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3 O APOLÍNEO CULPABILIZADO: O SEGUNDO MATRAGA

3.1.3 Um pacto lavrado com a promessa de Matraga

Poder fazer promessas é um traço fundamental do ser humano. Empenhar sua palavra como força propulsora de uma realização futura em favor de algo, alguém ou de si mesmo, faz do homem um ser que se propõe a enfrentar as adversidades as quais possam surgir devido ao empenho em favor de um comprometimento com determinada coisa e com a finalidade contida na razão de sua promessa. Todavia, ter a capacidade de manter uma promessa, ou mesmo cumpri-la, não é tarefa para qualquer um. E mesmo as diversas formas de promessas, pressupõem certos fundamentos que as revestem de características mais nobres que outras, tornando-se, ou mais fáceis, ou mais complicadas se atingir o seu objetivo. Decerto que se pode prometer o que quiser e para quem quer que seja, porém a promessa de algo a si mesmo parece ser a mais árdua, destarte a mais nobre de se cumprir por sugerir daquele que se empenha a tanto, ser ele mesmo aquele de quem será cobrado o preço pelo fracasso do ato prometido. Culpar alguém pela falha em se manter a palavra dada como promessa é fácil, porém quando o culpado pelo próprio ato de não se conseguir mantê-la é aquele que se

comprometeu consigo mesmo, se tem a materialização do fracasso mais difícil de ser absorvido: a fraqueza pessoal para cumprir o que se traçou para si mesmo. Ter a coragem de assumir a vida como propriedade sua, reinar com sua vontade própria e empenhar a palavra para o desenlace ou resgate de sua própria vida pode se tornar uma tarefa muito difícil de ser cumprida pelo homem.

Eis aqui uma peculiaridade em Augusto Matraga que o faz semelhante ao que foi dito sobre aquele que se compromete consigo mesmo, no afã de exercer sua vontade de potência em qualquer situação adversa. Muito embora o personagem espere em Deus sua vitória, ele não se torna um passivo diante dos fatos existenciais que se sobrepõem como barreiras contra sua força. Pelo contrário, ele cria um ideal para si, fazendo dele uma razão para continuar vivendo e motivando a sua tão esperada hora e vez. Se a vida, ou Deus, lhe tinha reservado aquela existência debilitada, sem confrontos, através dos quais pudesse extravasar seus instintos de domínio lhe resta a batalha metafísica para ser aceito no Paraíso cristão. Enfraquecido que estava, atordoado pelo sentimento de culpa que o afligia, porém sem ressentimentos, afinal não rumina maus pensamentos até envenenar o corpo e degenerar a consciência, isso é coisa para os ressentidos, os seres inferiores, os quais mostram com tal atitude a superioridade do inimigo que o faz se enclausurar acuado em sua fraqueza de potência. Augusto Matraga procurará uma forma de dar sentido a sua vida desarranjada pelas fatalidades. Ao que tudo indica, o cristianismo, nesse sentido, cumpriu o seu papel de resgatar uma alma a qual se sentia prejudicada com a situação adversa em que se encontrava — resta saber se isso terá um efeito saudável para o personagem e para a vida em-si — ao que tudo indica, pelo menos com relação à passividade e ao envenenamento da alma, não foram cumpridas tais conseqüências nefastas ao seu Ser, e isso não foi graças à religião, mas aos mecanismos internos de construção do personagem, o qual carrega consigo valores ontológicos incompatíveis com o cabresto moral religioso.

De qualquer forma, Matraga é incitado a encontrar na moral cristã um meio de regenerar suas angústias e refrear seus instintos tidos como não quistos e contrários à vontade divina. Não obstante, se Deus é o Credor que vem reclamar do devedor obediência ao contrato fechado no dia do seu nascimento ou assim que Matraga se deu conta de sua existência; em outras palavras, se há uma necessidade de seguir certos preceitos em concordância com uma força superior à sua, o personagem fará o possível para se enquadrar à nova perspectiva para pagar o que deve. Portanto, para restituir sua vida com base em um objetivo a ser cumprido,

Matraga faz um pacto26 com Deus de pagar a dívida que lhe estava sendo penosamente cobrada. Muito embora não esteja explícito no conto tal pacto, não há como negar que o personagem se sentia em dívida com o seu Credor e buscará uma maneira de pagar a sua dívida, mesmo que seja sacrificando a sua própria existência em nome Dele. O irônico disso tudo é que Matraga não tinha consciência da dívida metafísica — nem mesmo do “pecado original”; ela só fora despertada com o castigo que recebeu — o qual pode ser reconhecido como uma espécie de queda do Paraíso; e a conseqüente culpabilização do ato cometido contra o Credor. Sua consciência vagava ativamente e livremente sobre o Sertão mineiro, tal qual um alazão solto em pastagem inabitada. Mas agora que tem consigo tal sentimento de culpa, sua consciência recebe uma carga negativa, aprisionando o alazão em um cercado com pastagem rala, somente para sua sobrevivência. E o pior de tudo é ter que se sacrificar por um projeto que não fazia parte de sua ideologia e ontologia originais.

