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1 INTRODUÇÃO

1.3 NOÇÕES SOBRE A FILOSOFIA NIETZSCHEANA

1.3.2 A filosofia nietzscheana aplicada ao conto

Feitas tais observações sobre a civilização grega através da ótica nietzcheana, um ponto culminante é atingido com o que se pretende aqui. Da mesma forma com a qual o filósofo fez a comparação da civilização grega com a contemporânea a ele enfatizando a arte trágica grega baseada nos elementos apolíneo e dionisíaco, bem como no espírito da música como forma estética legítima, a qual situa o homem em um âmbito de beleza que transfigura a

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O termo não deve ser entendido de acordo com a concepção sobre o gênero poético da época medieval, mas em consonância com o seu sentido etimológico, cujo entendimento deve ser remetido ao contexto grego, no qual

realidade, porém desvelando a essência por trás da aparência. Analisar-se-á o personagem Augusto Matraga em comparação com a mesma concepção nietzscheana, ou seja, se sustenta que o personagem possui todo um inconsciente imaginário muito semelhante ao de um ser que carrega em si o confronto entre tais elementos metafísicos, e que está inserido em um contexto ético muito semelhante ao grego antigo.

O cerne dessa comparação reside na análise das ações do personagem em sua peleja existencial para fazer valer a sua vontade de potência. Além da dualidade entre os elementos apolíneo e dionisíaco, o conceito de vontade de potência também será aplicado como perspectiva que fundamenta todas as mudanças ocorridas com Matraga. Por último, há também uma crítica velada à religião e ao racionalismo que se faz presente no conto e que aqui também será tratada para reforçar a comparação entre os escritores. Trata-se de aplicar a teoria nietzscheana ao conto em questão para aproximar o personagem do que o filósofo considera como aquele ser capaz de suplantar o pessimismo ou a negação da vida, atingir a sua individualidade e resgatar seu Ser originário através da quebra dessa mesma individualidade e sua fusão com o mundo do qual faz parte para, assim, exercer sua vontade de potência. Nessa esfera especulativa, não há como negar a relevância de sua filosofia para se conhecer melhor a natureza do personagem, a sua essência heróico-trágica e ontológica, e reforçar a crítica à religião como ideologia que desvaloriza a vida.

A comparação dos impulsos apolíneo e dionisíaco sob a perspectiva da vontade de potência presentes no personagem, será feita com a divisão do conto em três fases, as quais são sugeridas a partir da constatação dos elementos evidentes em cada uma das fases do protagonista em decorrência de suas ações, podendo ser assim resumidas: no princípio do conto Augusto Matraga age como um ser sem medidas, o qual está posto no mundo para orgias e degradação. Ele atua desmedidamente, como que domado por um instinto destruidor, expondo com violência sua presença física como a própria hybris12. Esta é a primeira fase dionisíaca bárbara, a qual pode ser percebida no conto da página oito até a dezenove quando é descrito o momento em que o personagem se atira no abismo para escapar da morte vergonhosa e preparar caminho para o seu retorno mais potente, “o corpo rolou, lá embaixo, nas moitas, se sumindo” (ROSA, 1988, p. 19).

os heróis costumavam celebrar seus feitos e gestos ilustres com a entonação de músicas que glorificavam seus atos guerreiros.

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A compreensão do termo não deve ser restringida ao formalismo clássico grego, o qual interpreta hybris como o orgulho trágico que conduz os heróis à hamartia, mas como uma força auto-afirmadora do poder, da vontade de potência que se impõe sobre o destino para fazer valer o desejo do herói, independentemente da hamartia.

Em seguida, dado como morto, mas acolhido por um casal de pretos que lhe oferece abrigo, Matraga é conduzido às fileiras cristãs para regeneração de suas maldades, iniciando um período de individuação e consciência de seus desmandos, passando a crer em um mundo do além, adotando rigorosamente a moral cristã e buscando pela salvação através da ponderação dos fatos ocorridos em sua vida pregressa e a luta contra as tentações do demônio ʊ esta é a segunda fase apolínea culpabilizada, a qual pode ser compreendida entre as páginas dezenove até a trinta e oito quando novamente ele sente a vontade de potência revigorando o seu Ser e almeja retornar ao mundo guerreiro. Fato este que pode ser percebido com o sonho que teve, no qual havia um ser poderoso que o “mandava brigar” (ROSA, 1988, p. 38).

Na medida em que se questiona sobre o mundo ilusório cristão e vence a guerra metafísica contra o demônio, Matraga sente o chamado por um confronto mais potente, através do qual pudesse reconciliar o bárbaro com o religioso, ou seja, do dionisíaco com o apolíneo, desejo esse que fez com que ele saísse pelo mundo farejando a sua tão esperada hora e vez. Nesse instante, tem-se a terceira fase dionisíaca apolinizada, a qual está compreendida da página trinta e oito até a última do conto, as quais materializam a essência do personagem através da tragicidade heróica evidente no último ato da narração: aí reside o momento em que Guimarães Rosa traduz o júbilo estético trágico e ontológico além do bem e do mal representado com a morte do personagem, o qual se reconcilia bravamente e honrosamente com a totalidade através de sua super-ação decorrida de sua vontade de potência.

A divisão do conto da forma como aqui é estabelecida se enquadra ao que foi dito sobre a civilização grega, na medida em que se considerou a presença do elemento dionisíaco como fator desnorteante, através do qual compreende-se que o mundo é diverso e adverso, incitando à violência, uma vida embriagada pela volúpia destruidora, sendo necessário o esfacelamento, o sofrimento para a recomposição do Ser. Entrando em jogo o elemento apolíneo, que favorece a individuação, se cria uma ilusão para a segurança existencial, a qual será desmantelada com mais sofrimento, causando o desnorteamento existencial, o qual é reestruturado com a visão dionisíaca integrada à apolínea, que reconcilia o individuo com o Uno-originário através da criação de uma nova aparência que é similiforme13 à essência. Neste sentido, os artistas gregos considerados como imitadores que alcançam o júbilo artístico, a natureza através do fenômeno estético, a qual era representada tão perfeitamente pela arte trágica, Guimarães Rosa se assemelha a eles com seu conto trágico por excelência

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que reverbera em um contexto sertanejo a atmosfera estética grega postulada em O nascimento da tragédia.

Seguindo a comparação apontada entre o contexto grego expresso através da filosofia nietzscheana e o conto AHVAM, mencionando os mecanismos que fundamentam a vontade de potência expressa em cada ato descrito, ressalta-se também a crítica ao racionalismo, à moral e à religião. Doravante, nos capítulos que se seguem, espera-se que o curso de tal comparação seja mais efetivamente evidenciado com o que se propõe.