• Nenhum resultado encontrado

Alberto Vieira

1. A economia da ilha e o Atlântico

Nos séculos XV e XVI, as ilhas e arquipélagos firmaram um lugar de relevo na política e economia atlânticas, distinguindo-se pela função de escala económica, de apoio à navegação ou mista: no primeiro caso, surgem as ilhas de Santa Helena, Ascensão, Tristão da Cunha; para o

segundo, as Antilhas e a Madeira, e, no terceiro, as Canárias, os Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Neste grupo insular, emergem a Madeira e as Canárias pelo pioneirismo da ocupação, razão por que se projetaram no restante espaço atlântico por intervenção de portugueses e castelhanos. Daqui resultou a vinculação económica e institucional da Madeira ao espaço atlântico português, como das Canárias às Índias de Castela. Daí também a importância que assume para o estudo e conheci- mento da História do Atlântico a valorização da pesquisa histórica sobre ambos os arquipélagos11.

Desde o pioneiro estudo de Fernand Braudel que foi atribuída às ilhas uma posição chave na vida do oceano e do litoral dos continen- tes12

. A partir daqui, a Historiografia passou a manifestar grande inte- resse pelo seu estudo. Note-se ainda que, segundo Pierre Chaunu, foi ativa a intervenção dos arquipélagos da Madeira, Canárias e Açores, que designou Mediterrâneo Atlântico, na economia castelhana dos séculos XV e XVII13

. Para o Atlântico português, a conjuntura foi diversa, pois a atuação em três frentes – Costa da Guiné, Brasil e Índico – alargou os enclaves de domínio ao sul do oceano. Neste contexto, surgiram cinco vértices insulares de grande relevo – Açores, Canárias, Cabo Verde, Madeira e São Tomé – imprescindíveis para a afirmação da hegemonia e defesa das rotas oceânicas dos portugueses. Aí assentou a coroa portu- guesa os principais pilares atlânticos da sua ação, fazendo das ilhas desertas, lugares de acolhimento e repouso para os náufragos, ancora- douro seguro e abastecedor para as embarcações e espaços agrícolas



11

Alan L. Karras e John Robert McNeill (eds.), Atlantic American societies: from Columbus through abolition (1492-1888), London-New York, Routledge, 1992; Alfred W. Crosby, The columbian exchange: biological and cultural consequences of 1492, Westport, Greenwood Press, 1972; Sidney Wilfred Mintz, Sweetness and power: the place of sugar in Modern History, New York, Viking, 1985; Michael McGerr, “The Price of the ‘New Transnational History’”, American Historical Review, 96, n.º 4, 1991, pp. 1056-1072; D. W. Meinig, The shaping of America: a geographical perspective on 500 years of History – Atlantic America (1492-1800), vol. 1, New Haven, Yale University Press, 1986; Ian Kenneth Steele, The English Atlantic (1675-1740): an exploration of communication and community, New York, Oxford University Press, 1986.

12

Fernand Braudel, La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’epoque de Philipe II, Paris, Armand Colin, 1949.

13

Pierre Chaunu e Hugette Chaunu, Séville et l’Atlantique (1504-1650), 9 vols., Paris, Armand Colin, 1955-1960.

dinamizadores da economia portuguesa. No primeiro caso, podemos referenciar a Madeira, Canárias, Cabo Verde, São Tomé, Santa Helena e Açores, que emergem, a partir de princípios do século XVI, como os principais eixos das rotas do Atlântico. Há necessidade de diferenciar as ilhas que se afirmaram como pontos importantes das rotas intercontinen- tais, como foi o caso das Canárias, Santa Helena e Açores, e as que se filiam nas áreas económicas litorais, como sucedeu com Arguim, Cabo Verde e o arquipélago do golfo da Guiné. Todas vivem numa situação de dependência em relação ao litoral que as tornou importantes. Apenas a de São Tomé, pela importância da cana-de-açúcar, esteve fora desta subordinação, por algum tempo.

A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais, o que terá levado Evaldo Cabral de Mello a definir a capitania de São Vicente como a Nova Madeira14

.Tanto ele como José Antônio Gonsalves de Mello são raros exemplos na Historiogra- fia brasileira a valorizar a presença madeirense15. A fronteira da ilha projeta-se além-Atlântico, pois toda esta experiência institucional, social e económica foi, depois, utilizada, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro, os Açores, depois, os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Idêntica função preencheu as Canárias, fronteira europeia do império espanhol, em relação ao mundo colonial rival16.

Em termos administrativos, tivemos os ensaios de novas práticas administrativas, não distantes daquelas que se estabelecem para as ter- ras de reconquista na Península (afinal, funcionamos como fonteira da Europa, como terra franca). O sistema institucional madeirense apresen-



14

Evaldo Cabral de Mello, in As ilhas e o Brasil: VI Colóquio Internacional de História das ilhas atlânticas, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura – CEHA, 2000, p. 13.

15

José Pereira da Costa (“O Brasil […]”, in As ilhas e o Brasil […], op. cit., pp. 22-23) refere que a Historiografia brasileira dedica pouca atenção às ilhas.

16

José Pérez Vidal, Aportación de Canarias a la población de América: su influen- cia en la lengua y en la poesía tradicional, Las Palmas, Cabildo Insular de Gran Canaria, 1991.

tava uma estrutura peculiar definida pelas capitanias, de amplas liberda- des e isenções, que funcionavam com atrativos tanto para o povoamento, como para a sua afirmação. Foi a 8 de maio de 1440 que o Infante D. Henrique lançou a base da nova estrutura, ao conceder, a Tristão Vaz, a carta de capitão de Machico. O modelo foi seguido para as demais ilhas, chegando, em 16 de fevereiro de 1504, à ilha que ficaria para a História como Fernão de Noronha. Depois, seguiram-se as chamadas capitanias hereditárias da faixa atlântica e interior17

.



