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A diversidade vingativa impulsionada pela vaidade ferida

2 O DIONISÍACO BÁRBARO: O PRIMEIRO MATRAGA

2.1 A PRESENÇA DO PROTAGONISTA E SUA HYBRIS

2.1.5 A diversidade vingativa impulsionada pela vaidade ferida

Para se ter notícia da relevância da diversidade com que o tema vingança é tratado no decorrer do momento existencial da maioria dos personagens no conto, vejam-se, conforme mostra a tabela abaixo, algumas formas com as quais a vingança é materializada, e a menção freqüente da vaidade ferida como o desatar do nó para o desenlace do ato trágico contido em cada macro ou micro-tramas descritos na narração.

Tipo de vingança Personagens envolvidos

Elemento da trama

1 Vingança por questão de vaidade masculina

O povo presente ao leilão contra o capiau

A vaidade masculina ferida da multidão que observava o leilão de corpos; o poder deles enquanto machos é

ferida e poder desafiado

diminuído devido à predileção da Sariema pelo capiau, bem como a tentativa dele de levá-la consigo são os elementos desencadeadores do desejo deles de que Matraga dominasse a Sariema e espancasse o capiau, o qual seria inferiorizado à multidão naquele contexto: “Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o povo, por ser barato” (ROSA, 1988, p. 9). Sendo ainda capazes de desejarem surrar mais ainda o rapaz enquanto este apanhava dos cacundeiros do protagonista e fora “empurrado para o denso do povo, que também queria estapear” (ROSA, 1988, p. 10). 2 Vingança devido à vontade de potência desafiada; questão de vaidade masculina ferida e desonra Augusto Matraga contra o capiau

A tentativa do capiau passar a perna em Matraga, o qual tinha arrematado devidamente a rapariga leiloada, é o motivo pelo qual se vinga do pretensioso rapaz com uma surra que lhe foi bem aplicada.

3 Vingança por questão de vaidade masculina e desonra

Augusto Matraga contra a Sariema

A predileção da rapariga pelo capiau diminui a potência de Matraga enquanto macho dominante e fere sua vaidade e honra porque além de ser socialmente e potencialmente superior ao capiau, ainda está com a razão e o direito na situação conflitante, já que arrematou devidamente a mulher posta à venda. É devido a tanto que a enxota perto de uma casa de prostituição, para lembrá-la de que ela não significava nada para ele, pois era somente um objeto do qual decidiu se apossar para demonstrar seu poder de macho dominante.

4 Vingança por questão de vaidade feminina ferida

Dona Dionóra contra o marido Matraga

As constantes traições do marido “que tinha outros prazeres outras mulheres” (ROSA, 1988, p. 12), ocasionam a fuga de Dona Dionóra com um pretendente que a cortejava e lhe prometia uma vida baseada no amor, já que este “gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia” (ROSA, 1988, p. 13). As constantes diminuições da potência feminina pelo descaso do desejo de seu marido, precipitam sua vingança através da busca do resgate de sua força enquanto fêmea que enfeitiça os homens, com o intuito de desonrar aquele que a desprezou em seus atributos de mulher.

5 Vingança psicológica por questão de descaso amoroso

Mimita contra o pai Matraga

Na medida em que Matraga fora um pai ausente que nunca demonstrou afeto pela filha, esta interioriza uma vingança contra ele (ela se torna uma mulher à toa): há

uma vingança psicológica não premeditada, pois provavelmente ela, em seus devaneios de adolescente a descobrir sua individualidade, deve ter pensado que, para o pai, o qual nunca a amou, vê-la como uma mulher perdida seria uma vingança bem concretizada, já que é uma questão de desonra ao nome dele. É devido a tanto, que não fez questão de preservar sua virgindade e “tinha caído na vida, seduzido por um cometa” (ROSA, 1988, p. 26).

6 Vingança por questão de vaidade monetária, inveja e ressentimento

Major Concilva contra o pai de Matraga

O Major, que era inimigo do pai de Matraga, guarda todo o ódio e inveja devido à fartura patrimonial da família do protagonista. Tendo o seu desafeto maior falecido, Matraga passa a ser o objeto da vingança do Major. Assim, resolve tomar os bens do protagonista, começando por tirar-lhe os capangas. Além de confabular contra a vida dele, “estão conversando, o Major mais outros grandes” (ROSA, 1988, p. 16), que pretendem atraiçoá-lo — já dizia um dos empregados de Matraga para que o patrão se resguardasse do inimigo invejoso.

