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2 AS PREFERÊNCIAS COMERCIAIS UNILATERAIS NO SISTEMA

2.2 As preferências comerciais unilaterais

2.2.2 A discussão teórica sobre as preferências unilaterais

Vimos que a racionalidade para a outorga das preferências unilaterais consiste em oferecer amplo acesso aos mercados dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, sem reciprocidade, como forma de estimular o aumento das exportações dos países em desenvolvimento e os ganhos com elas obtidos, fomentar a industrialização e a diversificação da pauta exportadora e auxiliar no crescimento econômico dos países beneficiários.

Numa primeira aproximação, poderia se imaginar que a eliminação de barreiras tarifárias nos países desenvolvidos, sem exigência de reciprocidade, constitui um ganho líquido para os beneficiários, já que não teriam que retribuir comercialmente o benefício recebido. Mesmo que as oportunidades geradas não fossem amplamente aproveitadas, devido a limitações dos beneficiários, a cooperação internacional teria criado um incentivo às exportações dos países em desenvolvimento. A idéia da criação de mecanismos de cooperação internacional em matéria comercial torna-se ainda mais atrativa à medida que prevalece a estratégia de “trade, not aid,” substituindo o auxílio financeiro direto pelo comércio, como instrumento auxiliar para o desenvolvimento.

Para os países beneficiados, as preferências unilaterais são uma oportunidade para exportar com tarifas abaixo da tarifa NMF aplicada aos demais membros da OMC. Os exportadores dos países beneficiários têm, assim, sua competitividade ampliada artificialmente com relação aos não-beneficiários e podem receber preços melhores do que os preços internacionais. A magnitude do benefício depende essencialmente da margem de preferência concedida, isto é, da diferença entre a tarifa NMF vigente e a tarifa preferencial cobrada. Da ótica dos outorgantes, os governos têm sua receita tributária, decorrente da tarifa de importação,

reduzida, mas os consumidores podem ganhar com o aumento da concorrência no mercado doméstico.

O aproveitamento do maior acesso a mercados criado pelas preferências depende, entretanto, de vários fatores. Muitos beneficiários não possuem condições de ampliar sua oferta na mesma proporção das oportunidades criadas, caracterizando as chamadas restrições do lado da oferta. Paralelamente, é preciso observar, pelo lado da demanda, o grau de substitutibilidade dos produtos relativamente à variação dos preços entre os fornecedores.

Também devem ser considerados os custos administrativos. Os procedimentos burocráticos de certificação para exportação com preferências e a adequação dos produtores às regras de origem implicam em custos de adaptação aos programas, os quais podem inclusive superar os ganhos oriundos puramente das margens de preferências.

Uma constatação comum nas várias análises do tema é de que, para que as oportunidades geradas num contexto de maior liberalização comercial sejam aproveitadas, devem estar integradas a uma série de políticas domésticas que incluem, desde investimento em infra- estrutura e tecnologia, até políticas setoriais, dependendo das opções dos governos de cada país. Tratando especificamente do caso das preferências unilaterais, Onguglo (1999) conclui que o aproveitamento efetivo das preferências depende de reformas domésticas para aumentar a competitividade e produtividade em setores voltados à exportação.

Tendo em vista que as preferências geram uma alocação de recursos menos eficiente no sentido estritamente econômico, essas constituem um nítido alvo de críticas. Uma crítica comumente feita é de que, ao incentivarem a exportação em países que, numa situação de livre mercado, talvez não fossem competitivos, as preferências podem estimular a produção local a custos muito elevados e até mesmo consolidar a dependência dos beneficiários em relação a determinados produtos (ROBERTS; BUETRE; JOTZO, 2002). O caso do Protocolo das Bananas na União Européia é um exemplo clássico. Além de desviar comércio de países latino-americanos mais competitivos, algumas estimativas apontam para um custo de US$ 13 para os consumidores da União Européia para cada US$ 1 transferido aos países em desenvolvimento que deveriam se beneficiar. A grande parcela é capturada pelos importadores de bananas e atacadistas, o que coloca em dúvida a estratégia de que “trade, not

aid” seja necessariamente a forma mais adequada de auxílio (BORRELL, 1999; STOECKEL; BORRELL, 2001).

Como lembra Onguglo, o sistema de preferências unilaterais tem sido criticado como uma forma de “neocolonialismo que perpetua nos países receptores de preferências a produção e comércio em produtos não compatíveis com suas vantagens comparativas no longo prazo” (ONGUGLO, 1999, p. 119, tradução nossa).

