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Segundo o Dicionário de Estética, o termo <<gosto>> é definido como “tendência para julgar corretamente os objectos do sentimento” (CARCHIA; D’ANGELO, 2009, p. 162). Nesta acepção deve-se ter em mente que o gosto é tanto um sentimento (o prazer sentido diante de determinados objetos como o belo) como também é um juízo, uma avaliação. Do ponto de vista que nos interessa, o da arte, o juízo estético é tanto subjetivo – o sentimento e o juízo são individuais – quanto aspiram à universalidade – respondem à expectativa e exigência de um acordo com relação ao julgamento, assim como à comunicabilidade do prazer sentido subjetivamente.

Para Gadamer (1997, v. 1), a origem do gosto é mais moral do que estética. De fato, há uma tradição anterior à do gosto, a qual ele sucede: é a do termo <<sensus communis>>. Nessa perspectiva, há tanto uma dimensão moral quanto gnoseológica. Segundo sua visão, sensus communis significa “não somente aquela capacidade universal que existe em todos os homens, mas, ao mesmo tempo, o senso que institui comunidade” (GADAMER, v. 1, 1997, p. 63). Sua força reside na crítica à universalidade abstrata, de caráter exterior e impositiva. O sensus communis é esperança, possibilidade e efetivação de uma universalidade concreta, ligada à esfera da vivência, dos sentimentos, preferências, hábitos, costumes e valores. Está ligado à capacidade de escolher e decidir sobre algo específico e que tende ao consenso, à universalidade. Essa diretriz Gadamer associa, entre outros, a Vico. Através dessa universalidade concreta – e aí reside sua dimensão moral historicamente relevante – chega-se, ao mesmo tempo, à constituição da comunidade, da solidariedade coletiva, não mais através de uma metafísica, mas através da dimensão sensível. Ao mesmo tempo, implica em uma forma de saber prático. Não é algo que pode vir a ser demonstrado, transmitido através de uma lógica ou de um programa de instrução – é uma recusa pregnante a qualquer semelhança à autoridade externa. O sensus communis visa à possibilidade de que os sujeitos, através do que eles próprios são, ainda que sem compreenderem formal e discursivamente o que ocorre, sejam capazes de estabelecerem julgamentos subjetivos, mas que aspiram à universalidade, através da esfera sensível. É um saber prático – inconsciente mas seguro. Para Franzini (1999, p. 105), mais tarde, “a questão do taste (em Inglaterra) é sinal de uma <<crise da cultura>>”, exatamente dessa recusa às questões metafísicas, reconduzindo a reflexão para uma esfera mais empírica e prática. A dimensão gnoseológica reside, exatamente, na capacidade de estabelecer julgamentos – de conduzir um caso particular ao universal, ainda que não exista

nenhuma regra pré-determinada, nenhum preceito formal, a ser aplicado. Essa dimensão abre- se a um conceito importante, o <<juízo>>.

Percebe-se, como o próprio Gadamer (1997, v. 1, p. 77) pontua, o quanto a noção de sensus communis é próxima do <<juízo>>, como a capacidade de “subsumir o particular no universal, de reconhecer algo como o caso de uma regra” ainda que não possa ser demonstrada do ponto de vista lógico. Se não pode ser demonstrado segundo esse ponto de vista, não pode ser transmitido do ponto de vista racional. O juízo, enquanto capacidade e procedimento, é importante para a noção de sensus communis, assim como para o gosto <<que é o juízo estético>>. Gadamer (1997, v. 1, p. 78) lembra-nos que o “sensus communis não é, em primeira linha, uma capacidade formal, uma faculdade espiritual que se tem de exercitar, mas já abrange sempre a síntese do julgar e dos padrões de juízo”.

Deve-se observar algo importante. Por um lado, o sensus communis e o juízo, naquilo que estão ligados ao juízo estético, são formas de se opor à tradição. O juízo estético aparece como algo para o qual não existe uma regra delimitada e que deve ser aplicada. Não pode ser deduzida de nenhum esquema. Ela está pronta e deve ser confirmada caso a caso, sem jamais conseguir chegar a uma exaustão de seus pressupostos operativos. Ela funciona como um saber prático inconsciente. Ora, por um lado, ela é uma forma de oposição à razão e ao racionalismo. Por outro, embora defenda a dimensão da experiência individual, ela também se afasta do empirismo. E é nisso que o gosto <<juízo estético>> acumula ainda mais força: aparece como uma terceira possibilidade. Está entre as regras da razão e a contingência e incerteza da esfera sensível da experiência subjetiva. Para alguns, o gosto é, ele próprio uma espécie de síntese destes dois momentos, ou, ao menos enquanto um terceiro caminho, uma alternativa autônoma para a cisão cartesiana entre sensível e racional.

Entretanto, Gadamer (1997, v. 1) lembra que, em Kant, o sensus communis perde sua vinculatoriedade com a moral. Nesse caso, a moral está ligada à razão pura prática, não à esfera do sentimento, como se poderia derivar dessa perspectiva. Por outro lado, a ideia de um senso comum reaparece, exatamente, na esfera do juízo estético. Para Kant, o gosto é faculdade de julgar, imediatamente, o belo – assim como da possibilidade de sentir prazer, o qual está atrelado à representação do objeto belo.

Por um lado, Kant (2010) retira a conexão existente entre sensus communis e moralidade. Por outro, afasta a dimensão cognitiva da esfera da arte. Não há mais relação entre gosto e conhecimento. Ele é sentimento, ainda que universalizável, é uma universalidade diferente do saber.

Além da dimensão cognitiva e moral, o gosto possui uma outra acepção que nem sempre aparece: que é a questão do sabor. Adorno associa o gosto, na maior parte das vezes, a este sentido. Gosto é sempre o culinário. Satisfação de desejos. Tem a ver com a ordem da necessidade, do desejo, do agradável. Como mostrarei, é esta acepção que, dentre outros argumentos, o faz criticar a estética do gosto.

Antecipo-me, apenas, em apontar algo: de fato, Kant expulsa o conhecimento da relação entre gosto e arte, todavia, essa relação existia e existe em outros pensadores e pertenceu à uma época. Como ignorar o fato de que o gosto seja, também, uma crítica à abstração? Como ignorar sua conexão com o conhecimento? Se Adorno era crítico da abstração, da razão instrumental, do peso da totalidade sobre o particular (das estruturas de poder sobre o sujeito), por qual razão não salvar determinados aspectos do gosto? Se o gosto era uma via que lidava tanto com o sensível quanto com o racional, qual a razão de negar sua potencialidade em criticar a razão abstrata e em relacionar-se com o mundo sensível?

Enfim, a problematização do gosto é inevitável, e mostrarei, de outras formas a mais, como é possível fazê-la. Entretanto, antes de avançarmos em direção a essa constatação, é preciso atravessar dois breves momentos. Primeiro, a origem da estética. Segundo, a antinomia kantiana do gosto. Só então apresentar sua crítica do gosto, que, em parte, é uma recusa à sua posição dentro da indústria cultural, e, noutra parte, é um afastamento da estética do gosto, a qual é, em grande medida, a estética em sua origem, ainda no século XVIII. Além disso, a própria origem da estética, sua constituição e sua consolidação, envolve alguns paradoxos quando se pensa a crítica de Adorno ao esclarecimento e à razão instrumental.