• Nenhum resultado encontrado

O sagrado e o profano coadunados no contexto da primeira aparição de Matraga

2 O DIONISÍACO BÁRBARO: O PRIMEIRO MATRAGA

2.1 A PRESENÇA DO PROTAGONISTA E SUA HYBRIS

2.1.1 O sagrado e o profano coadunados no contexto da primeira aparição de Matraga

Já nessa primeira cena, se pode perceber o embate dos elementos apolíneo e dionisíaco presentes no local descrito: no momento em que há a missa, a reza, a contemplação e a devoção ao Deus cristão, para, em seguida haver a violência, a bebedeira, o comércio, os gritos e os desmandos de “uma multidão encachaçada de fim de festa” (ROSA, 1988, p. 7). Os que rezam e pedem a Deus pela sua salvação, evidenciam o elemento apolíneo em suas vidas, pois vivem na ilusão da redenção de suas existências através da religião; os que se entregam à bebedeira e se agrupam à multidão excitada com a carnavalização representada através da venda das mulheres (carne exposta para ser vendida) demonstram a presença marcante do elemento dionisíaco, pois se entregam todos os presentes conjuntamente naquela cena voluptuosa e cruel.

Dessa forma, no contexto da pequena cidadezinha mineira, os dois elementos estão em confronto naquela cena plácida religiosa, e na grotesca profana: há o embate evidente entre ambos. Ou seja, a religiosidade sempre está em rivalidade com o mundano, há sempre o confronto de forças. Todavia, note-se que o conflito também suscita uma coadunação entre o religioso e o profano, pois o comércio é vinculado à igreja, na medida em que o leiloeiro afirma, “respeito, gente, que o leilão é de santo!” (ROSA, 1988, p. 8). Bem como, entre os que presenciavam o comércio de mulheres, havia um “sacristão, no quadrante noroeste da massa” (ROSA, 1988, p. 10). De fato, há o conflito, mas também a mistura entre as forças metafísicas, proporcionando, já desde o início do conto, não a criação de um mundo dicotômico entre o bem e o mal, mas a desintegração de valores antagônicos — e isso será um objetivo buscado por Guimarães Rosa durante toda a narração. E, da mesma forma que no ambiente externo, no lugarejo onde se passa tal episódio, há esse embate e harmonia entre o bem e o mal, Matraga também convive com esse confronto dentro de si. Muito embora não

seja tão evidente, nem o conflito nem a coadunação entre eles, nessa sua primeira fase, na qual representa a personificação do Dionísio bárbaro, será evidenciado no decorrer da narração a quebra da dualidade antagônica.

Reforçando sempre o caráter desmensurado e mandão do herói e ressaltando o contexto de confronto e mistura de forças e conflito humano presentes no lugar, o narrador continua descrevendo o leilão improvisado no qual, com um lance monetário que não poderia ser suplantado, Augusto Matraga, fazendo valer a sua vontade de potência, arremata uma das raparigas, a qual como só tinha valor de objeto, sem uma existência plena como ser humano, e por ter o pescoço e as pernas finas, foi logo alcunhada pelo povo como Sariema, e não chamada pelo seu verdadeiro nome. Porém, o que vale para a vontade popular ser concretizada, o comércio das mulheres, os gritos e a apreciação por vezes do produto que estava a venda, com o uso do manuseamento, apertos e beliscões, se ter notícia do valor humano daquelas raparigas? Pela vontade popular estava tudo em perfeita harmonia. Todavia, ao contrário do povo que desfeiteava e tirava sarro delas, e Nhô Augusto que só arrematou a Sariema para se exibir e demonstrar seu poder, havia um capiau que só a chamava pelo seu nome verdadeiro, Tomázia, “porque para ele ela não era a Sariema” (ROSA, 1988, p. 9), pois estavam enamorados e fazia o possível para levá-la consigo no meio do burburinho daquela feira de corpos.

Note-se nessa esfera que mais uma vez o narrador deixa entrever a inversão de valores atribuídos ao modo como se estabelece cada uma das situações ocorridas. Se com a observação da cena grotesca representada pelo álcool em excesso, a violência dos presentes e o comércio de corpos, o leitor a conceba como adversa e desumana, é ali que surgirá um sentimento considerado puro: o amor. Por outro lado, na igreja pode estar havendo o comércio da fé, a extorsão sacralizada do dízimo e a ilusão apregoada pela religião em um nada, ou seja, há uma certa impureza contrária ao sentimento nobre do amor em um ambiente cujo sentimento deveria ser louvado. Portanto, se promove com isso uma inversão da representatividade do bem e do mal em cada situação descrita, já que no ambiente religioso da igreja tende-se creditá-lo como vigência do bem, e na cena do leilão o mundo vivencia o próprio mal, quando, na verdade, no contexto do conto, há o oposto desses sentidos. Mais uma vez o narrador quebra as expectativas do leitor quanto às relações dicotômicas entre o bem e o mal, o sagrado e o profano.

Para ressaltar mais ainda a inversão de valores presente no conto, note-se que o nome de uma das raparigas é Angélica, cujo valor significativo se refere à luz, a beleza, a bondade, por remeter ao angelical, à santidade, a sacralidade e a pureza virginal. No entanto, ela era a

prostituta “preta e mais ou menos capenga” (ROSA, 1988, p. 7), a que, quando manuseada pelos espectadores, falava “cacarejante: Virgem Maria Puríssima! Ui pessoal!”, (ROSA, 1988, p. 7) — de sua boca impura, porém, emanava o santíssimo nome da mãe de Jesus. Já a outra que era branca (signo que geralmente é remetido à bondade), é alcunhada como Sariema, por ser magra em demasia, e tinha o nome esquisito de Tomázia, que aparentemente não remete a nada relacionado com bondade. É essa rapariga branca que, mais adiante, mostrará sua “falha moral” — pelo menos para aquele que crer no amor. O leitor impregnado de valores dicotômicos de bem e mal poderia contestar o nome de Angélica dado à preta e o de Tomázia à branca, já que a cor racial está intrinsecamente ligada aos valores preconceituosos morais, porém o narrador, ou melhor, o próprio autor implicado, quer com isto, já desde o início do conto, sempre coadunar os valores para quebrar a dicotomia metafísica que seus leitores, por ventura, possam tecer.