

Desta forma, uma política de saúde eficaz e consentânea com a proteção que é dada

“no papel” a tal direito pressupõe uma estruturação tendente a uma crescente e contínua

melhoria163 das condições de saúde, realizada a passos graduais de acordo com a

161 GIALDINO, Rolando E. El derecho al disfrute del más alto nível posible de salud. In: Investigaciones, Buenos Aires, n° 3, p . 493-537, 2001, p. 517.

162CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Metodologia „fuzzy‟ e „camaleões normativos‟ na problemática actual

dos direitos económicos, sociais e culturais”, in: Estudos sobre Direitos Fundamentais. Ed. Coimbra, 2004, p.

108 apud FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 132.

163 É muito importante a exata compreensão desses ponto: não basta simplesmente afirmar que a realização do direito à saúde deve ser gradual e progressiva frente a limitação dos recursos, como se isso fosse um argumento automático e apto a justificar qualquer falha ou omissão estatal. Na realidade, deve ser acoplado a esse raciocínio (progressividade gradual) a ideia de que tal progressão deve ser movida por um anseio contínuo e crescente de melhoria, de avanço.

disponibilidade financeira possível, mas sempre guiada para o avanço e nunca para o retrocesso.

A conclusão do acima afirmado (que apesar de simplória é bastante relevante) é a de que se o quadro da saúde pública de uma determinada região se agrava no plano fático, seja por ausência de médicos, pela não disponibilização de insumos hospitalares ou pela insuficiência de vacinas, por exemplo, e inexiste uma justificativa plausível para isso164, o que estará ocorrendo na prática é um verdadeiro retrocesso na realização do direito à saúde e o argumento de que tal situação é justificável pelo atrelamento da disponibilização de prestações materiais aos limites orçamentário, não poderá prosperar.

Em termos mais diretos, a gradualidade relaciona-se, sim, com a disponibilidade de recursos, mas nunca poderá ser utilizada para justificar um retrocesso, pois ela funciona como um motor da progressividade, ora acelerando, ora diminuindo tal aceleração, mas sempre avançando, nunca retroagindo165.

Assentadas as exatas noções de gradualidade e progressividade, as quais se conectam à temática já tratada da reserva do possível e da vedação do retrocesso social, defende-se que o aparato legislativo (abrangendo tanto os Pactos Internacionais, como a CF e a legislação ordinária) construído com relação ao direito à saúde significa um compromisso firmado pelo Estado com a sociedade e o atual estágio do quadro da saúde pública no país demonstra a

ocorrência de um autêntico “calote” por parte do Estado, o qual se encontra recalcitrante em

cumprir exata e perfeitamente o que se comprometeu, terminando por frustrar os cidadãos. Frente a este desacerto, com o intuito de corrigir tal déficit evolutivo, a solução aqui proposta é exatamente a de acelerar esse processo de concretização do direito à saúde e nessa jornada assumem papel de destaque: a intervenção judicial na concretização do desse direito; a proteção coletiva do mesmo, empreendida pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública; e a participação e controle social, sobretudo na seara orçamentária.

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Apenas uma situação de excepcionalidade (um surto epidemiológico, por exemplo) poderia justificar uma

possível “falta” do Estado para com seu dever de realização do direito à saúde. Se a verba para tal direito já se encontra “amarrada” não faz sentido, em um mês não se constatar problemas e no seguinte, sem nenhuma

mudança no cenário anterior, ocorrer, por exemplo, uma diminuição radical no número de médicos em determinado hospital público. A falta de planejamento (ou até mesmo de vontade) do Poder Público bem como a má gestão dos recursos disponíveis são situações totalmente diferentes da comprovada insuficiência de recursos e não podem ser considerados argumentos válidos e justificáveis, quando utilizados pelo Estado para justificar suas falhas.

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Expõem Abramovich e Courtis que a noção de progressividade apresenta dois sentidos complementares: abarca ao mesmo tempo o reconhecimento de que a satisfação plena dos direitos sociais supõe uma certa gradualidade e a noção de que progresso liga-se à obrigação estatal de melhorar as condições de gozo e exercício de tais direitos. ABRAMOVICH, Víctos Ernesto; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Trotta, 2002, p. 93 apud FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 138.

Contudo, antes de entender como os citados atores podem efetuar suas contribuições, faz-se relevante examinar a segunda premissa exposta no início desse estudo, qual seja: a estruturação prioritária que é dada ao direito à saúde no ordenamento pátrio e sua ligação com a dignidade da pessoa humana.

4.5 A ALOCAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE PARA UM PRIMEIRO PLANO ENTRE OS