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3 DIPLOMACIA E COMÉRCIO NAS RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-

3.2 A agenda pós-Guerra Fria

3.2.2 Guerra contra as drogas

A preocupação com o aumento do consumo de drogas nos Estados Unidos não é recente. Já no período pós-Segunda Guerra Mundial, o aumento no consumo de drogas, em particular a heroína e a maconha, trouxe o tema para o rol de preocupações de políticos e burocratas nos Estados Unidos. Em especial a partir dos anos 80, observa-se uma mudança no padrão de consumo, com maior demanda por cocaína, seguida, na década de 90, de uma retomada da heroína. Embora o número de usuários de drogas tenha aparentemente declinado entre a década de 80 e o início da década de 90, o número de viciados permaneceu relativamente estável (SMITH, 2000).

Para combater o problema, a estratégia norte-americana tem tradicionalmente enfatizado o combate à oferta, associando o problema das drogas a uma questão de segurança nacional e ligando-o a ameaças estrangeiras. Assim, durante a Guerra Fria, os cartéis asiáticos de drogas foram vinculados ao comunismo, e, na América Latina, o tráfico foi associado aos grupos guerrilheiros.

Na primeira administração Reagan, uma tentativa de tratar do combate às drogas pelo lado da demanda sofreu tantos entraves políticos que os assessores em política doméstica decidiram manter o foco no lado da oferta, imaginando que o custo político seria menor. Entretanto, como lembra Wiarda (1995), somente no momento de implementação é que a administração Reagan percebeu a dimensão das dificuldades envolvidas numa campanha internacional de combate ao suprimento de drogas. Além disso, conflitos inter-burocráticos nos Estados Unidos dificultaram a definição de uma política coordenada, já que mais de quarenta agências estão de alguma forma envolvidas na formulação de políticas de combate ao narcotráfico.

No início da década de 90, as pesquisas de opinião identificaram o problema das drogas como a preocupação número um de política externa, por parte do público norte-americano. A pressão doméstica, somada à busca de um norte para a política externa no pós-Guerra Fria, tornou a idéia de combate às drogas atrativa para a administração Bush, e, em 1991, foi formalmente anunciada a “guerra contra as drogas”. Bolívia, Colômbia e Peru respondiam por praticamente a totalidade da produção mundial de coca e cocaína, e logo se tornaram alvos da nova guerra declarada pelo governo norte-americano. Segundo estimativas da ONU, da

produção mundial estimada em 345.700 toneladas métricas de coca em 1991, o Peru respondia por 65%, Bolívia por 22% e Colômbia, por 13% (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2004, p. 229). Pela primeira vez, os países andinos entravam na lista de prioridades na política externa norte-americana para a América Latina.

O tom marcadamente militarizado da política anti-drogas não era apenas retórico, mas se refletia no direcionamento dos recursos financeiros oferecidos pelos Estados Unidos. No ano fiscal de 1990, apenas 39% dos gastos alocados pelos Estados Unidos para o combate às drogas na Bolívia foram destinados a projetos de desenvolvimento econômico. Esse percentual foi ainda mais baixo nos casos da Colômbia (4%) e Peru (18%), enquanto a grande parcela do orçamento destinava-se ao apoio policial e militar (FRANKO, 2000). A opção pela militarização, feita já na era Reagan, colocava os Estados Unidos em uma posição extremamente delicada. Além do caráter intervencionista dessa política, o apoio aos militares e o envio de agentes norte-americanos para monitorar operações no território dos países andinos aumentava a instabilidade social e política nesses países.

Durante a Cúpula Andina sobre Drogas realizada em Cartagena em fevereiro de 1990, a divergência de concepções sobre o problema das drogas ficou evidente. Para os países andinos, que sofriam com a violência social e a instabilidade política gerada pelo tráfico de drogas, era fundamental que se desenvolvesse atividades econômicas alternativas que tornassem possível diminuir o cultivo de coca, no caso da Bolívia e Peru, e que oferecessem alternativas ao comércio de cocaína, no caso da Colômbia. Cientes da importância da coca e da cocaína para as economias nacionais, os líderes políticos dos países andinos resistiam ao enfoque puramente militar sobre a questão.

