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3 DIPLOMACIA E COMÉRCIO NAS RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-

3.2 A agenda pós-Guerra Fria

3.2.1 Integração comercial

A proposta da integração comercial teve nos países latino-americanos seus maiores defensores. Enquanto a atenção de Washington tendia para questões como imigração e tráfico de drogas, os países latino-americanos fizeram da demanda por maior cooperação em matéria econômica o ponto central de sua aproximação com os Estados Unidos. O maior acesso e a integração, em face ao mercado norte-americano, consistiam na saída que muitos dos países

da região buscavam para tentar equilibrar suas economias, após anos de crise e tentativas de ajustes econômicos.

Em junho de 1990, as esperanças dos países latino-americanos ganharam novo vigor com o lançamento da “Iniciativa para as Américas”, por George Bush. Baseada retoricamente em três pilares – comércio, investimento e alívio condicionado da dívida externa –, a iniciativa foi aos poucos se transformando em proposta concreta. Em particular no pilar comércio, previa- se a celebração de acordos de livre comércio com países ou blocos de países na região, sendo México eleito como o primeiro parceiro. O programa foi recebido com grande entusiasmo na América Latina, comparável ao observado quando do lançamento da Aliança para o Progresso, mas, como essa, acabou falhando na implementação. Segundo Wiarda (1995), entre as principais limitações ao sucesso da Iniciativa estava a ausência de forças no alto escalão da burocracia de Washington engajadas com a sua promoção. Em consonância com a posição de relevância média da América Latina no ranking das regiões prioritárias para os Estados Unidos, a política para a região continuava a ser delegada ao escalão médio da burocracia, agravando o problema da fragmentação de formulação da política externa entre diversas agências.

Ao final da administração Bush, o avanço concreto na agenda comercial resumia-se ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte - NAFTA, assinado em dezembro de 1992, pouco antes do fim do mandato de Bush. Coube à administração de Bill Clinton, iniciada em 1993, a tarefa de obter a aprovação do NAFTA no Congresso.

Quanto a uma estratégia para o hemisfério, ainda não havia definição clara do que deveria ser feito. De acordo com a visão que passaria a predominar na administração Clinton, os Estados Unidos deveriam se eximir de grandes ações, exceto em casos onde a atuação fosse claramente necessária, e soluções multilaterais deveriam ser privilegiadas para se evitar concentrar a responsabilidade sobre o país.

A história da convocação da Cúpula das Américas consiste num bom indicativo de que oportunidade e liderança política, mais do que uma estratégia pré-definida, definem a possibilidade de ascensão de temas na política norte-americana para a América Latina. É conhecida a história do vice-presidente Al Gore, que, ao se preparar para sua visita ao México

em dezembro de 1993, sentiu falta de um elemento que criasse consistência em seu discurso.26 Ao discutir com os assessores qual poderia ser o deliverable, chegaram à idéia do anúncio de uma Cúpula das Américas, ainda sem uma agenda precisa do que esta deveria tratar.

A Declaração resultante da Primeira Cúpula das Américas, realizada em Miami, em dezembro de 1994, reflete a mescla de boa vontade com a ausência de uma estratégia clara. Enquanto os Estados Unidos priorizavam temas como direitos humanos, democracia e desenvolvimento sustentável, os países latino-americanos insistiam na necessidade de se negociar um plano concreto em comércio. O resultado dessa aglomeração temática transparece no texto da Declaração de Miami, que se inicia com o compromisso dos 34 Estados participantes com um “Pacto para o Desenvolvimento e a Prosperidade: Democracia, Livre Comércio e Desenvolvimento Sustentável nas Américas:”

Os Chefes de Estado e de Governo eleitos das Américas assumem o compromisso de fazer avançar a prosperidade, os valores e as instituições democráticas e a segurança do nosso Hemisfério. Pela primeira vez na História, as Américas são uma comunidade de sociedades democráticas. Embora enfrentem diferentes desafios de desenvolvimento, as Américas estão unidas na busca da prosperidade por meio de mercados abertos, da integração hemisférica e do desenvolvimento sustentável. (Declaração de Princípios, Primeira Reunião da Cúpula das Américas, 1994, grifo nosso)27.

É nesse conjunto amplo que se inclui a idéia de formação de uma Área de Livre Comércio das Américas - ALCA, cujas negociações deveriam ser concluídas até 2005. A idéia de integração comercial já nasce com certa fragilidade, derivada principalmente da pouca atratividade que exercia do ponto de vista doméstico nos Estados Unidos.

