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A vontade de potência como fonte da vingança por via de justiça

2 O DIONISÍACO BÁRBARO: O PRIMEIRO MATRAGA

2.1 A PRESENÇA DO PROTAGONISTA E SUA HYBRIS

2.1.3 A vontade de potência como fonte da vingança por via de justiça

Em todos os confrontos pessoais descritos há as forças motivadoras presentes em cada ato. Além do embate entre os elementos apolíneo e dionisíaco, tem-se a vontade de potência de cada personagem e os conflitos entre as forças da consciência individual e da totalidade universal, ou seja, de tais conflitos, são geradas as vinganças, os duelos ou pacificações, os culpados, ressentidos e inocentes, as vítimas e os criminosos, os orgulhosos e arrependidos, a vontade de se fazer valer uma ânsia por domínio e uma força motriz inexplicável que está no âmago de todos os conflitos14.

É devido a tanto que agora se evidenciará a presença desse sentimento que ocorre quando um dos envolvidos em uma contenta se acha prejudicado e incita um desejo de revanchismo contra aquele que lhe causou o dano.

Eis aqui um tema que é central em AHVAM, a saber, a vingança inspirada pela vontade de potência. Observa-se que todas as ações dos personagens têm uma ligação com algum tipo de vingança. Pode-se até considerar que há uma espécie de metacomentário sobre o tema presente no conto. Se não, como explicar a voracidade do personagem contra o capiau, bem como tantas outras ações que se desdobram na narrativa? Entretanto, há de se compreender os motivos, finalidades e efeitos da vingança para fazer valer sua abrangência significativa.

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Os conceitos sobre as diversas formas de forças e vontades descritas até o momento serão explicadas no decorrer da dissertação.

Relacionado a tal temática, quando se leva em consideração a vontade de potência individual de cada personagem, existe um contexto mais amplo que extrapola o valor significativo de vingança, fazendo com que a compreensão de seu significado seja ampliada e que precisa ser mencionada para se entender melhor o que será exposto. Desse modo, para se penetrar em seu âmbito é necessário que se recorra aos conceitos explorados por Nietzsche em Genealogia da moral, no qual o filósofo procura interpretar o que seja “má consciência”, a qual é proveniente do conceito de “ressentimento”, o qual é gerado pela “culpa”, que, por sua vez, está ligado ao conceito muito material de “dívida”. Para se chegar à motivação central da vingança e sua dimensão significativa, tais conceitos devem ser abordados para uma compreensão adequada das diversas formas com as quais determinada vingança é estabelecida no conto.

Feita essa preleção, imagine-se uma relação comercial na qual há um credor que fornece um bem ao devedor e espera desse a restituição do bem fornecido por meio de um contrato que obriga o devedor a pagar o que lhe foi solicitado. No caso de não haver o cumprimento do que reza o contrato, o devedor está fadado a ser castigado, ou nos ditames modernos da lei, sendo julgado e condenado juridicamente, ou, de acordo com os tempos primitivos, através de uma compensação pessoal de qualquer forma, na qual o credor se sinta restituído pelo dano causado pelo devedor. Nesse contexto de relações comerciais, Nietzsche afirma que o homem começa a fazer “aquelas distinções bem mais elementares, como ‘intencional’, ‘negligente’, ‘casual’, ‘responsável’ e seus opostos, e a levá-las em conta na atribuição do castigo” (NIETZSCHE, 1998, p. 52).

Assim, é o infrator do compêndio reconhecido como criminoso, como uma má pessoa, o qual faz brotar em si o ressentimento, o remorso e a má-consciência pela culpa jogada sobre si, cabendo ao mesmo sofrer as conseqüências pelo dano causado, as quais devem ser reparadas com algum castigo, o qual, em tempos idos (ou não), pode ser simplesmente fazê-lo sofrer através da dor física. A partir de uma “satisfação íntima” o credor pode livremente “descarregar seu poder sobre um impotente” (NIETZSCHE, 1998, p. 54). E dependendo da classe social, no caso do credor fazer parte de uma camada social mais baixa do que a do devedor, o gozo pelo castigo imposto pode fazer com que participe de um

direito dos senhores; experimenta em fim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como ‘inferior’, [...]. A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade. Nesta esfera, a das obrigações legais, está o foco de origem desse mundo de conceitos morais: ‘culpa’, ‘consciência’, ‘dever’, ‘sacralidade do dever’. (NIETZSCHE, 1998, p. 54).

