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Redução à dimensão sensível e o gosto como culinária

3.4 A Crítica do Gosto em Adorno

3.4.2 Redução à dimensão sensível e o gosto como culinária

Foi dito que fundamentar a experiência estética no gosto implica no abandono de sua conexão com o conhecimento e com a verdade. Para Kant, a partir do momento em que a experiência estética é i-mediata, não é mediada por conceitos, e também não possui qualquer finalidade, é improvável que ela tenha conexão com o saber. Desse modo, a experiência se torna reduzida à dimensão sensível, segundo Adorno (1970). Todavia, em Kant (2010), é verdade, o gosto refere-se à representação do objeto e do livre jogo entre a faculdade da imaginação e do entendimento. Por esta razão, Adorno chama a estética kantiana de um hedonismo castrado. Ela opera a redução da arte à dimensão sensível, ao mesmo tempo em que a suspende, uma vez que ela facilmente se confunde com a dimensão vulgar do agradável aos sentidos. Por sua vez, Adorno não considera a dimensão sensível negativa à arte. Pelo contrário. O problema é a exclusão da relação da arte com o conhecimento, com a verdade e com a crítica. Essa tríade está relacionada ao momento espiritual da arte, à sua autonomia frente ao mundo, ao fato de que, a arte eleva-se sobre o mundo tal como ele é. É este estar além e aquém do mundo que, para Adorno, explica o fato de que todas as obras são, a priori, polêmicas. A razão é que, mesmo a obra de arte mais frágil eleva-se sobre o mundo empírico. Ao mesmo tempo, todas são, também, afirmativas, uma vez que esse “estar além dos fatos” implica em anunciar um “algo a mais”, tão semelhante à utopia, mas que é, em um sentido menos pretensioso, a <<lembrança do possível>>, do que poderia vir à existência e ainda não pertence à ordem do mundo social.

O fato de as obras serem afirmativas e polêmicas tem a ver com a ideia de Adorno de que toda obra de arte é, ao mesmo tempo, fait social e autonomia. Por um lado, são mercadorias produzidas e, por outro, são algo de espiritual; ao mesmo tempo em que são simples produtos fabricados, aparecem, de outro modo, como se não fossem feitas pelos homens, de nenhum modo, fazendo com que aquele “outro mundo, o mundo possível” aparecesse como se fosse real.

Ao reduzir-se a arte à dimensão sensível aniquila-se aquilo que responde pela sua autonomia: o seu ser outro, em relação ao mundo.

É nesse sentido que Adorno fala sobre o gosto em sua acepção gastronômica, como culinária, à questão do sabor – o gosto como relação entre sujeito, desejo e objeto. Na esfera gastronômica, o gosto é apenas aquilo que viabiliza, de modo prazeroso, a satisfação de determinadas necessidades. O prazer que o sujeito sente está relacionado com o fato de que a arte jamais ouse exigir dos sujeitos mais do que eles são, ao mesmo tempo em que os sujeitos exigem que a arte nada mais seja do que aquilo que eles desejam. O gosto é a garantia de que, através de sua centralidade e de sua lógica, o sujeito jamais se emancipe da relação entre desejo e prazer, uma vez que, para Adorno (1985), a lógica da mercadoria trabalha exatamente em cima desse fator: a redução da arte à esfera do sensível, à questão de gosto, de paladar, ao mesmo tempo em que nunca se alcança uma verdadeira satisfação.

Sobre essa conexão entre gosto, identidade e gastronomia, Eagleton (1993, p. 250) diz:

Para Adorno, como para Nietzsche, o pensamento identificatório tem sua fonte nos olhos e no estômago, nos membros e na boca. A pré-história dessa violenta apropriação da alteridade é a dos primeiros humanos predadores sempre preparados para devorar o não-Eu. A razão dominadora é 'a barriga transformada em mente' e esta ira atávica contra a alteridade é a marca registrada de todo idealismo altaneiro

O gosto, culinário, exprime a conexão entre estética e a tendência dominadora da identidade perante aquilo que lhe é outro, a alteridade.