7 Vingança por questão de vaidade divina

A vontade divina contra a vontade de potência de Matraga

O castigo sobre Matraga pode também ser compreendido como a desforra de Deus sobre o filho, a ovelha desgarrada, a qual nunca mediu o poder da espada do Todo Poderoso, agindo sem levar em consideração as “ordens” do Pai. Fato este que é confirmado com as atitudes animalescas do protagonista e a surra que lhe foi impingida.

8 Vingança social não premeditada

O casal de pretos contra Matraga

Na medida em que os pretos hospedam e acolhem o homem branco, têm a oportunidade de serem superiores, pois o poderoso Matraga, o homem branco e bem apessoado, o qual nunca precisou do favor dos seres que lhe eram inferiores em poder, agora precisava dos cuidados deles para sobreviver: é assim que o pobre se torna superior ao rico.

9 Vingança por questão de honra e vaidade

Quim Recadeiro contra o Major Concilva

A vingança que Quim Recadeiro perpetua contra o Major Concilva em nome do patrão é para honrar o poder de Matraga que fora menosprezado e diminuído pelo Major, bem como perpetra sua vingança por vaidade pessoal, para resgatar a sua própria hombridade que fora contestada no instante em que seu patrão fora derrotado.

mesmo batalha contra o demônio podem ser concebidas como uma guerra paliativa do protagonista contra ele mesmo. Já que não havia possibilidade de confrontos de outra natureza, se volta contra as imagens fantasmagóricas criadas pela religião e transvaloradas por ele mesmo. Assim, se vinga do demônio, ou melhor, da besta dionisíaca que habitava em si.

11 Vingança devido à infração ao código jagunço e por questão de honra Joãozinho Bem-Bem contra o povoado, no qual habitava o assassino do integrante do bando jagunço

Para fazer cumprir a lei jagunça, o líder do bando, Joãozinho Bem-Bem, se sentia obrigado por uma questão de honra a impor um castigo àqueles que não respeitaram a lei, propondo vingança contra todos os que davam suporte ao assassino que atraiçoou o Juruminho pelas costas.

12 Vingança por questão de ressentimento pelo poder do mais forte

O velho rastejante, pai do assassino do Juruminho, contra Joãozinho Bem-Bem

Devido à fraqueza do velho que demonstrava sua submissão ao poder do jagunço, implora para que este tenha piedade de seus familiares. Na medida em que não é atendido em sua vergonhosa submissão, volta-se em todo o seu ódio ressentido contra a força que lhe era superior, rogando um poder maior que impusesse uma vingança, a qual, devido à sua fraqueza, não poderia desferir contra o poder do jagunço.

13 Vingança pacífica e inocente A vontade de potência de Matraga contra a vontade de potência de Joãozinho Bem-Bem

O confronto final descrito no conto, que em si carrega a materialização de duas vinganças. Há dois personagens, Matraga e Joãozinho Bem-Bem, os quais querem exercer sua vontade de potência através da vingança que planejam, não diretamente um contra o outro, porque, enquanto Matraga queria se vingar da Vida ou de Deus, muito embora essa fosse uma “vingança pacífica”, sem má-consciência e ressentimento, porém que foi alcançada com violência, Joãozinho Bem-Bem só confronta o adversário porque queria fazer cumprir a lei jagunça e vingar a morte de Juruminho: tem-se então uma vingança contra outra em suas motivações coerentes para fazer valer uma vontade de potência “inocente” que parecia ter uma justificativa plausível para sua execução. Por não haver vontades mesquinhas e vingança ressentida, o duelo é de uma beleza magnífica. E mesmo todo o sangue derramado e a violência perpetrada são amenizados pela motivação maior de ambos.

Tabela 1 — As formas de vingança

Dentre tantas as formas com as quais a vingança é materializada no conto, note-se que em todas elas há a presença de um sentimento motor que está direta ou indiretamente agindo como impulsionador do revanchismo que se percebe em cada atitude descrita nas tramas envolvendo os diversos personagens, a saber, a vaidade, o que, de certa forma, confirma a idéia bíblica contida no Eclesiastes de que todas as ações humanas têm uma finalidade ligada à vaidade pessoal que perfaz fundamentalmente a natureza ontológica do homem. Fato este que também parece ser confirmado por Nietzsche quando afirma, em Assim falou Zaratustra, que a vaidade é a mãe de todas as tragédias. Todavia, tanto para o filósofo quanto para Guimarães Rosa, há algo ainda mais intrínseco à natureza humana que é a fonte de origem da própria vaidade, a qual, quando ferida, desencadeia a vingança, a saber, a vontade de potência.