A dificuldade de avançar no tema de integração comercial derivava de acontecimentos que tinham ampliado a resistência do público norte-americano com relação a uma maior aproximação com a América Latina. Três dias após a entrada em vigor do NAFTA, em janeiro de 1994, eclode em Chiapas um levante liderado pelo movimento guerrilheiro Exército Zapatista de Libertação Nacional - EZLN, denunciando os efeitos negativos do acordo sobre um dos estados mais pobres do México. O impacto de Chiapas foi tão amplo que

26 Como lembra Franko (2000, p. 36), Al Gore teria dito aos seus assessores “there is no ‘there’ there,” referindo- se à ausência de um foco de política em seu discurso.

alguns analistas chegaram a mencionar que o NAFTA não passaria pelo Congresso norte- americano se o levante tivesse ocorrido antes da ratificação.

Após o caso de Chiapas, a agenda comercial sofre um novo golpe com a negação da renovação da autorização fast track para Clinton, em 1994 e 1997. Pela primeira vez desde a aprovação da autorização pela Trade Act de 1974, o Legislativo negava-se a delegar a autorização ao Executivo para negociar acordos comerciais.

O Chile foi um dos países que teve frustradas suas expectativas de celebrar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Apesar da manifestação dos Estados Unidos, desde a Cúpula das Américas em 1994, de que o Chile seria o próximo país com o qual negociariam um acordo de livre comércio, quase uma década se passou para que o país conseguisse chegar a um acordo.

Foi somente com a aprovação da autorização fast track, com George W. Bush, rebatizada de trade promotion authority28, que a integração comercial hemisférica ganhou novo impulso nos Estados Unidos. No entanto, ao contrário da visão de cooperação hemisférica alinhavada na Primeira Cúpula das Américas, a preferência pelo unilateralismo na administração George W. Bush afetou também o formato das negociações para a formação da ALCA.

Desde 2002, os Estados Unidos firmaram acordos bilaterais de comércio com o Chile (em 2003), Cingapura (em 2003), América Central e República Dominicana – CAFTA (em 2004), Austrália (em 2004), Marrocos (em 2004), Barein (em 2004), havendo negociações em andamento com os países andinos (Colômbia, Equador e Peru), além de Panamá, Tailândia e União Aduaneira do Sul da África. Dado o baixo volume de comércio envolvido na maioria destes acordos, Schott (2004) identifica a política externa como um dos critérios mais relevantes que influenciam e se sobrepõem no processo de seleção dos países com os quais serão assinados tais acordos. Nesse caso, a escolha do país estaria baseada em três testes:

a) o país coopera com os Estados Unidos em temas de política externa?;

b) o acordo de livre comércio contribui para o desenvolvimento econômico do país em questão e, dessa forma, estimula o processo democrático e o Estado de Direito?;

28 Comentava-se em Washington que a mudança de nomenclatura visava diminuir a aversão ao tema, já que a expressão fast gerava grande sensibilidade no Congresso.

c) as negociações contribuirão para um equilíbrio geográfico de iniciativas por continente?

Sobre o primeiro teste, Schott (2004, p. 370) resume bem o seu intuito, definindo-o como “simply manifestation of the carrot-and-stick approach to diplomacy that dates back to the days of Thucydides”, e exemplifica com a escolha da Austrália, “premiada” pelo seu apoio aos Estados Unidos na guerra contra o Iraque, e pela negação de negociações com a Nova Zelândia, que se opôs aos Estados Unidos.

Nessa mesma linha, Rosen (2004) lembra que, apesar dos acordos de livre comércio com Israel e Jordânia serem irrelevantes do ponto de vista do volume de comércio envolvido, tais acordos estabeleceram precedentes importantes na política comercial dos Estados Unidos, como exemplos da utilização da política comercial para atingir objetivos de política externa.

A experiência com a temática da integração comercial acumulada a partir da década de 90 novamente confirma a dificuldade de transposição de discurso oficial para a prática. Essa dificuldade parece estar relacionada à tradicional ambigüidade que marca historicamente as relações dos Estados Unidos com a América Latina, onde o primeiro busca manter sua influência sobre a região sem que seja necessário aprender novas formas de cooperação.

O caso da Iniciativa para as Américas reflete um grande pragmatismo, em que a opção por trade, not aid deveria servir para alimentar as relações intra-hemisféricas e criar a influência suave que possibilitaria a cooperação em temas transnacionais como narcotráfico e terrorismo. Ao mesmo tempo, a substituição da agenda política da Guerra Fria pela agenda econômica oferecia uma fórmula aceitável para o público norte-americano, cada vez mais avesso aos programas de auxílio financeiro direto (FRANKO, 2000).

A dinâmica da integração comercial expõe, ainda, a necessidade de liderança norte-americana para que a cooperação possa se concretizar. Em sua ausência, reproduz-se a frustração observada em diversos momentos da história, nos quais a busca de aproximação econômica por parte da América Latina não encontra um canal para ações conjuntas com os Estados Unidos. Tais momentos alternam-se aos dos grandes discursos e projetos de integração hemisférica, que, justamente por estarem desconexos de uma base mais profunda de compreensão política e social, também não logram avanços.