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A APLICAÇÃO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO E SUA RELAÇÃO COM O

3 A SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL

4.3 A APLICAÇÃO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO E SUA RELAÇÃO COM O

Foi esclarecido que a reserva do possível, antes de ser vista como óbice insuperável à efetivação dos direitos sociais, deve viger, de certa maneira, como um mandado de otimização dos direitos fundamentais, impondo ao Estado o dever fundamental de, tanto quanto possível, promover as condições ótimas de efetivação da prestação estatal em causa, buscando preservar, além disso, os níveis de realização já atingidos. Tal observação aponta, por sua vez, para a necessidade do reconhecimento de uma proibição do retrocesso, ainda mais naquilo que se está a preservar o mínimo existencial148.

Nesse sentido, faz-se relevante analisar, brevemente, de que maneira o presente estudo encara a ideia de vedação do retrocesso social e, a partir de tal entendimento, qual a sua repercussão no que tange ao direito à saúde.

Pois bem: o princípio149 da proibição ou vedação do retrocesso é uma construção doutrinária que diz respeito à possibilidade ou não de se diminuir o campo protetivo de um direito fundamental já protegido infraconstitucionalmente.

Tal análise parte da premissa de que os direitos fundamentais devem ser concretizados por meio de regulamentação infraconstitucional em um cenário de progressiva ampliação e, tendo isto em mente, enfrenta o questionamento de ser ou não possível se discutir a validade de uma eventual revogação de enunciado (sem posterior substituição e, portanto, gerando um vazio legislativo) que, regulamentando o direito fundamental em questão, tenha propiciado a melhor fruição e ampliação do direito em questão150.

Ou seja, o objetivo da vedação do retrocesso é exatamente o de evitar supressões legislativas que venham a regredir o âmbito de proteção já garantido para o direito fundamental em exame. Contudo, o raciocínio não é tão simplista assim nem pode ser

148 SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, mínimo existencial e direito a saúde: algumas aproximações. In: Doutrina Nacional. Direitos Fundamentais e Justiça. nº 1, out-dez 2007. p. 171-213.

149 Não é alvo do presente estudo a averiguação acerca da natureza jurídica da noção de vedação do retrocesso, adotando-se a designação de princípio apenas de modo a seguir a maioria doutrinária sobre o tema.

150 Alguns autores, como Felipe Derbli, defendem que é possível reconhecer a existência do princípio da

proibição do retrocesso social na própria CF de 1988 uma vez que: “(i) a Carta Magna vigente determina a

ampliação dos direitos fundamentais sociais (art. 5°, §2°, e art. 7°, caput), com vistas à progressiva redução das desigualdades regional e sociais e à construção de uma sociedade livre e solidária, onde haja justiça social (art. 3°, incisos I e III, e art. 170, caput e incisos VII e VIII); (ii) em sendo uma Constituição dirigente, impõe o desenvolvimento permanente do grau de concretização dos direitos sociais nela previstos, com vistas à sua máxima efetividade (art. 5°, § 1°), sendo consequência lógica a existência do comando, dirigido ao legislador, de não retroceder na densificação das normas constitucionais que definem tais direitos sociais.”. DERBLI, Felipe. Proibição de Retrocesso Social: Uma Proposta de Sistematização à Luz da Constituição de 1988. In: BARROSO, Luís Roberto (org.) A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 494.

encarado como uma máxima vinculante vez que se insere na discussão acerca da autonomia da função legislativa e dos limites à liberdade de conformação do legislador, podendo a utilização excessivamente abrangente da vedação do retrocesso, que não leve em consideração a conjuntura político-econômica do momento analisado, implicar em distorções não almejadas pelo ordenamento constitucional.

De modo a esclarecer melhor o acima afirmado, faz-se relevante destacar alguns pontos que auxiliarão na exata compreensão acerca do posicionamento deste trabalho quanto ao instituto da vedação do retrocesso e sua repercussão quanto ao direito à saúde. O primeiro ponto é que o esvaziamento total de um direito já incorporado e regulamentado no ordenamento, sem uma política substitutiva ou uma justificação de ordem lógica que leve em consideração um possível conflito com outro direito, antes de ser uma ação que colida com a ideia propugnada pela vedação do retrocesso, consiste em uma autêntica violação à Constituição.

Nesse contexto, admita-se, hipoteticamente, que seja revogado integralmente o Código de Defesa do Consumidor, esvaziando-se completamente o campo protetivo que tal diploma confere aos direitos nele abarcados, sem se empreender uma substituição por nova legislação sobre o tema. Tal situação seria injustificável e, sem dúvida, significaria um retrocesso que, antes de ser proibido pelo princípio da vedação do retrocesso, por si só, já seria eivado de clara inconstitucionalidade.

