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1 INTRODUÇÃO

1.2 ANÁLISE DA FORTUNA CRÍTICA DIGITAL

1.2.2 Artigos e Ensaios

Há também alguns artigos e ensaios eletrônicos publicados. Um desses intitulado, A dualidade humana em ‘A hora e a vez de Augusto Matraga’, de Elias dos Santos Silva, que faz uma leitura do caráter dialético entre o Bem e o Mal em um plano mais terrestre, no qual, ao menos não peca em dignificar um Bem que se faz sem o Mal, mas que se amalgamam formando um ser profundamente humano. Todavia, não se aprofunda nos aspectos mais internos da construção do personagem, quando afirma que ele queria uma redenção, mesmo “sob a eterna dualidade de um ser que traz em si as luzes do Céu e as trevas do Inferno” (SILVA, 2005).

Em Matraga e Bem-Bem: conflito ético: uma leitura de ‘A hora e a vez de Augusto Matraga’ de João Guimarães Rosa, o professor Ms. Flávio Leal começa seu ensaio, afirmando que AHVAM é uma “narrativa que instiga pensamentos e discussões há mais de meio século, é lida mais uma vez numa tentativa de abordagem crítica” (LEAL, 2005). Será que pensa o professor que meio século é muito tempo a ser considerado sobre a análise de uma obra estética do porte “clássico”? Será que com esse tempo é possível produzir uma tradição crítica sólida sobre um conto tão rico em conceito e sofisticado em sua feitura? Considerando o que antes fora afirmado sobre o juízo pobre feito sobre o conto, e a carência de estudos sobre ele, o tempo sugerido pelo escritor não parece ser tanto assim.

Feita essa afirmação equivocada, o professor pretende mostrar com seu ensaio, o qual em seguida é referido como artigo, causando confusão sobre o formato com o qual decide argumentar em sua tese, “com proporções humildes” (LEAL, 2005) a trajetória de embates de valores éticos no conto em questão.

Com relação à forma, fica-se sem saber se se trata de ensaio ou artigo. Sobre o conteúdo, é interessante o modo como apresenta tais valores éticos, como o ethos patriarcal sertanejo e o ethos cristão, os quais entram em confronto para recriar um ethos sintetizado em Augusto Matraga. O autor considera que o ethos jagunço poderia ser considerado “bom” porque procura a “organização de seu meio social e histórico” (LEAL, 2005), fazendo o leitor refletir sobre quem seria o bom e o mau naquele conflito ético, simbolizado pelo confronto entre Matraga e Joãozinho Bem-Bem, mas termina por afirmar que o ethos cristão é a ética de

Matraga e que este queria a redenção, “dando a sua vida pela família, age como verdadeiro cristão em um imitatio Christi” (LEAL, 2005); restringindo o conto a uma leitura também no plano religioso.

Em um outro artigo sob autoria da Ms. Maria Laura Muller, A hora e vez de Augusto Matraga, no qual afirma que, “A hora e vez de Augusto Matraga é uma história de redenção e espiritualidade, uma história de conversão” (MULLER, 2004), tem-se mais uma vez uma leitura sob a perspectiva religiosa.

Em se tratando de uma leitura um pouco diferenciada, há uma no viés antropológico feita por Renato da Silva Queiroz, Matraga, seu pai, seu filho, na qual o autor analisa o conto enfocando os processos que são reconhecidos na psicologia como “ritos de passagem”. Considerando que há três fases distintas no conto, Queiroz atribui a cada uma as seguintes nomenclaturas: “rito de separação”, “rito de segregação” e “rito de reagregação”. O rito de separação se daria no momento em que o personagem perde seus bens e é surrado, sendo expulso de uma realidade social da qual fazia parte, para iniciar uma existência segregada em outro ambiente social que não o acolhe totalmente, sendo esse o rito de segregação, para em seguida ser reagregado a sua condição original, porém com uma nova carga na bagagem: a religião; simbolizado no confronto final entre Matraga e Joãozinho Bem-Bem:

A luta é o apropriado rito que, a um só tempo, reagrega e separa. Tem lugar ‘bem

no centro do arraial, numa casa de fazendeiro’. E a passagem, portanto, é dupla: a

da fase de margem para a nova identidade, para o novo status na estrutura social dos seres viventes (num breve e derradeiro convívio com estes últimos) e, dessa nova condição, para o mundo dos mortos. Mas não um morto como outro qualquer. Um santo: ‘Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés dele!...