Entretanto, é muito notório que as atitudes do personagem com relação à ideologia cristã são corrompidas devido à sua personalidade e em beneficio próprio, do que simplesmente devido a uma ambição de pagamento da dívida e a conseqüente ascensão espiritual. E esse é o ponto em que ele difere de um cristão comum e o motivo principal da polissemia interpretativa sobre o âmbito de sua natureza ontológica.

Como exemplo de uma leitura bifurcada sobre o personagem, tem-se a sua postura diante de seu enfraquecimento físico e a vontade de ser aceito por Deus. No momento em que pergunta a sua mãe preta, “— desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu?!” (ROSA, 1988, p. 27), não estaria o personagem imaginado Deus como uma força que poderá subjugar e julgar a sua como inferior? Quando Matraga questiona se a permissão para ser aceito por Deus se deve a hombridade, antes perdida no confronto com o Major Concilva e seus capangas, não é uma característica que o diferencia de um cristão comum?

Sabe-se que o único requerimento para se adentrar ao mundo espiritual é a fé e o arrependimento dos pecados. Portanto, por quê o receio de não ser aceito devido a uma fraqueza física? Ao que parece o personagem tem vergonha de sua condição enfraquecida, sem a vontade de potência afirmadora que antes o comandava, e não acha que seria bem

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Enquanto Riobaldo fez um pacto com o Demônio (muito embora não soubesse se o tinha feito realmente) considera-o como outorgado quando experimenta uma força intelectual nunca antes sentida, fazendo-o quase aceitar que fosse obra do Demônio. Da mesma forma, Matraga fez um pacto com Deus também não tendo certeza de sua outorgação. Não obstante, a partir do momento em que sua força física é recuperada, acredita que o contrato tinha sido executado. Disso se conclui que ambos os personagens só acreditam no acordo fechado, quando experimentam os efeitos da força agindo em sua mente ou corpo, não importando tanto o agente da ação:

quisto por alguém tão poderoso como o era o Deus ao qual agora se submetia. Matraga parece encarar sua aceitação no Reino Divino como se fosse o processo de uma apreciação por um jagunço chefe (Deus) para averiguar o quão robusto é a força daquele que pretende se integrar ao Seu bando, e se terá capacidade de conviver em um ambiente onde só habitam seres de supremo poder, afeitos às batalhas homéricas nas quais a violência deveria imperar. Ao invés de simplesmente ter fé em sua salvação e seguir com suas reflexões, Matraga age como um ser que não admitia sua condição de fraqueza física quando diante dos poderosos jagunços etéreos religiosos, os quais imaginava que seriam os integrantes do céu. Todavia, sabendo que não poderia demonstrar essa sua natureza, de certa forma, narcisista com relação à sua força, já que o padre tinha lhe dito que a suprimisse, seria necessário viver numa aparência que o fizesse crer que não havia tal interesse de medição de forças entre ele e os anjos do céu, bem como refrear o orgulho demasiado em decorrência da vontade de potência. Nesse novo contexto pactual com Deus, algumas mudanças seriam necessárias em sua vida para poder pagar sua dívida e recuperar seu alforje de guerreiro. E é devido a tais necessidades que acaba modificando algumas concepções com relação aos pré-requisitos para ser tido como um verdadeiro cristão. Ou seja, de acordo com a sua vontade, ele aceita a moral religiosa, porém age de uma forma distinta da de um cristão comum exatamente por não aceitar a fraqueza que o ascetismo impõe.

Distorcendo ou não a religiosidade, percebe-se que o personagem acreditava realmente na salvação de sua alma — ele vive a aparência como se fosse a verdade. E concebe sua vida como um grande jogo de forças, na qual tudo tinha um preço a ser pago e uma dívida a ser coberta. Tendo, ou não, feito parte do comércio religioso de almas: a doação e o dízimo; ele crê que haveria, não o dia do Juízo Final, mas o dia do pagamento final, e aquele que demonstrasse mais força seria “salvo”. Assim, ele estabelece para si uma maneira de pagar pelo que fez. Seu ideal será fechar a dívida com o seu Credor para, em seguida, poder estar de cara limpa quando for encontrá-lo, recuperado plenamente em sua vontade de potência. Por isso é que faz simbolicamente o pacto com Deus, como se fosse uma espécie de remanejamento da dívida original, através do qual Matraga tem um novo prazo e dia de vencimento para o pagamento, acrescida aí juros devidamente cobrados com correção monetária. Estando novamente com crédito na praça e seu nome fora da lista dos maus pagadores do banco das almas, afinal ele já se enquadrara à moral cristã, “espantava as idéias tristes, e, com o passar do tempo, tudo isso lhe foi dando uma espécie nova e mui serena de

o agente (Deus e o Demônio) só existe enquanto força que age sobre a matéria, não sendo preponderante para a crença em sua existência, mas sim o seu efeito.

alegria” (ROSA, 1988, p. 23) — o elemento apolíneo foi agindo mais vigorosamente, os anticorpos já controlavam a alergia febril do personagem.