Ao se considerar a vaidade e os prazeres advindos de sua execução como único proveito que o homem tira “de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol” (BÍBLIA, A.T. Eclesiastes, 1:3), não se leva em conta que toda a vaidade que ocasiona sua vontade de querer ser melhor do que o seu semelhante, não ser apenas por uma vaidade vil que pretende superar o outro para lhe impor uma derrota e humilhação através de uma vingança qualquer, mas, também, ser a vontade natural e inocente de querer competir, de querer se alegrar com os confrontos advindos do desafio. A vaidade, assim como a vingança que dela advém, são nuances da vontade de potência que ambiciona dominar através do conflito, o qual precipita o ato trágico. Essa é a força mais inerente ao ser humano. Através dela ele se põe no mundo, o qual, por sua vez, em suas relações naturais, também procede de acordo com a vontade de potência para encontrar o seu caminho para a tragicidade que pode intensificar a Vida.

Assim como o homem, a natureza também age de acordo com a vontade de potência das energias harmoniosas encontradas nas disposições das cadeias ecológicas em sua vontade de intensificação da vida natural. E se for pertinente a comparação da natureza com o homem, acredita-se que, logo na abertura do conto, já está contida uma relação formidável entre o escritor mineiro e o filósofo alemão, na medida em que se tem o provérbio capiau transcrito da seguinte forma, “sapo não pula por boniteza, mas porém por percisão” (ROSA, 1988, p. 5). Será que é tão somente a vaidade que projeta o sapo, o elemento da natureza, em sua necessidade de está no mundo a pular? O seu pulo é uma precisão que tem para que aplaque a sua vaidade? Ou seriam os seus pulos uma característica que lhe é fundamental e intrínseca, e que confirma o seu estado de anfíbio? Quando se compara o sapo a Matraga, percebe-se que

todos os seus atos não foram somente devido à sua vaidade, mas sua vontade de pular cada vez mais alto é uma necessidade que tinha para confirmar sua natureza ontológica baseada na afirmação de sua ânsia de domínio através da competição de forças. Assim como o anfíbio do provérbio capiau, não é necessariamente a vaidade que conduz os atos do protagonista, mas trata-se de uma característica que possuía que o individualizava enquanto o ser que é.

Todavia, nessa sua primeira fase, o protagonista parecia pouco preocupado e atento com as relações pessoais estabelecidas com os que o circundavam. Agindo sempre individualmente, mas não individualizado, descarrega sua energia contra todos a sua volta na intenção de expandir cada vez mais sua força para fora de si. É devido a tanto que ele é o objeto maior das vinganças impetradas no conto pelos diversos personagens mencionados. Sua ânsia de domínio não levava em consideração a “vaidade” contida na vontade dos outros com os quais se relacionava, mas se trata apenas de dominar para esbanjar o seu poder, não por vaidade mesquinha, mas por uma necessidade que o fazia se sentir vivo enquanto hybris positiva que se eleva confiante em seu próprio poder (isso sempre no sentido nietzscheano).

É por tudo que foi dito até o momento, que se considera preponderante para se entender melhor essa diversidade vingativa, que se saiba quais a suas causas e seus efeitos, os quais estão e serão descritos no decorrer da menção e descrição dos atos do protagonista e de alguns outros personagens do conto, além de que se reconheça que suas finalidades são diversas e estão necessariamente ligadas à vaidade ferida e, mais intrinsecamente, à vontade de potência contestada.

A vontade de potência das variadas formas com que se apresenta, seja através de uma vontade pessoal ou da natureza, emerge como a motivação principal dos conflitos, e como conseqüência do confronto de forças têm-se o prejuízo, o dano, a vingança, o castigo, a culpa, o ressentimento, o remorso e a má-consciência, os quais são assim considerados à medida em que a vaidade é ferida, no momento em que a vontade de potência é exercida ou contestada, podendo vir a intensificar ou retroagir a vida.