Além disso, a redução da arte à dimensão sensível estabelece uma cisão entre a dimensão espontânea da arte – o sensível aparece como justificado pelo intuitivo – e a intencionalidade. O sujeito torna-se passivo. Não há mais razão para se falar na contemplação, naquela atenção do sujeito, em sua admiração perante aquilo que é inteiramente novo, inesperado, que o excede. Nessa linha, Adorno desenvolve sua tese da regressão da subjetividade e que mostramos através da sua crítica do gosto.

Se em Kant o belo é o que agrada universalmente sem conceitos, na indústria cultural, o belo aparece, para Adorno, como modelo da ideologia: uma forma de se adorar a imediatidade, cegamente, ao mesmo tempo em que se abandona as mediações que a precedem. Basta lembrar a ideia de que a realidade existente é a própria ideologia. O belo aparece como imagem da imediatidade esquecida de suas mediações, ou seja, um processo de reificação. Mas não somente o belo, do ponto de vista objetivo, mas o gosto, do ponto de vista subjetivo. Este aparece como se fosse natureza – imediatidade – quando, para Adorno, é história: imediatidade esquecida de suas mediações.

Nesse sentido, há uma relação entre arte e dialética. Para Adorno (1970), a arte encerra a possibilidade de que, em sua autonomia, do outro mundo para o qual aponta, mediatize a ordem existente e, assim, ao mostrar o possível, mas ainda não existente, igualmente mostra que o mundo existente é, ele próprio, na sua imediatidade, uma possibilidade tornada efetiva. Na direção da experiência subjetiva, a arte é lembrança do mundo objetivo; por outro lado, há a lembrança de que o mundo objetivo é um mundo fabricado, mediato, mas também necessário.

É exatamente através dessa abertura à dialética que, ao mesmo tempo, a arte liga-se à possibilidade da verdade, do conhecimento e da crítica (está além do sensível e intuitivo). Como oposição ao mundo, expressa sua distância em relação a ele – distância que só é possível através do próprio caráter social da arte. Ao mesmo tempo em que se coloca distante, como ficção, como jogo, como ilusão, ou mesmo como realidade possível, a arte contribui para a possibilidade da reflexão – a existência de um outro, da contradição. Entretanto, esse outro que a arte promete não é fantasmagoria, é possibilidade historicamente condicionada.

Percebe-se, assim, que a arte, para Adorno (1970), está ligada à dialética (e, especialmente, à sua dialética negativa) ao mesmo tempo em que a indústria cultural, em sua defesa incondicional da imediatidade e da identidade é, em certo sentido, o modelo cultural do positivismo – em uma leitura adorniana deste termo.

A passagem mais firme de sua defesa da relação entre arte com o conhecimento, com a crítica e com a verdade é expressa por ele, em sua Teoria Estética, quando diz que toda experiência estética deve tornar-se filosófica. Para isso, há de se emancipar a arte da esfera egoísta do prazer subjetivo. Desse modo, se opunha ao positivismo e à estética intuitiva. Adorno (1970, p. 152) lembra que “a consciência actual, fixada no concreto e na imediatidade, é manifestamente muito difícil de adquirir essa relação com a arte, embora sem ela não surja o seu conteúdo de verdade”. A indústria cultural, ideologia da realidade,

promove o sufocamento da dimensão estética, ao mesmo tempo em que se apropria de alguns elementos dela.

A filosofia é, de um modo geral, o representante do conhecimento discursivo crítico, da reflexão subjetiva e, nesse sentido, visa alcançar aquilo que a arte aspira – a verdade – mas que não pode dizer sem a filosofia. Se o gosto é imediato, sensível, sabor, ele está distante desse horizonte, da crítica, do conhecimento e da verdade.