Dessa forma, concedido o direito de se exercer a crueldade, muito embora, a crueldade em si não precise de convite para sua materialização. De acordo com o filósofo, ela é mais uma das facetas da natureza humana e por muito tempo foi uma atribuição nas medidas de valor, entre as quais o fazer-sofrer era um prazer experimentado por toda a civilização — vide as batalhas organizadas no Coliseu15, nas quais o povo as assistia com alegria e excitação ao presenciar o jorro de sangue decorrente dos jogos com mortes humanas ou o massacre e tortura de animais. Do júbilo experimentado pelo prazer da crueldade com a vontade do fazer-sofrer, o prejudicado, em determinada transação, obtém uma compensação pelo prejuízo causado pelo devedor convertendo o “desprazer pelo dano, por um extraordinário contraprazer: causar o sofrimento” (NIETZSCHE, 1998, p. 55). E o prazer é mais satisfatório se for aplicado por alguém de uma camada inferior sobre outro mais abastardo, pois aquele participará de um “direito dos senhores”.

Todavia, um senhor ser rebaixado por alguém proveniente de uma camada social inferior, é uma vergonha maior ainda do que o contrário. Eis porque Augusto Matraga se sente tão menosprezado em sua força, em sua vontade de potência, por ter sido preterido pelo capiau e por perceber que a sua mercadoria (a Sariema), a qual tinha sido devidamente arrematada no leilão, estava sendo-lhe tirada das mãos por alguém cuja potência inferior não fazia parelha à sua força de macho dominante.

Até aqui foi descrita a vontade de potência como causa motivadora das transações em que alguém empenha uma propriedade para ser restituída mais adiante, ou seja, o credor experimenta um certo poder sobre o devedor. No caso de prejuízo, o credor se sente diminuído em sua vontade de qualquer que seja a sua natureza, monetária, física, amorosa, psicológica, etc; cabendo-lhe, portanto, procurar um meio de se vingar do devedor da forma que lhe aprouver, da maneira que possa ser saciada a sua sensação de prejuízo, ocasionando com isso um convite à vingança e à crueldade para exercer uma espécie de justiça pessoal. É por isso que Matraga recorre à violência para não lhe ser arrancado o direito de posse sobre o objeto adquirido, bem como devido à sua potência diminuída — sua vingança não trata de ressentimento, mas de restituição pelo dano que lhe foi causado.

Todavia, o que o personagem não sabia era que já havia um contrato entre aquele casal de enamorados. O amor já brotava entre eles e uma promessa lavrada com olhares e carícias já tinha empenhado a rapariga ao capiau em sua vontade de potência afetiva, no plano das relações amorosas. Como empecilho havia a propriedade do leiloeiro sobre a pobre Sariema, o

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povo que queria que ela fosse comprada e, em seguida, seu arremate por Matraga. Porém, por outro lado, não seriam as pessoas livres e donas de suas individualidades? Merecia mesmo a rapariga ser retirada do seu direito de escolha? Quem está certo nessa questão? A quem deve ser jogada a culpa e a má-consciência pela infração da lei? Não é o amor o sentimento que deve prevalecer sobre atividades comerciais tão condenáveis quanto o comércio de corpos?

Não obstante, quem é dono da situação é o senhor Augusto Matraga, aquele que tudo pode e que não tem piedade para com os fracos. Ele está ali para fazer exercer a sua vontade de potência acima de qualquer barreira que a ele se sobrepusesse. E além de tudo havia a vontade popular que queria ver o circo pegando fogo. Assim, estava armado o palco para a apresentação da força bruta do bárbaro Matraga sobre a situação ocorrida. Diversão perfeita para uma multidão afoita, ansiosa pela crueldade, e que desejava assistir de camarote qualquer desentendimento que acontecesse. É por isso que quando se dá a vingança do poderoso Augusto contra o pobre capiau, um desassossego toma conta da multidão em busca de um ângulo que desse melhor visão para o confronto: “a agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido, apreciando, como estavam, uma falta-de-lugar que se dera entre um velho” (ROSA, 1988, p. 9). E se perguntavam o que tinha ocorrido naquele ínterim, ao que o narrador responde da seguinte forma, “foi o capiauzinho apanhando estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô Augusto, e empurrado para o denso do povo, que também queria estapear” (ROSA, 1988, p. 10). — Note-se a aproximação do desejo do povo em presenciar e querer participar da crueldade com o contexto grego-romano da época das batalhas realizadas no Coliseu.

Note-se ainda, que por ter desafiado a vontade do todo, da multidão, a qual, naquele momento, ainda tinha a seu favor a vontade de potência de Matraga, o capiau fora surrado tanto pelo povo quanto por Matraga e seus capangas, sendo este o seu castigo pelo ato desafiador. Contudo, quem é o culpado naquele confronto? Quem merecia o sofrimento? Seria o povo que queria ver o circo pegando fogo, o capiau que cometeu o crime de se apaixonar, ou Matraga que não foi capaz de perdoá-lo pelo intento? Ou será que havia realmente um culpado?