A medida em que sentia os primeiros efeitos do pacto sendo concretizados, ou seja, “quando ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o preto fabricara” (ROSA, 1988, p. 23), cria mais na possibilidade do acerto de contas com o seu Credor. Assim, para seguir o seu destino, decidira mudar do brejo onde esteve convalescente e ir para longe. Lembrou-se de um sitiozinho perdido que comprara mais nunca estivera lá para apreciar o produto adquirido. Como tinha perdido todos os seus bens materiais, os quais haviam sido hipotecados e em seguida arrematados pelo seu adversário político, o Major Concilva, só lhe restava mesmo esse lugar insólito perdido no “sertão longínquo” (ROSA, 1988, p. 23), do qual ninguém sabia a existência.

Saíram, então, o protagonista e o casal de pretos, à noite para não chamar atenção, pois a mudança seria mais uma fuga do que uma viagem de lazer. Chegando no meio do caminho, — no qual não havia uma pedra, mas algo pior: uma cruz para carregar, “se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braços em cruz, e jurou: — eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete” (ROSA, 1988, p. 23). Feita tal promessa e com o ideal em mente, segue rumo em direção ao que Deus designará para ele — ou o que concebera para si mesmo?

O personagem experimentará daqui por diante um período de recuperação e intensificação da vida resolvida em meio à aparência criada para si. Como foi dito, é devido à cura da doença existencial que o homem pode vislumbrar uma nova vida intensificada com o embate dos elementos dionisíaco e apolíneo: o advento da visão dionisíaca; ou se fechar em um mundo de aparências para seguir navegando calmamente no seu barco existencial, crente que os enigmas estão resolvidos a partir da cura da doença. O elemento apolíneo tanto pode resgatar o Ser febril como pode incitá-lo a uma vida inócua, baseada numa ilusão que cria para si mesmo.

Desde que Matraga fora a duras penas individualizado enquanto ser responsável pelos seus atos, e que deveria obediência a um Deus que lhe é superior, acredita que foi a sua falta para com Ele que resvalou naqueles contratempos todos. E, em vias de recuperação parcial da surra que tinha levado, sente que Deus está lhe dando uma chance de se redimir, ou seja, é devido aos efeitos da cura da doença que passa a concebê-la como obra da misericórdia divina. Como sempre há um interesse em jogo: só começou a crer no pacto quando percebeu os seus efeitos — o que conta é o efeito e não propriamente o agente da ação que o ocasiona. No caso do personagem, só criou a ilusão apolínea, quando pôde perceber o efeito da cura, a

qual seu corpo experimentava: a ilusão é criada com a ação da cura, que por sua vez é entendida por ele como obra de Deus, materializando para o protagonista um agente exterior para o efeito conseguido em seu corpo. Muito embora possa parecer que ele cria realmente em toda a nova ideologia que lhe foi concedida como meio de salvação, trata-se, na verdade, de uma ilusão que criou para resgatar sua força. Mesmo através do sistema retroativo religioso o personagem buscará, a partir de suas interpretações pessoais, condições que lhe favoreçam o aumento da potência.

Foi assim que pactuou com a vontade divina e passou a acreditar mais incisivamente na salvação, a idealizar uma vida baseada no ascetismo, e prometer para si mesmo que havia de ir para o céu, nem que fosse a porrete. Note-se que em sua promessa não há a expressão “se Deus quiser”, mas sua ida para o Paraíso depende de sua ação, de sua vontade e não da passividade ociosa e estática que aguarda o milagre divino — aqui ele não remete a um agente externo o efeito de sua vontade. Decerto que ele conseguiria o que procurava porque Matraga, devido a sua natureza valente, é um ser que pode manter as promessas, que pode cumprir com o prometido sem ter medo dos contratempos e de uma possível derrota. Muito embora pareça que ele dependa da misericórdia divina, validando a ação da força de Deus sobre a dele, a sua promessa é pessoal e nobre, pois ela é feita a si mesmo em conseqüência de um ideal a ser alcançado: ele mostra com essa atitude sua vontade de potência sobre Deus, a superação do medo causado pelo castigo, mesmo na fraqueza. Apesar de ser advertido pelo padre sobre a necessidade do coração mansinho, afirma que vai para o céu por bem ou por mal, ou seja, com ou sem violência, com ou sem castigo. Ele já sente uma necessidade do gosto do sangue, mesmo pacificado pela moral e restrito em sua potência física.

Seja como for, sua vida agora se resumiria a um modo de conduta que o mantivesse reto em seu propósito — sob a ilusão em favor do resgate de sua própria força ele agirá de acordo com a religião e o pacto empenhado para conseguir cumprir a sua vontade de potência através de sua promessa. É por isso que durante um certo período, se deixará enganar pela ilusão de uma vida ascética sem a presença dos instintos dominadores, muito embora sua retroação, a qual lhe fora imposta sob o signo do castigo, tenha a intenção de domínio ativo.