O segundo ponto, para além da situação acima de revogação integral na regulamentação de determinado direito fundamental, consiste na premissa de que a análise sobre um possível retrocesso na regulamentação de um direito não deve levar em consideração puramente o aspecto textual da norma alterada, mas sim o panorama macro no qual a norma em exame está envolvida e, consequentemente, as condicionantes de ordem política, econômica, histórica, cultural visto que restrições a direitos podem, em determinados casos, significar razoavelmente a promoção de outros tidos como mais prioritários pelo legislador para o contexto do momento em questão151.

151Corroborando com esse pensamento, Ana Paula Barcellos pontua que: “Considerando a dignidade da pessoa humana de forma integral e coletiva – isto é: os vários aspectos da dignidade de cada indivíduo e de todos eles em determinada sociedade –, é equivocado imaginar que a proteção ampliada de um específico direito fundamental será sempre o meio adequado de promover e proteger a dignidade humana das pessoas. É provável que, em sociedades nas quais há mais mão de obra que empregos, o incremento progressivo dos direitos trabalhistas tenha como efeito a ampliação do mercado informal de trabalho (no qual direito algum é assegurado)

(...)”. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos Princípios Constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 91.

Imagine-se, então, que em um cenário de progresso e tranquilidade econômica sejam conferidas certas benesses com relação a um direito específico, as quais venham a garantir uma ampliação do mesmo. Vislumbre-se, agora, um cenário de grave crise econômica em que algumas dessas benesses sejam suprimidas temporariamente visando a que outros direitos, tidos por mais prioritários, sejam melhor garantidos frente ao quadro de recessão.

Caso admitida a vedação do retrocesso como uma máxima capaz de impedir qualquer tipo de restrição da regulamentação vigente ao direito em questão, a situação acima descrita seria impossível de ser alcançada, o que poderia ocasionar um prejuízo e retrocesso, até mesmo maior, para a sociedade e para a concretização152 dos direitos fundamentais como um todo (considerando uma interpretação sistemática do ordenamento).

Desta forma, quando comparados contextos históricos totalmente diferentes, a melhor saída consiste em não analisar a supressão meramente pontual de cada direito, mas sim, se o

balanceamento empreendido pelo legislador para “sobreviver” ao cenário de crise, entre áreas

constitucionalmente prioritárias e não prioritárias, significa um avanço ou um retrocesso do sistema constitucional como um todo.

Reforça essa visão o posicionamento assentado no parágrafo 9 da Observação Geral n°3 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU que, ao comentar o dispositivo 2.1 do PIDESC (aqui já visto e que prevê o dever dos Estados, considerando o máximo de recursos de que disponham, de adotar medidas para produzir de forma progressiva a efetividade dos direitos reconhecidos no pacto), pondera que pode ser admitida a adoção de medidas restritivas dos direitos previstos no pacto desde que justificadas e levando-se em consideração a totalidade de tais direitos no contexto do pleno aproveitamento dos recursos disponíveis.

Some-se a isso, o aspecto relacionado à deliberação democrática, no sentido de que o raciocínio o qual considera que a regulamentação de um direito formaria com sua previsão constitucional uma espécie de bloco de constitucionalidade153, funcionando como uma

152 De se destacar as lições de Pieroth e Schlink no sentido de que a concretização de um direito fundamental é verificada sempre que o seu âmbito de proteção permanece intacto, não limitado, e neste caso o Estado não pretende de modo nenhum impedir uma conduta que esteja abrangida pelo âmbito de proteção. Ao contrário, pretende precisamente abrir possibilidades de conduta, para que o particular possa fazer uso do direito fundamental sendo necessárias conformações nos chamados âmbitos de proteção marcados pelo direito ou pelas normas. PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução de António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93-94.

153Sobre a expressão, Pablo Luis Manili aponta que: “em 1970 el profesor Claude Emeri comentó, em la Revue

de Droit Public (Revista de Derecho Público), una decisión de este Consejo, adoptada em 1969 y referida a la

reforma del Reglamento de la Asamblea Nacional. En este artículo, el autor advierte que la constitucionalidad de esse reglamento fue juzgada no soloamente em relación com la Constitución, sino también com referencia a uma Ordenanza (n° 58-1100 del 17/11/58) que regula el funcionamiento de las Asambleas parlamentarias, y para

cláusula pétrea ampliada, pode significar um engessamento inconstitucional da autonomia da função legislativa, que ficaria obstada de empreender o balanceamento acima mencionado em contexto de crises, podendo incidir em um maior prejuízo a certos direitos154.

Assentados os dois pontos acima, uma saída para a não banalização ou utilização desenfreada do instituto da vedação do retrocesso que venha a enfraquecê-lo, é o estabelecimento de um limite para as possíveis restrições a algum direito, de modo que só será considerado um retrocesso de fato as situações em que tal limite fosse ultrapassado e a decretação desse limite encontra-se exatamente no texto constitucional e na demarcação do núcleo essencial do direito em exame.