No exato momento do confronto, para o povo presente, a crueldade a que ansiavam está em perfeita harmonia com o que Nietzsche afirma, citando Baruch Spinoza (1632-1677), sobre a sympatia malevolens (simpatia malévola), a qual era um “atributo normal do homem” (NIETZSCHE, 1998, p. 55), e, através da qual, não se podia culpar o povo pelo ocorrido, pois

no ato da crueldade festejam ingenuamente sua existência, fazendo valer a sua vontade de potência naquele instante16.

Com relação ao protagonista, levando-se em consideração que o comércio livre de mulheres é aceitável no contexto do conto e que Matraga pagou o preço justo para ter a sua mercadoria, a justiça parece estar ao seu lado e o capiau parece ser o criminoso que queria lhe causar um dano material sendo, portanto, merecedor do castigo que lhe foi aplicado. Todavia, da perspectiva do infrator, o “amor” que sentia e a vontade de poder vivê-lo em liberdade ao lado da Sariema, inverte sua culpa para Matraga — provavelmente o leitor conclua que o amor deveria prevalecer naquela situação, absolvendo, portanto, o capiau de sua culpa. Nesse entremeio de se saber quem é o culpado, surge a vingança que só é levada a cabo por aquele que se sente prejudicado com a situação. Como foi posta por Augusto Matraga, isso significa que ele se achava no direito de cobrar de quem está lhe causando algum dano — porque tudo indica que a vingança é concretizada por quem se sente no prejuízo. Apesar disso, ao que parece, foi o capiau, em todos os sentidos, o mais danificado com aquele ocorrido, merecendo ele ter conseguido viver ao lado da rapariga. Contudo, apesar de não ter tido sucesso em sua empreitada, ele terá a sua vingança porque também foi prejudicado e, como se diz popularmente, “a vida escreve certo por linhas tortas”.

O que se percebe de tudo que foi dito é que a vingança tende a ser concebida como um meio de se fazer justiça; porém, em si, ela só leva em consideração o ponto de vista daquele que se sente imediatamente prejudicado, tornando-se, assim, uma justiça pessoal e parcial, a qual não estabelece as nuances do que concerne à razão do vitimado. Por isso, faz-se questão de enfatizar que há vontades em jogo que querem se assenhorear de determinada situação, pretendendo criar um contexto favorável para si, de acordo com a motivação central de seu exercício. É dessa forma que são criados os confrontos a partir do surgimento dos credores e devedores e as vinganças impetradas pelos prejudicados em tais relações. Entretanto, há a força natural de potência universal que confabula para a superação de si mesma através desses mesmos pequenos confrontos diversos. Ao que parece, quando a vontade de potência individual é carente de atributos que possam contribuir com as forças motoras da vontade universal do todo, essa trata de estabelecer meios de arranjar a força individual discordante em consonância com a vontade de vida plena que almeja ou então a elimina. No caso do capiau sua vontade não comungava com a força do todo por representar uma barreira à

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Vele salientar que mesmo hoje se percebe essa sympatia malevolens na medida em que corpos são despedaçados em meio às ferragens automotivas e estrebucham no asfalto das cidades, proporcionando catarse a céu aberto, aperitivo essencial à sede de crueldade e a empatia com a dor alheia que sente o povo.

efetivação do cortejo dionisíaco, daí ela ser impedida de ser exercida naquele momento e ser remanejada para que lhe seja permitido uma compensação em um futuro breve, quando a exercerá contra o seu algoz, porque mesmo sua força sendo discordante, é necessária à sistematização do desfecho trágico.

Analisando o conto e a vitória do protagonista sobre o capiau, pode parecer que as forças do todo apóiem a atitude do vencedor, sendo ele, portanto, o prejudicado e o capiau o causador do dano, ou seja, o culpado, porém a Vida, expressa através da trama do conto, mostrará por caminhos diversos que aquela situação é apenas uma entre as séries de acontecimentos que desaguarão na resposta para as atitudes desaforadas do protagonista: as forças motoras da totalidade não o pouparão do castigo que lhe aguarda. Na verdade, as forças de potência motriz natural e universal, só ambicionam a vida em plenitude, por isso mesmo não são favoráveis a alguém em especial — elas estão além do bem e do mal (fato este que desvaloriza a justiça como meio imparcial de avaliação de conflitos de forças). Não obstante, as relações das forças promovem o devido acerto de contas quando necessário, dependendo de sua própria vontade de potência estar em consonância com a vontade do todo. Ou seja, não é cabível julgar alguém e impor uma culpabilidade a quem quer que seja, se não se levar em conta a vontade de potência, porque é sob sua perspectiva que se pode exercer a “justiça poética” em todas as situações analisadas.