• Nenhum resultado encontrado

2.1 Debate em torno da noção Aura: aura como totalidade e aura como constelação

2.1.5 Aura, Atmosfera e “O Mais” da obra de arte

Em algumas passagens, referi-me à aura, na perspectiva benjaminiana, como totalidade (totalidade dos momentos de: autenticidade, unicidade, autoridade). Por outro lado,

gostaria de pensar a aura, em Adorno, como constelação (embora reconheça que o método constelatório de Adorno seja herdado das reflexões de Benjamin). Ora, é possível chegar à definição de aura através daqueles momentos. Não é impossível argumentar (e é o que tenho me esforçado em fazer) que a aura seja o produto daquilo, uma totalidade maior daquelas partes. Por outro lado, em Adorno, me esforço para pensar a aura a partir de sua constelação, como um conjunto de forças e categorias, sem jamais alcançar uma completa totalidade autossuficiente.

Entretanto, a pretensão é dupla: por um lado, mostrar como a indústria cultural realiza a captura da aura, contradizendo seu desaparecimento e destruição, através da instrumentalização da atmosfera das obras (lembrando que atmosfera é uma categoria estética); por outro, também apontando indícios da herança da aura ou manutenção da mesma, mostrar como a noção de “O Mais da obra de arte” usada por Adorno, expressa uma conexão entre aura e autonomia estética. De tal modo, se conseguido, apontaremos para diferentes usos da aura, seja na perspectiva da dominação histórica, seja na perspectiva de formas históricas de emancipação.

A noção de atmosfera escapa a qualquer definição categórica. No Dicionário de

Estética, produzido sob a direção de Gianni Carchia e Paolo D'Angelo, inexiste o verbete.

Pode acontecer de aparecer associado a alguma outra categoria. Mas, de todo modo, não aparece como central, como o próprio termo aura e autenticidade aparecem.

Em uma passagem Adorno (1970, p. 305) contorna: “‘atmosfera' significa nas obras de arte a mescla turva do seu efeito e da sua composição enquanto algo que ultrapassa os seus momentos particulares”. Certamente, esta noção de atmosfera é muito próxima da ideia de aura (aura significa sopro) como também da noção de o mais da obra de arte, ou seja, o fato de que as obras de arte apontem para além de si mesmas, algo que, como a noção da atmosfera, ultrapassa a simples facticidade (razão pela qual são refratárias a redução positivista de simples mercadorias). A afinidade entre as três noções, entretanto, abre-se a para diferentes usos.

O argumento aqui defendido é o de que a indústria cultural realiza a captura da aura e como não existe mais aquela totalidade que subsume as categorias (talvez a tradição fosse esta força unificadora) de tal modo que se faça justiça a este nome (aura), poder-se-ia falar na

reprodução mecânica da atmosfera. Ora, a atmosfera, na indústria cultural, não realiza a

diferença que estava atrelada à aura (autenticidade, unicidade, originalidade), mas existe como racionalização, no plano da razão instrumental, daquela proximidade distante. Além disso, a noção de atmosfera é próxima ao que se chama, na filosofia da arte, de

sentimentalismo, no sentido de se conceber um planejamento entre a produção de efeitos estéticos e suas consequências, ou seja, a experiência subjetiva destes mesmos efeitos (ADORNO, 1970). O sentimentalismo manifesta um envolvimento entre obra e público, uma afinidade, um envolvimento que, em certa medida, contradiz aquela a noção moderna de autonomia estética como distância entre obra e público.

De fato, inexiste arte sem efeito, mas a ênfase que a indústria cultural dá a este momento é que a torna diferente. Nela há uma racionalização da fachada que coloca a obra a serviço da dominação. A noção de atmosfera como forma de captura da aura está, também, no fato de que ela é tanto uma mistura do fugidio, do incerto, daquilo que envolve a obra e não se domina, mas também, no plano da indústria cultural, aquilo que reaparece a todo instante e remete a todas as outras experiências. Cada filme se alimenta de todos os demais, cada canção se rejuvenesce na repetição, cada livro parodia o best-seller, e a atmosfera nada mais é do que essa totalidade do sempre-semelhante, como um sopro carregado de identidade que se infunde no público, um sopro fluido e atraente, tão familiar e próximo, e que é passível de ser absorvido – consumido – sem dificuldades. A atmosfera é, também, aquilo pelo qual as obras, na indústria cultural, se tornam mais opacas, confusas entre si, provavelmente pela semelhança que há entre elas. Ela é um dos aspectos metafísicos usurpados pela racionalidade instrumental, afinal, ela é, em alguma medida, um sinal da transcendência – do que não é simplesmente empírico e factível.

Jameson (1985, p. 25) diz algo que nos serve, com relação ao que foi dito, afirmando que, “agora ouvimos não as notas elas mesmas, mas somente sua atmosfera, a qual se torna simbólica para nós: o caráter calmante ou estimulante da música, sua melancolia ou sua doçura” e continua dizendo que “tudo isso é sentido como um sinal para a liberação das reações convencionais apropriadas”. Assim, a ideia de que a atmosfera opera na indústria cultural não é pura abstração e está ligada à regressão da subjetividade.

Diferentemente, a relação entre aura e o mais da obra de arte é positiva, do ponto de vista de Adorno (1970). Com isto, afirma-se que a obra de arte não é apenas objeto material mas também participa na transcendência, no sentido de autonomia e emancipação, daquilo que está para além das exigências históricas, daquilo que escapada à finalidade da sociedade administrada: sua autoreprodução através da repetição. Ora, esse aspecto, por assim dizer, metafísico da obra, não é inteiramente estranho à aura como totalidade daquelas categorias que acaba por aproximá-la da transcendência. Por outro lado, a arte moderna não é ingênua com relação a este “momento aurático”, afirmativo, estando sempre atenta àquilo para o qual ela aponta, àquele “para além de si” que ela promete e afirma, sem que possa cumprir. Desse

modo, estão sempre em tensão a dimensão da transcendência, da autonomia, com o carácter fático, histórico. Friedrich (1991) considerava, na modernidade, um traço comum a existência de uma transcendência vazia, pois, ao mesmo tempo em que a arte apontava para este outro, um mundo inteiramente novo e desconhecido, inteiramente distante e independente do mundo real, ela não podia afirmar nada sobre ele. A secularização havia ocasionado, mesmo na esfera estética, danos ao caráter afirmativo da transcendência. Por outro lado, através da autonomia estética, a própria arte se tornou esfera transcendente, mas uma transcendência esvaziada de conteúdo. Não há mais paraíso.

***

Ora, percebe-se que, por um lado, a arte herda os elementos constituintes da aura e, por outro lado, que apesar da sua distribuição enquanto totalidade de momentos, seus elementos reaparecem, seja na arte autônoma, seja na cultura de massas.

Além disso, também espera-se ter clarificado um dos objetivos deste capítulo: revelar a tensão existente entre indústria cultural e a esfera estética, sobre como a indústria cultural realiza a instrumentalização da esfera estética. Dentre outros aspectos, argumentou-se acerca da captura da aura através da atmosfera, da manipulação da proximidade distante, e também da sua afinidade com o sempre semelhante. Por outro lado, ressaltou-se o caráter positivo de “o mais da obra de arte”, “da distância” (como autonomia, como autoridade, como interdição) e do novo (naquilo que se liga ao original, ao autêntico e ao não-idêntico).