• Nenhum resultado encontrado

2.2 Sobre a categoria estética de estilo: entre a diferença e a padronização

2.2.2 A dimensão espiritual e a dimensão social do estilo

É preciso compreender que, partindo-se da sua dimensão espiritual, a categoria de estilo volta a desembocar na sua relação com a dimensão social da qual faz parte. Essa conexão é fundamental para compreendermos como a indústria cultural se apropria do estilo, ao mesmo tempo em que, na esfera da arte autêntica, o estilo entra em crise, segundo Adorno. No Dicionário de Estética, sobre o termo estilo diz-se muito (CARCHIA; D’ANGELO, 2009). A princípio, estabelece três diferentes acepções para o termo. A primeira, refere-se à unidade entre determinados objetos produzidos pelo homem – não há estilo quando se fala sobre paisagens e sobre o belo natural. Nesta linha, a unidade destes diferentes objetos conduz à pertença a uma determinada estrutura, como a uma época. O segundo sentido refere-se à dimensão individual, àquilo que produz uma unidade entre as obras de um mesmo artista. Assim, através da consumação de seu estilo, suas obras revelam a pertença a este artista, ao mesmo tempo em que o diferencia dos demais e, por consequência, das demais obras. A última acepção refere-se à dimensão mais coletiva da humanidade. Refere-se àquele conjunto de práticas, hábitos, costumes que caracterizam determinados grupos ou indivíduos. O termo é próximo da noção de Bourdieu de estilo de vida, noção que só se compreende adequadamente através da conexão existente entre habitus, gosto e estilo de vida. Esta última acepção revela o que há de mais sociológico ou antropológico, que exprime a unidade entre um conjunto de práticas e atividades distantes e diferenciadas.

Já para Adorno (1970, p. 232) aquilo que se chama de estilo são “as convenções, no estado do seu equilíbrio – por instável que seja – com o sujeito”. No fazer artístico, o estilo autêntico jamais foi perfeita aplicação daquilo que é expresso e exigido sob determinado gênero ou estilo. A razão é simples: o estilo autêntico não se expressa na identidade que existe entre o conceito (aquilo que é posto como fundamental para a adequada fabricação do objeto de arte) e a factura do objeto. Uma vez que as convenções representam o poderio da sociedade sobre o sujeito, na esfera da arte não se passa diferente (mas lembrando que o estilo, na leitura de Adorno, tem relevância já antes da época anterior à burguesa).

O artista, deste modo, no seu fazer, está constantemente envolvido em contradições. O estilo é contradição daquilo que deve ser produzido e aquilo que é exigido. Deve visar seu conceito, embora isso lhe seja contrário. Ora, um dos mais importantes aspectos da arte moderna é a sua dimensão expressiva (daquilo que acaba por emancipar a arte da simples 'cópia da realidade' e contribui para sua autonomia). Todavia, a expressão está em constante contradição com a convenção (ADORNO, 1970). Por um lado, para que o objeto artístico não

seja simplesmente um objeto impotente, deve opor-se àquilo que já está convencionado, desgastado e implica no envelhecimento e empobrecimento de determinados materiais artísticos. Por outro lado, deve-se lembrar que nessa relação dialética, é impossível prescindir da convenção: não existe expressão artística que não se dê através das convenções, sem que se lide com outras formas, sem que se aproprie em alguma medida do que já pertence à tradição e à história. A contradição permanece.

Hegel (2001), em seus Cursos de Estética, estabelece uma hierarquia. Em ordem ascendente, estabelece a noção de maneira, estilo e originalidade. Todos os três termos referem-se à forma pela qual o artista lida com a composição da obra. A maneira subjetiva, assume a mais baixa posição devido ao fato de que, na tensão entre a subjetividade do artista e a objetividade do conteúdo presentes na exposição da obra, referir-se à sobredeterminação, à unilateralidade, dos traços individuais na produção da obra. Nesta tendência, a maneira

subjetiva pode tornar-se um vício. Hegel fala que a maneira é perigosíssima ao artista pelo

fato de que, à sua tendência a tornar-se “mania”, “hábito” contradiz o fazer artístico, sua dimensão espiritual, expressiva, tornando-a apenas um esquema subjetivo e fazendo da produção não algo artístico, mas artesanal, artificial e sem alma. Se, por um lado, a maneira

subjetiva é a unilateralidade do ponto de vista da particularidade limitada do artista, o estilo é

um voltar-se à dimensão mais objetiva da produção. Para Hegel (2001, p. 294), “o estilo refere-se então a um modo de exposição que igualmente segue as condições de seu material, ao corresponder completamente às exigências de determinados gêneros artísticos e às leis decorrentes do conceito da coisa”. O estilo está ligado à capacidade do artista de dominar o material artístico ao mesmo tempo em que é uma forma de frear os vícios que desgastam a maneira subjetiva. No ponto mais alto, está a originalidade. Antes de tudo, é preciso entender que, para Hegel, a originalidade não está ligada à inovação, tal como a estética moderna concebe. A originalidade em Hegel é substancialmente a harmonização entre o aspecto subjetivo e o objetivo, entre a subjetividade do artista e a objetividade da coisa na exposição. A originalidade é a forma pela qual o subjetivo e o objetivo se reconciliam, não se tornam mais estranhos um ao outro. A inovação radical, para Hegel, é muito mais próxima da noção de maneira subjetiva, daquele entregar-se ao livre jogo da subjetividade e, deste modo, afastar-se do adequado e consequente desenvolvimento do material artístico. A subjetividade é importante, para Hegel, como uma passagem da verdade objetiva para sua aparição sensível – isto é, o artista como produtor da obra de arte e possibilitador de sua experiência.

