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1 INTRODUÇÃO

1.1 ANÁLISE DA FORTUNA CRÍTICA IMPRESSA

1.1.5 Roberto DaMatta

Muito embora se tenha certeza sobre a pertinência das especulações que serão expostas, a leitura que se propõe não tem a pretensão de substituir as vigentes, afinal há várias possibilidades que se mostram passíveis às leituras diversas. Não só uma leitura de perspectiva religiosa, mas também uma de cunho psicológico, antropológico, ou social marxista também estão implícitas no texto. Por exemplo, há uma leitura feita por Roberto DaMatta em Augusto Matraga e a hora da renúncia, presente em seu aclamado livro Carnavais, malandros e heróis (1979); no qual o autor pretende fazer uma espécie de etnografia de um tipo humano do cenário social brasileiro, muito embora seja a partir de um personagem fictício, que se situa:

para usar a expressão de Guimarães Rosa, na ‘terceira margem do rio’: na linha dúbia que separa a sociedade e seus trajetos sérios e ‘corretos’ dos seus porões escuros, sujos e interessantes, onde jaz o mistério da desordem, da alternativa, do futuro e, muito provavelmente, daquilo que chamamos de esperança. (DAMATTA, 1997, p. 306).

Tal estudo, o qual objetiva mostrar um certo tipo de posição social que não está bem estabelecida, pois foge às normas ditames da sociedade vigente, tem na figura do renunciador o emblema sociológico a ser desvendado. Augusto Matraga é o protótipo mostrado como um ser que vive à margem, que transgride a praxe social devido ao seu comportamento incomum, que se desloca da posição de detentor do poder em direção da camada social humilde e subserviente. Contudo, o motivo pelo qual acontece esse deslocamento ʊ o atentado contra a sua vida, o arremate de seus bens pelo seu inimigo político, e a perda da família; não se tornam razões para uma vingança contra a nova ordem que se estabelece em sua vida. Ao contrário, Matraga, renuncia tal vingança em nome de um projeto maior que seria fazer parte do mundo cristão, ser aceito no além-mundo, no Paraíso Cristão.

Apesar de ainda suportar a tese de que o personagem renuncia à vingança no intuito de fazer parte do mundo cristão, a leitura feita por DaMatta investiga temas importantes no conto como a renúncia, a vingança e fatores sociais que constituem marcas importantes para se entender o universo do conto e do personagem. Considerando o fato de que DaMatta não é um crítico literário, seu trabalho se torna superior a certas passagens encontradas na crítica literária brasileira sobre AHVAM, o que ameniza sua interpretação ainda arraigada a certos requerimentos cristãos. Muito embora não se sustente aqui a ambição de caráter religioso do personagem, as especulações presentes no texto do antropólogo são úteis por incitar no leitor um questionamento sobre a possibilidade de Augusto Matraga ser um renunciador ou um vingador atípico.

Não seria a renúncia uma espécie de vingança diferenciada? Ou seria a renúncia uma total negação da vingança e da violência de qualquer tipo? Considerando-se a violência estabelecida no confronto final entre Matraga e o grupo de jagunços liderados por Joãozinho Bem-Bem, não se pode nem afirmar que o personagem se dá a uma renúncia completa, nem a uma espécie de “vingança pacífica” porque, no caso do confronto final, a violência é posta em prática mesmo sendo em nome da pacificação (ou não).

Só se pode considerar que a vingança é posta em prática quando a violência se faz presente? E, no caso da renúncia, só se faz sem a presença daquela? Sobre o assunto afirma DaMatta, “a vingança acaba por afirmar a violência básica e pessoalizada da ordem social, a renúncia rejeita essa violência institucionalizada e reificada como algo natural, pondo em cena as possibilidades de caminhos alternativos” (DAMATTA, 1997, p. 332). Certamente a renúncia é uma espécie de “caminho alternativo” para se construir uma situação em que a violência pela violência não se faça necessária, porém a renúncia não poderia ser considerada uma forma alternativa de vingança? O antropólogo parece acenar positivamente a esse questionamento quando afirma que há:

dois modos básicos de vingança: aquela que se realiza por meio da astúcia, como o ridículo servindo como arma principal, (...); e o outro modo de vingança que se faz pelas armas e por meio da destruição física, forma mais forte de reação que tem sido atualizada no caso do nosso banditismo social. (DAMATTA, 1997, p. 333). Se há a possibilidade de uma vingança através do ridículo em que não se faz necessário o uso da violência direta, acredita-se que a renúncia de Matraga pode ser considerada como o seu caminho alternativo para se vingar da situação em que o desenrolar dos fatos o submeteu. Decerto que ele renunciou a violência banal, apesar de ser através dela, convertida em “boa” causa, que consegue seu intento. Mas, acredita-se que a sede de vingança sempre lhe foi natural, sendo através da pretensa renúncia que ele conseguiu a sua vingança. Portanto, todos os questionamentos levantados a partir da leitura do texto de DaMatta são importantes para se perceber que há um metacomentário, em AHVAM, a respeito de vingança e renúncia. E esse será um dos pontos que serão discutidos aqui no afã de restabelecer a ânsia de vingança que tem o personagem (no contexto de sua vontade de potência), de reconquistar a sua moral de guerreiro poderoso antes abalada pela disposição dos fatos. Salientando-se que tal vingança não é semelhante a de alguém que guarda em si, com rancor, o mal que outrem lhe fez, envenenando sua mente com o desejo de vingar seu ego ferido. O personagem se mostra diverso de um ser rancoroso devido aos infortúnios da existência. Todavia, sabe-se que a interpretação de que o personagem renunciou à violência em nome de um projeto metafísico

de caráter religioso também são possíveis de se conjecturar. Levando em conta as aberturas interpretativas que o conto oferece, não se pode afirmar inequivocamente, como o fez Walnice Nogueira Galvão, que só há uma possibilidade de leitura.

Tem-se, então, como propósito nessa dissertação, mostrar (revelar), diferentemente de provar, que tal leitura nietzscheana é possível e há tempos jaz adormecida nas entrelinhas do conto. Trata-se de uma averiguação do que vige por traz do aparentemente vigente no personagem. Propõe-se que se aceite uma realidade justaposta a uma outra que primeiro se fez presente, e que tanto tem sido divulgada, em detrimento da outra. Para se entender melhor tais realidades justapostas, imagine-se que existe um conto dentro do conto, uma estória dentro da estória, um enredo dentro do enredo, um personagem dentro do personagem, e a Crítica só tem levado em conta um dos elementos reconhecíveis em cada setor: considerando o conto como religioso, uma estória pia, um enredo de redenção espiritual e um personagem “santo”, apesar de violento, em detrimento de considerá-lo como um conto pagão8, uma estória trágica, um enredo de desenvolvimento humano, e um personagem nobre, no sentido nietzscheano, com toda a violência que lhe é natural.

O jogo é posto a partir da linguagem e ações de Augusto Matraga, que estão sempre encobertas pelas suas atitudes aparentemente cristãs. Mas, certamente não é tão simples chegar-se a uma conclusão, pois se lidará com o imponderável humano, com a subjetividade do personagem construto do autor, muito embora o conteúdo do texto deixe claro a pertinência das especulações que aqui se estabelecerá.