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As dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais e sua dupla

3 A SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL

3.2 ASPECTOS RELEVANTES DO TRATAMENTO JURÍDICO DOS DIREITOS

3.2.2 As dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais e sua dupla

A dimensão subjetiva dos direitos fundamentais apresenta sua origem na concepção clássica desenvolvida no período das primeiras declarações de direitos no século XVIII já vistas acima e comporta a noção de que os direitos fundamentais dão origem a uma série de posições jurídicas diversas, outorgando ao titular do direito pretensões de defesa, proteção e

Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 40.

prestação quer perante o Estado ou a particulares85, se relacionando, assim, com o poder que o titular de um direito possuir de exigir judicialmente a efetivação do mesmo86.

As primeiras fissuras dessa dimensão subjetivista, marcadamente de cunho individualista, surgiram com o Estado Social e se solidificaram ainda mais com o Estado Democrático de Direito a partir da noção, bastante difundida por Rudold Smend, de que a função primordial da Constituição estaria em promover a integração da comunidade, o que só seria possível pela tutela dos valores vividos e socialmente compartilhados. O elemento principal de uma Constituição seria, então, os valores em que esta se apoia sendo a fonte basilar desses valores exatamente os direitos fundamentais87.

Desta forma, a partir dessa concepção axiológica, difundiu-se a teoria da Constituição como função integradora, o que permitiu que os direitos fundamentais passassem a desempenhar novos papéis na ordem jurídica, visto que não seriam mais somente direitos de cunho subjetivo, mas sim, autênticos proclamadores e tradutores do sistema de valores sobre o qual repousaria a ordem vigente. Surge a noção, portanto, de dimensão objetiva dos direitos fundamentais que veio a autorizar a extração de deveres a serem impostos ao Estado e particulares em decorrência da simples irradiação do conjunto dos direitos fundamentais e dos valores por eles priorizados88.

Há uma guinada na estrutura clássica da teoria dos direitos fundamentais89 os quais passam, de simples limitadores do poder estatal, a acumular as funções de fixadores de diretivas basilares na elaboração de políticas públicas e vetores a serem respeitados nas

85 Importante destacar a contribuição da teoria dos status de Georg Jellinek que, calcada nos pressupostos de subjetivismo e individualismo da época, assevera que os indivíduos podem assumir quatro posições diferentes perante o estado: i. passivo: o indivíduo estaria subordinado aos poderes estatais; ii. negativo: ligada ao ideal de liberdade já que o indivíduo teria sua esfera individual de liberdade imune à intervenção estatal; iii. positivo: seria a prerrogativa do Estado prestações positivas; e iv. ativo: frente a possibilidade do indivíduo participar ativamente da formação da vontade política através do voto por exemplo.

86Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins apontam que a dimensão subjetiva: “trata-se da dimensão ou da função clássica, uma vez que o seu conteúdo normativo refere-se ao direito de seu titular de resistir à intervenção estatal em sua esfera de liberdade individual. Essa dimensão tem um correspondente filosófico-teórico que é a teoria liberal dos direitos fundamentais, a qual concebe os direitos fundamentais do indivíduo de resistir à intervenção

estatal em seus direitos (...)”. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3°ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 117.

87 SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO. José Adércio Leite (org.). Jurisdição Constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 270.

88 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e

efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 45.

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Nesse ponto, Hesse destaca que os direitos fundamentais não apenas constituem direitos subjetivos dos indivíduos, mas também princípios objetivos básicos para o ordenamento constitucional democrático, abrangendo, este duplo caráter, diferentes níveis de significação, podendo atuar como legitimador, criador e fomentador do consenso, apresentando-se, assim, relevante para processos democráticos. HESSE, Conrado. Significado de los derechos fundamentales. In: Manual de Derecho Constitucional. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 1996. p. 83-115.

relações entre particulares, norteando o Estado na consecução dos seus fins. É do reconhecimento dessa dimensão objetiva90 que surgem, portanto, tanto a noção de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, os quais transcendem seu domínio além da mera relação cidadão e Estado atingindo a relação direta entre os particulares, como também, a importante noção de garantias institucionais91.

Este último efeito (a noção de garantias institucionais) corresponde a ideia de que o âmbito de proteção de um direito fundamental vai além da sua mera esfera subjetiva, alcançando o complexo jurídico-normativo na sua essência de modo a vincular o espaço de conformação do legislador, o qual deverá exercer sua função norteado pelo dever de alargar o espectro protetivo imediato do direito subjetivo em questão visando à sua concretização por meio de garantias institucionais92.

Melhor esclarecendo, as disposições legislativas a respeito do SUS que regulamentam o art. 196 da CF, por exemplo, atuam como verdadeiras garantias institucionais já que densificam o direito à saúde indo além do esboço da proteção primitiva conferido na CF para esse direito fundamental social. Desta maneira, frente à dimensão objetiva do direito fundamental à saúde, não poderia o legislador, ao regulamentar a CF, restringir o contorno básico que nela é dado a tal direito, nem alterar a regulamentação já existente com o mesmo propósito (restrição do direito à saúde já previsto na CF), sob pena de incorrer em inconstitucionalidade.

Feitas tais observações, outro ponto de destaque é a noção de fundamentalidade formal e material ínsita aos direitos fundamentais. A fundamentalidade formal liga-se ao direito constitucional positivo desdobrando em um trifásico raciocínio: a) como parte integrante do corpo constitucional, os direitos fundamentais situam-se no ápice de todo o ordenamento

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Podem ser identificados alguns desdobramento dessa dimensão objetiva dos direitos fundamentais: i. os direitos fundamentais apresentam, objetivamente, o caráter de normas de competência negativa no sentido de que aquilo que está sendo outorgado ao indivíduo em termos de liberdade para ação está sendo objetivamente retirado do Estado, portanto, independentemente do particular exigir em juízo o respeito de seu direito; ii. os direitos fundamentais funcionam como critério de interpretação e configuração do direito infraconstitucional a partir de seu efeito de irradiação; iii. os direitos fundamentais podem ser limitados por esta dimensão objetiva quando isso estiver no interesse de seus titulares, ou seja, a partir do raciocínio de que o titular estaria mais bem protegido se não exercesse o direito em certas circunstâncias; e iv; haveria um dever estatal de tutela dos direitos fundamentais no sentido de protegê-los ativamente contra ameaças de violência provenientes, sobretudo, de particulares. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3°ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 118-120.

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ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2 ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 110 apud FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 46.

92 Há uma remodelagem da noção de conformação legislativa visto que o legislador passa a ser encarado não mais como unicamente interessado em restringir os direitos fundamentais, mas sim como um concretizador, um harmonizador do sistema a partir de sua atividade de otimização dos direitos em atenção à máxima efetividade possível.

jurídico, constituindo-se, pois, em uma norma de superior hierarquia; b) na qualidade de normas fundamentais insculpidas na Constituição escrita, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento mais dificultoso de modificação) e materiais (as denominadas

“cláusulas pétreas”) de reforma constitucional; e c) com base no disposto no art. 5°, parágrafo

primeiro, da CF, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamente o Estado e os particulares93.

Quanto ao viés material, consoante se demonstrará melhor mais adiante, este se refere à relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional em si, o que no caso do direito fundamental social à saúde aqui trabalhado, consiste em aspecto facilmente identificável frente a evidente importância da saúde como pressuposto à manutenção da vida digna94.