Não deixem este santo morrer assim...’ falou o velho. (QUEIROZ, 2002).

Eis que o autor propõe uma leitura diferenciada, porém sua tentativa de enfocar o conto nesse sentido, não promove uma discussão mais pertinente sobre a natureza do personagem, pelo contrário, parece ainda reafirmar que os “ritos de passagem” são tão somente períodos em que Matraga teve que atravessar até o momento de sua morte e o estabelecimento de uma nova identidade, agora como “santo”. Muito embora seja o ancião (ou o narrador através do velho) salvo por Matraga quem o declara como “santo”, e não o autor do artigo, mesmo assim, ao dar a voz ao velho do conto, transcrito na citação acima, o qual afirma Augusto Matraga ser um santo, Queiroz calou-se, e quem cala consente. O que dá para entender que o autor também considera o personagem como santo, comungando assim com a visão que o ancião tivera do personagem. Portanto, sua leitura ainda sustenta a busca do personagem por uma espécie de santidade.

Somente em dois artigos, um deles intitulado, Vida e morte de Augusto Matraga, de Andréia Delmaschio, tem-se leituras que divergem das religiosas. Nesta primeira citada, a autora descreve o cenário em que o personagem estava inserido, representado pelo momento em que ele foi quase assassinado pelos jagunços. A sobrevida do personagem depois do atentado contra sua vida, passa a figurar como o tema central do artigo. Tem-se, então, uma temática relacionada à vida e morte ʊ não necessariamente a vida e a morte do personagem. Vivendo uma espécie de “meia-morte” ʊ termo que a autora usa para descrever a sobrevida de Matraga, em contraposição à “meia-vida” (tais termos são da própria autora), Augusto Matraga é entendido como uma espécie de “zumbi” que só esperava passivamente, apesar de trabalhar duro, mas apenas como distração para o dia da chegada de sua morte. Assim, enquanto a leitura religiosa interpreta essa “meia-vida” como o momento em que o personagem se redime dos pecados almejando uma vida plena em mundos do além, Delmaschio considera o termo de significado religioso, como a “meia-morte”, que seria “a fase de remissão a que se entrega o personagem” (DELMASCHIO, [2000?]); sendo esta já semelhante à morte em si. Ou seja, o personagem cessa a vida quando é surrado e quase vem a falecer, sua vida não mais existe, mas apenas um preâmbulo para o momento em que morrerá por completo, pelo menos no plano físico.

Se a crítica religiosa é muito “otimista” em sua vontade de enxergar o personagem como uma espécie de “santo” que procura ser salvo por seu amor ao próximo e a Deus, a de Delmaschio é por demais “pessimista” porque parece remeter aos personagens da literatura existencialista, na qual o niilismo era o caminho a ser seguido por eles. Levando-se em conta a leitura que se pretende aqui, a personalidade nobre de Matraga não permite que seja considerado como um personagem existencialista que pondera sobre a morte, e vive (ou não- vive), só a espera dela por ser a única certeza que se mostra indiscutível ao ser humano.

Nietzsche, além de suas críticas ao cristianismo, e de ser um niilista no sentido de não crer nos valores morais humanos, é crítico ferrenho do niilismo negativo porque para ele o ser nobre deve encontrar uma saída para o nada no qual a sociedade é incitada a adentrar, devido à Morte de Deus, “o nobre quer criar alguma coisa nobre e uma nova virtude” (NIETZSCHE, 2005, p. 48). Não que a autora considere que se trate exatamente de um niilismo, afinal o personagem tem sua esperança (ou desesperança, de acordo com ela) de ser salvo, mas o que se contesta é a perspectiva existencialista abordada no artigo. Todavia, sem dúvida, a leitura que Delmaschio faz é diferente das outras encontradas. O tema abordado pela autora ʊ a vida e a morte, será tratado aqui de uma forma mais condizente com a linha de raciocínio a que se propõe essa dissertação.