No entanto, enquanto os governos da Bolívia, Colômbia e Peru enfatizavam a necessidade de ajuda para o desenvolvimento econômico, os Estados Unidos concentravam sua “Estratégia Andina sobre Drogas” no financiamento de ações de interdição, erradicação e apoio aos militares no combate às drogas. Segundo Franko (2000, p. 24), “Latin America would again get what it did not ask for: strategic intervention opposed to economic investment.”

Apesar das evidências de falhas da estratégia centrada no ataque à oferta, a administração Clinton continuou a enfocar a interdição e, de forma mais contundente, a erradicação na fonte, reproduzindo um formato que Walker III (1995) caracterizou como falta de memória

histórica. A centralidade da agenda de combate ao tráfico revelava-se no orçamento para ajuda financeira à América Latina. O montante destinado aos programas de combate às drogas na Colômbia, Bolívia e Peru passou a representar uma parcela crescente do orçamento cada vez mais restrito direcionado à América Latina (PASTOR, 1996).

Se a opção pela erradicação já tornava o tema internacionalmente sensível, já que implicava ações diretas em território estrangeiro, a manutenção da certificação anual dos países tornou ainda mais grave a situação. Por este procedimento, os países incluídos na lista de observação que não alcancem os padrões definidos unilateralmente pelos Estados Unidos quanto ao seu engajamento no combate às drogas, podem ser desqualificados. O presidente dos Estados Unidos pode conceder uma dispensa de certificação (waiver), alegando interesse nacional dos Estados Unidos. No entanto, caso ocorra a perda de certificação sem a dispensa, as sanções incluem o voto negativo dos Estados Unidos nas solicitações de empréstimos junto às instituições financeiras internacionais, perda de auxílio financeiro e possibilidade de imposição de sanções comerciais, como a suspensão de preferências tarifárias.

A manutenção da certificação demonstrava a continuidade do unilateralismo na política norte- americana de combate às drogas. A previsão de sanções como suspensão de ajuda financeira e de preferências comerciais unilaterais recuperava o uso do “porrete” (stick) especificamente para um tema que requeria a cooperação entre os países, devido à sua dimensão transnacional.

A insistência no combate ao suprimento de drogas como norte da política anti-drogas dos Estados Unidos parece incompreensível quando se observa que vários estudos têm apontado consistentemente para a insuficiência do tratamento da questão das drogas apenas pelo lado da oferta. De fato, a lei da oferta e demanda tende a operar com grande eficiência no comércio de drogas. Como bem definiu o ex-presidente da Colômbia, Virgilio Barco (1990 apud SMITH, 2000, p. 284), “[…] the only law the narco-terrorists do not break is the law of supply and demand.”

Os principais efeitos das operações de interdição foram gerar novos pólos de produção e rotas internacionais alternativas, denotando a elevada capacidade organizacional dos traficantes. A ruptura da rota aérea entre Peru e Colômbia, longe de diminuir a produção, levou à verticalização da cadeia produtiva. Peru e Bolívia, tradicionais produtores de matéria-prima,

passaram a processar cocaína, ao mesmo tempo em que aumentou o cultivo de coca na Colômbia.

Segundo dados da Drug Enforcement Administration dos Estados Unidos - DEA, em 1995 Peru e Bolívia respondiam por 90% da produção mundial de pasta de coca, com o restante proveniente da Colômbia, e a produção de cocaína era estimada em 715 toneladas métricas. O relatório da DEA (1996) indicava, ainda, que as ações voltadas à law enforcement tinham produzido como efeito colateral a realocação de parte das operações do tráfico para Brasil, Equador e Venezuela.

Apesar de todas as incongruências, o combate ao tráfico de drogas garantiu uma posição estável e elevada entre as prioridades dos Estados Unidos para a América Latina, pelo menos até o ataque de 11 de setembro de 2001. Ao contrário da agenda de integração comercial, a política anti-drogas gerou ações concretas dos Estados Unidos na região andina. Tais ações, marcadas pelo unilateralismo e pelos velhos mecanismos de “stick and carrot,” contradiziam praticamente todos os elementos valorizados na Declaração de Miami.