Outro risco apontado pelo autor é o de que as preferências criem economias duais, em que a produção em zonas de processamento de exportações se dê sem vínculos com a economia local, levando à formação de enclaves econômicos.

Ao irmos além da análise dos efeitos das preferências para cada um dos beneficiários para inseri-las no contexto internacional, o problema da discriminação e desvio de comércio torna- se evidente. Se por um lado, as preferências podem ajudar a criar comércio com os beneficiários, por outro podem gerar desvio de comércio para os países não-beneficiários.

A discriminação faz com que muitos dos países que concorrem com os beneficiários, incluindo países em desenvolvimento que igualmente necessitam de maior acesso aos mercados desenvolvidos, sofram com o desvio de comércio. Contraditoriamente, o mecanismo de preferências unilaterais acaba por punir os países em desenvolvimento que logram atingir um determinado nível de competitividade internacional em alguns setores, ao sustentarem um sistema que, em essência, permite aos países desenvolvidos intervir no mercado para regular as possibilidades e formas de inserção dos vários países em desenvolvimento.

Além dos aspectos estritamente econômicos, as preferências podem ser analisadas em sua relação com a economia política da liberalização internacional do comércio. Um dos pontos criticados é que o mecanismo de preferências unilaterais pode levar à postergação dos ajustes domésticos para a integração no comércio internacional. É preciso lembrar que as preferências unilaterais foram concebidas como mecanismo temporário para que os países em desenvolvimento pudessem se ajustar gradualmente ao sistema multilateral de comércio, que tem como um de seus princípios o livre comércio. Esse princípio é reforçado na Cláusula de Habilitação, cujo parágrafo 3(b) determina que “[...] as preferências não devem constituir um

impedimento à redução ou eliminação de tarifas e outras restrições ao comércio com base na nação-mais-favorecida”.

Com base nos dados de 154 países para o período entre 1976 e 2000, Özden e Reinhardt (2003) realizaram o primeiro estudo empírico de grande cobertura temporal e de países, para observar os efeitos do SGP dos Estados Unidos na orientação da política comercial dos beneficiários. Os autores concluíram que os países em desenvolvimento que têm os benefícios do SGP norte-americano reduzidos tendem a adotar políticas comerciais mais liberais do que aqueles que permanecem com as preferências. Para Özden e Reinhardt, a postergação de ajustes ao livre comércio poderia ter um efeito negativo na integração dos países ao sistema internacional de comércio.

De fato, é possível imaginar que as preferências unilaterais levariam ao fortalecimento de coalizões domésticas protecionistas e ao enfraquecimento das coalizões que, por serem mais competitivas internacionalmente, pressionariam por maior abertura comercial no próprio país beneficiário. Daí decorreria a ausência de estímulos internos para que os governos dos países beneficiários promovessem a liberalização comercial e os ajustes necessários, de forma a integrar-se às regras do sistema multilateral de comércio.

As implicações da postergação do ajuste aparecem claramente nas negociações comerciais quando lidamos com o problema da erosão de preferências ocasionada pela maior liberalização internacional e os custos dos ajustes nos países delas dependentes. A discussão sobre a necessidade de mecanismos compensatórios que ajudem os países que sofrerão perda de preferências a ajustar-se ao novo cenário é um dos temas mais controversos das atuais negociações da Rodada Doha.

Outro aspecto relevante do ponto de vista da economia política refere-se ao problema da reciprocidade nos acordos comerciais. Como resume Bhagwati (1991), as principais vantagens da regra de reciprocidade incorporada ao sistema GATT/OMC consistem em:

a) quando duas partes liberalizam, há um duplo ganho (maior eficiência no próprio mercado e acesso ao mercado da outra parte);

b) eventuais considerações de ordem macroeconômica, como desequilíbrios no balanço de pagamentos, são suavizadas com a reciprocidade;

c) a reciprocidade sugere a idéia de maior justiça, fazendo com que os ajustes à liberalização comercial sejam politicamente mais aceitáveis pelos grupos domésticos prejudicados;

d) concessões estrangeiras que beneficiem as exportações de um determinado país mobilizam novos interesses que contrabalançam os interesses dos que se opõem à liberalização.

As justificativas apresentadas acima são comumente mencionadas por autores que vêem na não-reciprocidade prejuízos econômicos e políticos para a estabilidade do sistema comercial multilateral (BAGWELL; STAIGER, 1999).