Já o segundo artigo, A trajetória do corpo em ‘A hora e vez de Augusto Matraga’ de João Guimarães Rosa, de Adelaide Caramuru Cézar e Volnei Edson dos Santos, propõe uma leitura mais condizente com a que se pretende nesta dissertação. Nesse ensaio, seus autores têm como objetivo enfocar a trajetória do corpo no conto em questão, baseados na leitura que Paulo César Carneiro Lopes fez em UCSM, e colocar em xeque a afirmação de Walnice Nogueira Galvão sobre a univocidade de uma leitura “pia” em AHVAM, e, para tanto, recorrem aos conceitos trágicos aristotélicos desenvolvidos na Poética (335-323?), bem como aos nietzscheanos apresentados em O nascimento da tragédia (1872).

Provavelmente, eles chegaram a essa conclusão sobre o fluxo da filosofia nietzscheana no conto com a ajuda de Lopes porque, como se verificou, muito embora ele encubra a influência do filósofo em UCSM, os que lêem sua crítica a Augusto Matraga percebem de imediato a presença de Nietzsche. Dessa forma, Adelaide e Volnei preencheram o vácuo deixado por Lopes, na medida em que este não menciona Nietzsche, mas dá pistas de sua filosofia em sua crítica literária. Todavia, apesar da leitura nietzscheana, eles não aprofundam a comparação dos postulados do filósofo alemão com os conceitos estéticos do conto. Talvez a leitura que fazem seja mais aristotélica porque impregnam seu artigo com conceitos do filósofo grego, mesmo que reconheçam a crítica de Nietzsche ao formalismo grego. Apesar de tudo, também insistem em uma afirmação que não se libertou totalmente do plano religioso:

O objetivo de vida, depois da experiência da tortura, depois da experiência da humilhação, passa a ser única e exclusivamente a salvação da alma, uma vez que, obviamente, com o corpo não pode mais contar. (CÉZAR; SANTOS, 2002). Porém, Augusto Matraga nunca soube ao certo o que seria essa salvação da alma por não conhecer ao certo os valores cristãos.

Sendo ele um sujeito nobre, sempre nietzscheanamente falando, sua busca não pode ser comparada a de um ser que procura uma salvação cristã. Quem o considera piedoso e caridoso no momento em que cede sua vida pelos oprimidos através de ato violento para “salvar sua alma”, não se integrou ao caráter verdadeiramente nobre da personalidade dele: “Não foi a vossa piedade mais a vossa bravura que salvou os náufragos” (NIETZSCHE, 2005, p. 50). Seguindo essa citação de Nietzsche, não foi a piedade do personagem que o fez salvar os oprimidos do vilarejo, mas sua bravura e vontade de exercer sua potência abundante, já por tanto tempo inercizada, pelo menos no plano físico. A piedade é para outro tipo de ser humano diverso do nobre. Portanto, Matraga nunca foi piedoso, se há uma palavra para qualificá-lo, propõe-se que se use o adjetivo “bravo” ou “corajoso”. Sua coragem e necessidade de guerrear fizeram-no procurar sua tão esperada hora e vez, e não a vontade de

salvar sua alma. Se com a vitória ele conquistasse os louros do Paraíso, que assim o fosse, mas o que lhe importava é estar em guerra. Dessa forma, as ambições nobres do personagem, acabam transvalorando as ambições concretas com relação ao cristianismo, que ele tanto se esforçou para “seguir”, criando novos valores para justificar e afirmar a sua personalidade, que sempre estivera em desacordo com a moral cristã. Entretanto, note-se que o personagem não queria somente a guerra por si, para subjugar e espalhar a violência pela violência, também tinha consigo um projeto de super-ação de si mesmo ʊ a guerra também era consigo próprio; uma ambição de buscar um desenvolvimento humano que antes nunca fora pretendido por ele.

Todavia, apesar dos autores do ensaio, Adelaide e Volnei, não perceberem o Mal nobre, sempre no sentido nietzscheano, na leitura que fizeram, debilitando a leitura nietzscheana a que se propõem fazer, tal ensaio já aponta esparsamente situações que aqui serão postas. Como, por exemplo, a trajetória do corpo entendida como o confronto entre os conceitos nietzscheanos de apolíneo e dionisíaco, muito embora eles não desenvolvam tais conceitos em concordância com as ações do personagem em suas distintas fases existenciais; bem como a possibilidade de se vislumbrar um enredo de caráter trágico diferenciado do conceito grego de tragédia, o qual exploram.