Esta hierarquia de Hegel expressa, em grande medida, os dilemas entre a convenção e a expressão, entre a criação artística e as tradições, à tensão entre a dimensão estética e à dimensão coletiva, social, da arte.

Para Adorno (1970), na época pré-burguesa, o estilo aparecia somente como promessa: não realizava a reconciliação entre o particular e o universal, entre a dimensão expressiva e particular do que vinha a ser produzido e as exigências e obrigações impostas pelas convenções e tradições. O estilo é tanto a busca pela afirmação da diferença, sua proteção, quanto, por outro lado, o peso exercido pelas tradições, pelas padronizações.

Observando esta dialética, e principalmente pelo peso maior que era atribuído às tradições em detrimento dos aspectos particulares da composição, Adorno argumenta que, através das tradições artísticas, revela-se o quanto a noção de estilo esteve, secretamente, ligada à dominação social. Todavia, a partir do momento em que as “categorias da ordem social e as categorias espirituais delas derivadas perdem a sua vinculatoriedade, tanto menos é possível encontrar um equilíbrio entre o sujeito e as convenções. O crescente corte entre interior e exterior conduz ao derrube das convenções” (ADORNO, 1970, p. 230). Assim, à medida em que o sujeito, o particular, foi se afastando da totalidade, mais se revelou a conexão entre estilo, como categoria repressiva, e a tradição, como força heterônoma, social, na esfera da arte.

Essa tendência histórica, que separa a época pré-burguesa e a burguesa, e que ocasiona o crescente desligamento do sujeito do interior da sociedade, é por Adorno (1970) chamada de

principium individuationis. Sobre essa ligação da arte com a sociedade através das tradições,

ele estabelece uma distinção entre o fechado e o aberto, importante para toda a teoria das formas, e que, de algum modo, possui semelhanças com a teoria durkheimiana da passagem da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica, da abertura histórica do desabrochamento da subjetividade a partir de determinadas condições históricas que ocasionaram um certo estreitamento da consciência coletiva.

As formas abertas significam o adequado equilíbrio entre as convenções e as potencialidades do objeto estético a ser feito, enquanto que as formas fechadas apontam para a imposição do universal, daquilo que deve ser subsumido ao conceito dos gêneros, ao uso de técnicas dentro de determinados estilos. Ora, a possibilidade da “forma aberta” implica na existência de um grau considerável de liberdade, ao menos como resistência, como também de individualidade. Esta ideia se manifesta claramente quando, diz Adorno (1970, p. 233), que “sem a estrutura objetiva de uma sociedade fechada e, portanto, repressiva, não pode conceber-se o estilo obrigatório”. Na época da arte burguesa, com o crescente corte entre

sujeito e sociedade, com o crescente desenvolvimento de técnicas e da sua disponibilidade, com o alargamento das possibilidades de seu uso adequado à lógica do tema e às possibilidades do material ao invés da sua adequação a esquemas universais, enfim, com a crescente autonomização da arte (Bourdieu fala em anomia estética!), da sua oposição e distanciamento frente à sociedade, o estilo torna-se uma categoria negativa, a ponto de que se passa a julgar aqueles artistas, que contentes por terem encontrado seu estilo como, de imediato, perdidos, uma vez que o estilo, naquilo em que ele se liga à identidade, se opõe aos valores estéticos modernos, como a novidade, a experimentação, à autonomia frente às demandas sociais e, em Adorno, à defesa do não-idêntico. Esta valoração do estilo como algo ligado à padronização e à dimensão repressiva é semelhante ao julgamento de Hegel sobre a

maneira subjetiva, embora, neste caso, a unilateralidade esteja na dimensão subjetiva. Ao

término de sua reflexão, Hegel (2001, p. 298) diz, em concordância com Adorno, que “não possuir nenhuma maneira foi desde sempre a única grande maneira, e somente neste sentido Homero, Sófocles, Rafael e Shakespeare hão de ser chamados originais”.

Ora, pelo que foi dito até agora, percebe-se que Adorno interdita, em grande medida, o estilo enquanto aquilo que expressa uma imposição da tradição sobre o artista, o que implica em heteronomia, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista do artista, expressa o enrijecimento de sua produção em determinados esquemas, no estabelecimento de convenções e padrões que freiam o impulso em direção ao novo, ao desconhecimento, àquilo que ainda não foi dito nem experimentado. Sendo assim, fica mais claro evidenciar em que medida esta categoria estética se torna adequada à finalidade da indústria cultural, em como ela se apropria de algo mais espiritual do que a simples massificação bruta, imposta pela esfera econômica e, por fim, justificar o ponto de vista de Adorno.

Na esfera da indústria cultural, realizou-se a superação da distinção entre estilo autêntico (aquele que mantém a tensão entre expressão e a convenção) e o estilo artificial (aquele que realiza a adequação perfeita da produção segundo as exigências da tradição). Para Adorno (1985, p.107) “o estilo autêntico torna-se transparente na indústria cultural como um equivalente estético da dominação”. Desta forma, a manutenção do estilo pela indústria cultural realiza não somente a conexão funesta e transparente da dimensão espiritual e a dimensão social, como também permite uma racionalização mais ampla, que vai além da simples padronização, mas invadindo o campo das diferenças sociais e culturais, daquilo que é registrado segundo diversas perspectivas, integrando sob a mesma lógica a própria diferença.