Juntamente com o princípio da reciprocidade, encontra-se na base do sistema multilateral de comércio o princípio do tratamento NMF. Já em 1860, o histórico Tratado Comercial Cobden- Chevalier, assinado entre Grã-Bretanha e França, continha cláusula prevendo que futuras concessões tarifárias feitas por uma das partes a terceiros países deveriam ser estendidas à outra parte. Após 1860, os vários acordos comerciais assinados entre países europeus já incorporavam a cláusula de nação-mais-favorecida, pela qual as concessões comerciais ofertadas a terceiros teriam que ser estendidas às partes dos acordos (LAZER, 1999).

Na prática, entretanto, verifica-se uma utilização cada vez mais freqüente de exceções ao princípio do tratamento NMF, o que se dá pela proliferação dos acordos preferenciais de comércio, tanto recíprocos quanto unilaterais. Segundo dados da OMC, entre 1948 e 1994, tinham sido feitas 124 notificações de acordos preferenciais envolvendo o comércio de bens. Em 1º de maio de 2004, estimava-se que um total de 208 acordos preferenciais estivesse em vigor, evidenciando-se um crescimento acelerado após 199414.

A discriminação é, em si, conflituosa com a idéia de multilateralismo. As negociações bilaterais ou regionais entre países desenvolvidos e em desenvolvimento tendem a ser marcadas pelo claro desequilíbrio de poder em favor dos primeiros. Os acordos de livre comércio celebrados entre Estados Unidos e países latino-americanos têm sido moldados na matriz do Acordo de Livre Comércio da América do Norte - NAFTA, que se destacou pela

14 Página em Internet da OMC. Planilha de notificações de “RTAs,” de acordo com o GATT/OMC. Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/region_e/summary_e.xls . Acesso em 04.10.2004.

capacidade dos Estados Unidos de incluir vários temas e regras além do comércio e além do acordado na OMC.

A criação de categorias distintas entre os países em desenvolvimento tende a dificultar a cooperação entre estes, ao mesmo tempo em que torna os beneficiários mais suscetíveis às pressões dos outorgantes. No caso das negociações na OMC, baseadas no consenso entre os 148 Estados Membros, verifica-se uma crescente dificuldade de se construir posicionamentos comuns.

Brasil e Argentina são exemplos de países em desenvolvimento prejudicados pelos sistemas preferenciais. Com uma elevada competitividade no setor agrícola, historicamente o mais protegido nos países desenvolvidos, esses países figuram como demandantes de maior acesso aos mercados agrícolas desenvolvidos. Entretanto, enfrentam a resistência tanto de países desenvolvidos, que mantêm políticas distorcivas de apoio ao setor agrícola, quanto de países em desenvolvimento, em particular de países menos desenvolvidos, que sofreriam perdas com a eliminação das preferências e maior participação de um país mais competitivo nos mercados para os quais exportam.

Quanto ao desenho dos programas de preferências unilaterais, é comum que os outorgantes utilizem mecanismos para evitar a concorrência das importações. Entre esses, Topp (2001) menciona:

a) exclusão de produtos sensíveis da lista de produtos elegíveis; b) diminuição da preferência para certos produtos;

c) uso de mecanismos de controle quantitativo para limitar o acesso.

Entre as restrições do SGP norte-americano, pode-se citar:

a) o sistema de graduação, pelo qual os países que superam um determinado nível de renda ou de competitividade em determinados produtos, são “graduados” e perdem o benefício15;

b) o “limite de necessidade competitiva,” que permite aos Estados Unidos suspender temporariamente a entrada de certos produtos provenientes de países específicos, caso as exportações correspondentes atinjam um limite em valor ou representem uma parcela de mercado pré-definida pelos Estados Unidos. Entre as

condicionalidades do programa, destaca-se o requisito de observação de direitos trabalhistas internacionalmente aceitos. Desde sua introdução em 1984 até 2000, esse requisito gerou a suspensão do SGP - ainda que temporária - para 12 países, incluindo Chile e Paraguai (ELLIOTT, 2000).

Quanto à vinculação de fatores não-comerciais na concessão das preferências, um exemplo foi a entrega pelo Brasil, em setembro de 2004, de um relatório ao representante adjunto do United States Trade Representative - USTR, Peter Allgeier, para demonstrar os avanços do país na proteção à propriedade intelectual, um dos requisitos utilizados para avaliar se o SGP deveria ser renovado para o país (Decisão dos EUA sobre SGP fica para novembro, 2004).