• Nenhum resultado encontrado

2.2 Sobre a categoria estética de estilo: entre a diferença e a padronização

2.2.3 Breve Ilustração

Não é meu objetivo realizar uma análise aprofundada, a nível literário ou histórico, por assim dizer, de como a categoria de estilo se abre, por um lado, à dimensão autêntica da arte e, por outro, à dimensão mecânica da produção mercadológica da cultura.

Todavia, contradizendo inclusive as exigências da crítica de Adorno, de modo breve espero apontar, ainda que de modo incompleto, a possibilidade de se refletir sobre como este processo pode ocorrer e em que medida ele é uma dinâmica social e histórica.

Todos que conhecem Charles Baudelaire, pensador e poeta francês do século XIX, provavelmente, conhecem-no como o autor de Les Fleurs du Mal (1857), e não sem razão. De fato esta é uma obra assombrosa para a cultura moderna, por sob vários pontos, e não é sem razão que, por exemplo, Walter Benjamin tenha lhe dedicado inúmeras análises, incluindo o livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Por outro lado, o que me interessa é mostrar um projeto histórico: a prosa poética.

“Quem de nós não sonhou, em dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima, bastante maleável e variada para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações da fantasia, aos sobressaltos da consciência?”, escreve Baudelaire em uma carta a seu amigo Arsène Houssaye. O livro, póstumo, é intitulado

Pequenos Poemas em Prosa (1869) e exprime, através deste novo conceito, inúmeras facetas

da vida e literatura modernas.

Aparentemente, a prosa poética originou-se na própria França, com Baudelaire, no século XIX. Além dele, Arthur Rimbaud e Sthephane Mallarmé, poetas franceses contemporâneos a Baudelaire, foram fundamentais para a, por assim dizer, elaboração desse projeto.

Friedrich (1991), em sua obra A Estrutura da Lírica Moderna, considera Rimbaud e Mallarmé, naquilo que eles estão ligados a Baudelaire, como os fundadores da lírica moderna. Do seu ponto de vista, esta seria marcada pela obscuridade e pelo fechamento perante o leitor. Isto seria consequência da emancipação da linguagem em relação a sua dimensão comunicativa. Desse modo, ao opor-se à comunicação, ampliava-se a distância entre obra e leitor. Inúmeras técnicas estilísticas, como a ênfase na metáfora e na fantasia, foram desenvolvidas.

Entretanto, onde se pretende chegar? Ora, a prosa poética, naquilo que ela se aproxima tanto de um gênero ou de um estilo, já tem alguma história própria, embora aqui não se pretenda analisá-la de modo aprofundado. De Pequenos Poemas em Prosa, de Charles

Baudelaire; de Uma Estadia no Inferno (1873), de Rimbaud, assim como, também de sua autoria, Iluminações (1872-1873); até, espacial e temporalmente distante, Lavoura Arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978), ambos do escritor brasileiro Raduan Nassar, não há dúvida de que se possa perceber a dialética existente entre aquele conceito expresso por Baudelaire, além de outros que vieram a contribuir para a história da prosa poética, e as obras destes outros dois líricos, Rimbaud e Nassar.

É também, fundamental, perceber como, nesta história, inúmeros problemas estéticos são tratados, alguns resolvidos e outros novos aparecem. O Pequenos Poemas em Prosa tem, não se pode negar, menos energia que a prosa poética de Rimbaud (1998, p. 133), que seu terrorismo contra a beleza e o mundo da arte, em passagens como <<Um dia, sentei a Beleza no meu colo. – Achei-a amarga. – E injuriei-a.>>, tão marcantes pela intensidade e pelo uso da metáfora (que o tornou conhecido como um precursor do surrealismo, exatamente pela fantasia desenfreada, pelas associações distantes, pelo engrandecimento da imaginação frente ao mundo real, lógico, mecânico e inorgânico), pelo brilho e, pelo não menos marcante, horror ao mundo social <<Tenho horror a todos os empregos. Operários e patrões, todos rústicos, ignóbeis. A mão que escreve vale a mão que lavra. – Que século de mãos! – Jamais darei as minhas>> (RIMBAUD, 1998, p. 135).