Dessa maneira, o princípio da proibição do retrocesso social pode ser enxergado a partir da seguinte fórmula: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais medidas que, sem criar esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, em uma anulação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial que funcionaria como limite para a liberdade de conformação do legislador e a inerente autorreversibilidade155.

Conclui-se, portanto, que: i. as supressões totais de regulamentações bem como aquelas que, ainda que não totais, impliquem na aniquilação do núcleo essencial do direito examinado são, antes de afronta ao princípio da vedação do retrocesso, medidas inconstitucionais; ii. as supressões pontuais/parciais externas ao espectro do núcleo essencial do direito fundamental em análise devem ser encaradas levando em conta o momento histórico em questão e a totalidade dos direitos fundamentais amparados pelo sistema constitucional como um todo, visto que uma ação, que, a princípio, possa aparentar ser

describir esse conjunto de normas que eran tenidas em cuenta por el Consejo Constitucional – además de la própria constitución – para ejercer su competencia, utilizo por primera vez la expresión. MANILI, Pablo Luis. El Bloque de Constitucionalidad: La recepción del Derecho Internacional de lós Derechos Humanos en el Derecho Constitucional Argentino. Buenos Aires: La Ley, 2003, p. 284.

154 Sobre a questão da liberdade de conformação do legislador na temática da vedação do retrocesso social, José

Carlos Vieira de Andrade leciona que: “O princípio da proibição do retrocesso, enquanto determinante

heterónoma vinculativa para o legislador implicaria, bem vistas as coisas, a eleveção das medidas legais concretizadoras dos direitos sociais a direito constitucional. (...) Contudo, isso não implica a aceitação de um

princípio geral de proibição do retrocesso, nem uma „eficácia irradiante‟ dos preceitos relativos aos direitos sociais, encarados como um „bloco constitucional dirigente‟. A proibição do retrocesso não pode constituir um princípio geral nesta matéria, sob pena de se destruir a autonomia da função legislativa(...)” (grifos no original).

VIEIRA, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.Coimbra: Almedina, 1998, p.309 apud BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos Princípios Constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 86.

155 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7° ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 327.

restritiva de um direito, pode significar, em verdade um avanço de outro mais prioritário (e, caso não signifique, será eivada de inconstitucionalidade).

Como se vê, a questão é complexa, e buscando sua melhor solução, o presente estudo se filia ao mecanismo proposto por Ana Paula de Barcellos para se identificar em que circunstâncias a vedação do retrocesso será aplicável para além da hipótese de revogação total de uma disciplina existente em matéria de direitos fundamentais. Tal mecanismo, aproximando-se do pensamento acima mencionado com relação à limitação da restrição pelo núcleo essencial do direito constitucional em análise, parte da ideia básica de confrontar (não apenas quanto ao aspecto linguístico, mas também considerando o contexto histórico e cultural) a nova regulamentação, aparentemente restritiva, com a garantia mínima que decorre da Constituição e não propriamente com a disciplina já adotada pelo legislador constitucional156.

Nota-se, assim, que o parâmetro de aferibilidade sai do substrato normativo infraconstitucional e atrela-se unicamente à constituição, já que tal investigação se norteia pela indagação se a nova disciplina pretendida compatibiliza-se com a garantia constitucional do direito em questão ao ponto de realizar, de forma minimamente adequada, o bem jurídico tutelado, garantindo, assim, a aplicabilidade real e efetiva da fruição do mesmo por seus destinatários. Em caso afirmativo, a nova regulamentação não afrontaria a vedação do retrocesso, em caso negativo, tal inovação deverá ser encarada como uma supressão inconstitucional do direito em análise.

Finalmente, aplicando tudo que foi dito acima à situação específica do direito à saúde tem-se que, frente à maior fundamentalidade do direito à saúde, devido a sua íntima ligação com o direito à vida e à dignidade humana, supressões totais quanto a regulamentação de tal direito bem como àquelas que importem em afronta ao seu núcleo essencial157 serão tidas como inconstitucionais, além de colidirem com a vedação do retrocesso.

Com relação a supressões pontuais, sobretudo em momentos de crises econômicas, essas somente serão admitidas como última alternativa desde que sejam comprovadamente

essenciais para a “sobrevivência” do país, tenham caráter temporário, não subvertam o nível

de proteção constitucional conferido a esse direito e, principalmente, sejam realizadas apenas ao posterior esgotamento de restrições em áreas tidas como não prioritárias

156 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos Princípios Constitucionais: O princípio da

Dignidade da Pessoa Humana. 3° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 92.

157 Sem entrar em polêmica doutrinária, o presente estudo considera a visão de núcleo essencial nesse ponto abordada consentânea com a ideia de mínimo existencial em espécie para cada direito fundamental em si.

constitucionalmente158. Nesse sentido, conclui-se ser rara a ocorrência de tal hipótese a qual demandaria uma conjuntura de extrema instabilidade institucional tanto sob o viés político quanto econômico.

4.4 O DÉFICIT EVOLUTIVO NA GRADUAL CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À