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1 INTRODUÇÃO

1.3 NOÇÕES SOBRE A FILOSOFIA NIETZSCHEANA

1.3.1 Os elementos apolíneo e dionisíaco

Apolo era reconhecido por Nietzsche como o pai da aparência, criador do mundo ilusório de beleza e luminosidade que pode prender o ser ao seu êxtase e mantê-lo em constante deleite, sem que esse “acorde” da bela ilusão, ou incitá-lo a vislumbrar um outro mundo de aparências que procura uma reconciliação com a essência das coisas. Nesse sentido, há o caminho do pessimismo posto através da lenda de Midas e Sileno, o do êxtase na contemplação absorta da beleza ilusória ou a busca da essência por trás da aparência inebriante, que, na verdade, seria um meio para se atingir uma outra aparência, só que mais condizente com a “verdade”. Decerto que o filósofo acredita ser a última alternativa como a mais apropriada para a formação de um povo superior, cujo valor existencial é estabelecido pelo equilíbrio dos impulsos estéticos.

De acordo com o filósofo, outra característica do deus Apolo residia em sua responsabilidade pela individuação do sujeito, o principium individuationes, o qual se realiza a partir da reflexão sobre si mesmo, da tomada de consciência de sua existência individual. Assim, paralelamente às necessidades estéticas da beleza, Apolo representava a “exigência do ‘Conhecer-te a ti mesmo’ e ‘nada em demasia’” (NIETZSCHE, 1992, p. 40). Tal processo de individuação é chamado por Nietzsche de elemento apolíneo. Como características predominantes em tal elemento estão a luz e a aparência, além da medida, do avaliar. Através de Apolo o mundo se torna inteligível, pois ele joga a luz da razão sobre as coisas, precipitando uma interpretação a respeito de tudo. Através desse modo de ser, o homem procura explicações para o místico, para o sorumbático, para o desconhecido que está presente em todo o imaginário humano. Deste avaliar e ponderar, encontra-se um meio que possa garantir sua sobrevivência, o que significa a busca por meios que o protejam do que lhe parece não ter explicação plausível. O homem cria um mundo de aparência para garantir a sua segurança existencial. Nietzsche exemplifica tal teoria quando cita a obra de Arthur Schopenhauer (1788-1860), O mundo como vontade de representação (1819), relembrando a passagem sobre o homem recolhido no véu de Maia

Tal como, em meio a mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiante na frágil embarcação; da mesma forma, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no principium

individuationis [princípio de individuação]. (NIETZSCHE, 1992, p. 30).

Dessa forma, pode-se afirmar que o elemento apolíneo em questão representa a perfeita confiança que se cria à cerca de um modo pessoal de se seguir navegando confiante em sua

rota sempre bem delimitada e inócua, quando há um mar revolto existencial que traga o homem para o abismo, para o nada ou para a comunhão com o todo desconhecido em um êxtase no âmbito dos fenômenos e forças naturais, que o libertam do mundo de aparência que cria para si mesmo. Portanto, conceber o elemento apolíneo como a luz jogada sobre as coisas, é criar um mundo de aparências, fazendo com que o homem se individualize e se sinta “protegido” em sua “casa” ou em seu barco, havendo com isso um certo aprisionamento dele a si mesmo. Desde que o homem se reveste com o véu de Maia, ele destorce um mundo essencial, o qual fica velado com a presunção de que há uma resolução consciente e racional para a essência de tudo. Esse é o caminho do encantamento com a aparente resolução do enigma da vida a partir de um escopo pessoal que pretende reservar a sua integridade existencial.

Entretanto, é exatamente através da aparente tranqüilidade experimentada pelo Ser quando individualizado, prostrado em seu mundo de aparências, que surge a necessidade de libertação do que antes parecia um paraíso, mas era uma prisão. Aquele que busca a libertação, renova a sua vontade, direcionando-a para a formação do ser humano livre da primeira aparência e reconciliado com a ordem da disposição natural dos fenômenos e forças metafísicos: a vontade de potência. A partir da quebra da individuação, ou do desnorteamento do barco existencial, o homem se vê à deriva, sem rumo em um mundo que lhe parecia tão seu, tão familiar, mas que, ao contrário, lhe tira todas as causalidades e razões, projetando-o para a busca da “verdadeira” essência das coisas. Nessa empreitada surge o outro deus que é o responsável pela quebra da individualidade, reconciliando o homem com a natureza: Dionísio. Também conhecido como Baco, essa entidade divinizada vem de raízes bárbaras e adentrou o universo grego através do contato destes com as civilizações orientais. Sob sua égide os seres se desintegravam desmedidamente em cortejos orgiásticos, cantando e dançando freneticamente e em transe, numa embriaguez coletiva. Com o elemento dionisíaco em prática havia uma significava perda da consciência de si mesmo, da subjetividade e da medida, bem como a comunhão com a totalidade em um frenesi voluptuoso, carregado de loucura e misticismo, ou como diz Nietzsche sobre o poder desse elemento sobre o princípio de individuação, “procura inclusive destruí-lo e libertá-lo por meio de um sentimento místico de unidade” (NIETZSCHE, 1992, p. 32).

O elemento dionisíaco, o qual é a antítese do apolíneo, que destrói o princípio de individuação e promove a comunhão do homem com o todo, e que sugeria a vida em movimento representado pela dança, música e o drama, confrontou o elemento apolíneo para se sobressair como produtor incisivo das atividades gregas. Foi através de Dionísio que os

gregos entregaram-se às orgias, donzelas dançando, poetas cantando músicas de amor e gesta11 em estado de êxtase. E como resultado eles passaram a ser uma raça de atividades violentas e devotos de si próprios, em busca de sua unidade existencial com o todo universal, ao invés de, apenas, elogiadores contemplativos da existência humana. Só que tais confrontos de forças e as atividades advindas com a influência do Deus do vinho, eram perigosas para qualquer civilização porque, na medida em que destrói a ilusão apolínea, deixa o homem atordoado, envenenado pela poção dionisíaca que o embriaga, fazendo com que se perca em meio aos fenômenos naturais por ele experimentados, se tornando um joguete nas mãos das forças que dirigem o mecanismo existencial da vontade de potência. Todavia, é exatamente essa poção encantada destruidora que fornece ao homem a salvação para o aniquilamento de sua existência.

A união dos elementos estéticos significa que Apolo entra em campo propondo uma reconciliação com o Dionísio bárbaro no afã de lhe tirar a peçonha e promover um fortalecimento do Ser que já perdeu a fé somente na beleza ilusória. Como se ensinasse a Dionísio que para ambos sobreviverem fosse necessário uma certa mediação entre a aparência e a essência, Apolo promove o controle da desmedida droga dionisíaca, organizando-a em medida estética. Ou seja, a civilização grega criou um antídoto, uma vacina contra o veneno dionisíaco para se curar a si mesma através da arte. Tal reconciliação foi o “momento mais importante na história do culto grego” (NIETZSCHE, 1992, p. 34), porque a partir dela os gregos antigos estabeleceram um novo simbolismo estético que foi capaz de integrar os impulsos dionisíacos com os apolíneos em um mundo novo, que renovou a sua potência, baseado nos fenômenos estéticos, os quais justificaram o mundo de sua carência de inteligibilidade.