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O confronto de forças e a Sariema como objeto da discórdia

2 O DIONISÍACO BÁRBARO: O PRIMEIRO MATRAGA

2.1 A PRESENÇA DO PROTAGONISTA E SUA HYBRIS

2.1.2 O confronto de forças e a Sariema como objeto da discórdia

Nesse contexto, portanto, há o confronto de forças da vontade de potência do todo popular em conflito com a vontade de potência individual do capiau, as quais estão embasadas em seus valores de bem e mal. Enquanto a multidão queria a farra dos corpos, pouco se importando com a existência das mulheres à venda, mas de acordo com a naturalidade situacional sempre vivenciada por eles, o amor que o rapaz passou a nutrir pela rapariga o fez individualizá-la e querer salvá-la daquela situação porque para ele “aquele povo encapetado não tinha [...] nenhuma razão de existir” (ROSA, 1988, p. 7). Da mesma forma a mulher deve tê-lo individualizado e, assim, não o via como um grupo de leões que queriam dominá-la, mas como um “anjo” que poderia lhe dar uma vida digna, pois o narrador afirma que “as coisas para eles pioravam, com o pessoal aos gritos” (ROSA, 1988, p. 7). Se a situação piorava para ambos é porque desejavam fugir juntos daquele contexto conflituoso, ou seja, a mulher correspondia aos chamados do rapaz e o povo ficava mais exaltado com o fato. Portanto, é devido à presença da Sariema como objeto em disputa que ocasionou todo o conflito de forças presentes àquela situação adversa, já que o mero fato da mesma dispensar sua atenção a um, em detrimento de outro, ocasionava a diminuição daquele que fosse relegado pela mulher.

Nessa esfera há um embate de forças, na medida em que o capiau exerce a sua vontade de potência sobre o povo, pois, é a partir do momento em que a rapariga branca retribui aos seus olhares que o resto da massa humana, formada por homens, se sente preterida e inferiorizada, excitando-os a desejar a separação do casal enamorado. E, para dar seqüência

ao cortejo dionisíaco naquele instante em uma noite remota do interior mineiro, a vontade deles integrada em Uma e em consonância com a força motriz, deveria prevalecer, pois era superior a do capiau na medida em que representavam o desejo do todo. É dessa comunhão da vontade que há uma integração dos presentes com a totalidade, a qual é a força motora que leva ao destino trágico. Portanto, a vontade individual não pode suplantar uma mais poderosa que a preceda. O capiau deveria ter levado isso em consideração e não ter tentado desafiar a força da vontade do todo. Todavia, pondo sua sorte em jogo, tenta levar consigo a mulher da vida. Por outro lado, Augusto Matraga, o qual, naquele instante no contexto do enredo acima descrito, harmonizava sua vontade de potência com a vontade popular, visto que o povo queria que ele arrematasse a Sariema, ao tomar conhecimento da tentativa de ser passado para trás por um mero capiau e percebendo que a rapariga retribuía ao chamado daquele ser inferior em poder, com uma escolta bem armada “separou-os com uma pranchada de mão” (ROSA, 1988, p. 9) encerrando “três pescoções” (ROSA, 1988, p. 9) no acuado capiau.

Neste cenário tem-se o macho dominante (Nhô Augusto) sendo preterido por um mais baixo em hierarquia (o capiau), e os outros machos observando a luta dos pretendentes (o povo) pela fêmea que é o objeto da discórdia (a Sariema). Em uma sociedade machista do interior mineiro o desmerecimento da envergadura senhoril devido à preterição da fêmea por outro homem é motivo de vergonha e desonra pelo fato de se ter o poder diminuído com a situação adversa proporcionando uma razão para se conjecturar uma vingança contra os causadores de tal estado de prejuízo da vontade. É devido a tanto que Nhô Augusto desfere um ataque sobre o seu rival pretensioso, que não respeitou o seu território e sua força, com toda a violência necessária até o momento em que a fêmea fosse tomada como propriedade dele e, assim, a vergonha fosse apagada e sua vontade de potência exercida.

Tomada a Tomázia como sua, mas ainda não satisfeito com a vitória, a surra e a humilhação impingidas ao capiau, Nhô Augusto, “apertava o braço da Sariema, como quem não tivesse tido prazo para utilizar no capiau todos os seus ímpetos” (ROSA, 1988, p. 10), afinal como ela pôde preferir partir com aquele simples capiau, ao invés de querer ficar ao lado dele, o macho dominante? Devido a tal atitude da rapariga, bem como por não ser fisicamente atraente, e ter “perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que é só o osso, peixe cozido sem tempero” (ROSA, 1988, p. 11) ʊ de acordo com a fala do próprio Augusto Matraga; enxota a Sariema com um empurrão, deixando-a perto de uma casa de prostituição. Claro que não é somente pelo estado físico da rapariga, que talvez nem fosse como ele a descreveu, que ele a trata como um zero à esquerda, mas por ela ter menosprezado um homem de sua posição social em favor do capiau: tudo se trata de raiva e vingança devido

a vaidade de macho ferida e, principalmente, ao poder desafiado. Decerto, o leitor se comove com a cena e se sente inclinado a apoiar o casal de namorados que fora impedido de se unir, porém, a verdadeira intenção da Sariema virá à tona em breve.

É assim que se dá a primeira aparição do protagonista como se fosse uma energia pura e insolente que se precipita em sua vontade de potência auto-afirmativa contra todos os que se interpõem em seu caminho. Sua força reside em sua natureza ontológica guerreira que trata tudo como se fosse um confronto de energia para que se sobressaia a mais potente. Decerto que uma força que se impõe sobre as outras acabará por causar uma reação contrária. Do conflito entre ação e reação se entremeia a vingança que é a bala na agulha, a qual prontifica a ação de execução da vontade de potência dos envolvidos nos conflitos de forças. De uma força que se afirma sobre as outras, mais ainda do que a vontade de vingança, sentimentos retroativos como a culpa e o ressentimento são ativados naqueles mais fracos em potência.