Em Rimbaud, a tensão entre a alienação e a imersão no mundo moderno explodem em suas frases, curtas e impactantes, assim como ele só chegou ao conhecimento do que é este mundo moderno, de modo semelhante a Baudelaire, exatamente através da experiência histórica, do mergulho no destino de sua época. Afastava-se do mundo moderno, marcado pela ciência e pelo racionalismo, atribuindo grande valor à fantasia criativa. Friedrich (1991, p. 81) denominou de fantasia ditatorial esta força infreável, concebida pelo próprio Rimbaud, afirmando que ela “não procede observando e descrevendo, mas sim com uma liberdade ilimitadamente criativa”. Sua linguagem buscava destruir as linhas da lógica e reestabelecer uma nova possibilidade de percepção e de experiência do mundo. A dimensão obscura, enigmática e mágica da linguagem se tornara mais prestigiosa do que a dimensão comunicativa, à dimensão humana do sentimento e da lírica emotiva.

Assim, é possível perceber em Rimbaud como a prosa poética é trabalhada de modo que se aproxima mais do conceito de Baudelaire, mais do que este próprio havia conseguido. Por outro lado, não se pode negligenciar como em Lavoura Arcaica, Raduan Nassar, opondo- se à tendência da época, como a grande tendência à poesia concreta, produziu uma obra lírica na qual a metáfora não é pura e simplesmente utilizada. A obra inteira é uma tensão entre natureza e história; dialética sobre como a história, o mundo humano, pode vir à tona, à

consciência, através da natureza, mas não como coisa, mas como linguagem, ao mesmo tempo em que esta só consegue se exprimir através dos objetos pertencentes à natureza. Os elementos da rima e do ritmo, que Baudelaire negava, reaparecem de um modo que, todavia, não se opõem ao conceito visado pela prosa poética e pela lírica moderna.

Assim começa sua obra << Olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, onde nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero>> (NASSAR, 1989, p. 7). Ora, como ignorar os diversos capítulos sem parágrafos, a sensualidade da linguagem, sua capacidade de trazer para a linguagem o mundo natural e, exatamente, através do uso desenfreado de metáforas, do desenvolvimento de uma sonoridade que lembra o encantamento mágico da prosa poética de Rimbaud, e todas as inúmeras técnicas utilizadas para que se chegasse à factura desta obra, às passagens que, para manter a intensidade e continuidade, retornam como um descontrole, seguem a um novo rumo, como se tudo fosse movido por um impulso infreável e que excede a vontade dos sujeitos, como negar que, mesmo contradizendo determinados elementos do programa de Baudelaire, mesmo entrando em contradição com alguns de seus preceitos, como negar que não estejam eles, Baudelaire, Rimbaud e Nassar ligados a um estilo, a um conceito, ao mesmo tempo em que suas obras mantenham uma distância que lhes garante a autonomia e a não-identidade?

É a isto que se deve manter atento. Boa parte da análise empreendida neste capítulo visa a mostrar como, por um lado, inúmeras categorias artísticas e estéticas (da esfera propriamente artística assim como da esfera da filosofia da arte) são problemáticas e como elas envolvem inúmeras contradições e a arte é um esforço de respondê-las, silenciosamente, de realizar ou não, segundo o visado, determinadas reconciliações; e, por outro, mostrar como, na esfera da cultura de massas, não se fala somente sobre massificação, ideologia, mas, algo mais sutil, a transição imposta pela razão dominadora da esfera espiritual, de inúmeros aspectos esfera artística, para a esfera econômica e para a cultura, a cultura como aquilo que, também, em boa medida, é, ela própria, dialética entre o particular e o universal, entre a liberdade e a convenção. É por isso que a <forma>, a esfera da produção da arte, é importante para a análise do sociólogo e do filósofo, pois nela inúmeros problemas estéticos estão ligados às contradições históricas e a arte, de algum modo, aspira à reconciliação, pois sem isto ela não é bem sucedida.

Se, por um lado, vê-se que a prosa poética tem uma própria história e como, neste sentido, inúmeros problemas são tratados a nível técnico, por outro, pode-se apontar como, na esfera da cultura de massas, inúmeras soluções são petrificadas, reificadas e reproduzidas,

forçosamente, desembocam no kitsch, na ênfase no efeito estético como estímulo consumível pelo público, na sua conexão com a dimensão sensual, como inúmeras músicas ou literaturas que se alimentam umas das outras sem que, em nenhum momento, a dimensão artística seja trabalhada, ou seja, sua história interna. A comunicabilidade dos bens culturais é plena, enquanto que, entre as obras de arte, o que existe é uma oposição, pois, ainda que exista uma conexão entre elas, cada qual buscará afirmar-se como modelo único e absoluto, o que implica na oposição mortal com todas as outras (ADORNO, 1970).