17

Sobre as capitanias do Brasil, veja-se: João Fernando de Almeida Prado, Pernambuco e as capitanias do norte do Brasil (1530-1630), São Paulo, Compa- nhia Editora Nacional, 1939; Idem, A Bahia e as capitanias do centro do Brasil (1530-1626): história da formação da sociedade brasileira, São Paulo, Compa- nhia Editora Nacional, 1945; Idem, São Vicente e as capitanias do sul do Brasil – As origens (1501-1531): história da formação da sociedade brasileira, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1961; Clovis Bevilaqua, “As capitanias hereditá- rias perante o Tratado de Tordesilhas”, in Anais do Primeiro Congresso de Histó- ria Nacional, Rio de Janeiro, IHGB e Imprensa Nacional, 1915, Tomo Especial, parte II, pp. 6-26; Eduardo Bueno, Capitães do Brasil: a saga dos primeiros colonizadores, Rio de Janeiro, Objetiva, 1999; Benedito de Jesus Calixto, Capitanias paulistas: São Vicente, Itanhaém e São Paulo, São Paulo, Rossetti, 1924; Frei Gaspar da Madre de Deus, Memórias para a história da Capitania de São Vicente, Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Editora da USP, 1975; Manuel Nunes Dias, Natureza e estatuto da Capitania do Brasil, Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1979; Carlos Malheiro Dias, “O regímen feudal das donatárias anteriormente à instituição do governo geral”, in Carlos Malheiro Dias (ed.), História da colonização portuguesa no Brasil, Porto, Litografia Nacional, 1924, pp. 217-283; Leovigildo Duarte Júnior, Sesmeiros e posseiros na formação histó- rica e econômica da Capitania de São Vicente, depois chamado São Paulo: das suas origens ao século XVIII, dissertação de mestrado em História Econômica apresen- tada à Universidade Estadual de Campinas pelo Instituto de Economia, 2003 (versão eletrónica em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code =vtls000307077, consultada a 4 de dezembro de 2014); Adrien van der Dussen, Relatório sobre as capitanias conquistadas no Brasil pelos holandeses (1639), Rio de Janeiro, IAA, 1947; Waldemar Martins Ferreira, História do Direito Brasi- leiro: as capitanias coloniais de juro e herdade, São Paulo, Edição Saraiva, 1962; Caio Jardim, A Capitania de São Paulo sob governo do morgado de Mateus (1765- -75), São Paulo, Departamento de Cultura, 1939; Siegmund Ulrich Kahn, “As capitanias hereditárias, o governo-geral, o Estado do Brasil: administração e direito quinhentistas”, Revista Ciência Política, v. 6, n.º 2, abr./jun. 1972, pp. 53-114; Américo Jacobina Lacombe, Capitanias hereditárias, Sep. da Revista Portuguesa de História, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1978; Pedro Taques de Almeida Pais Leme, História da Capitania de São Vicente, São Paulo, Ed. Melhoramentos, 1954 (versão eletrónica em http://www.dominiopublico. gov.br/download/texto/sf000043.pdf, consultada a 4 de dezembro de 2014); Jorge Cesar Mota, “Achegas à velha questão do ‘feudalismo’ das capitanias”,

As fronteiras do novo espaço atlântico vão redefinindo outras for- mas de organização da sociedade e o reajustamento das estruturas sociais aos mecanismos gerados por distintas culturas que assumiram aí um papel económico fundamental. A civilização atlântica do açúcar é construída a partir da disponibilidade da mão-de-obra africana, mar- cando, assim, uma fronteira entre a organização do processo produtivo em relação à Europa. Desta forma, a Madeira foi a fronteira da grande transformação social que conduziu à afirmação da escravatura no espaço atlântico. De acordo com S. Greenfield18, a ilha foi o trampolim entre o “Mediterranean Sugar Production” e a “Plantation Slavery” americana. O autor não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Charles Verlinden19, desde a década de sessenta, que mereceram alguns reparos na sua formulação, mercê de novos estudos então realizados20

. Perante tudo isto, podemos afirmar que a Madeira, por ter sido o primeiro espaço atlântico a merecer uma ocupação efetiva europeia, com sucesso, foi fronteira do espaço atlântico que se projetou para além da ilha, na



Anais de História, Universidade Estadual Paulista, 5 (1973), pp. 208-216; Antó- nio Vasconcelos Saldanha, As capitanias do Brasil: antecedentes, desenvolvimento e extensão de um fenômeno atlântico, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001; Carlos Studart Filho, “Notas para a história das fortificações no Ceará”, Sep. do Boletim do Museu Histórico do Ceará, Fortaleza, Ramos & Pouchain, 1937; Idem, O antigo Estado do Maranhão e suas capitanias feudais, Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará, 1960; Luís Filipe dos Reis Thomaz, “Estruturas quasi-feudais na expan- são portuguesa”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. I, Funchal, Governo Regional da Madeira, 1989.

18

Sidney M. Greenfield, “Madeira and the beginnings of New World sugar cane cultivation and plantation slavery: a study in institution building”, in Vera Rubin and Artur Tuden (eds.), Comparative perspectives on slavery in New World planta- tion societies: Annals of the New York Academy of Sciences, New York, New York Academy of Sciences, vol. 292, 1977, pp. 536-552.

19

Charles Verlinden, “Précédents et paralèlles européens de l’esclavage colonial”, O Instituto, vol. 113, Coimbra, 1949; “Les origines coloniales de la civilisation atlantique: antécédents et types de structure”, Journal of World History, n.º 4, 1953, pp. 378-398; Précédents mediévaux de la colonie en Amérique, Mexico City, IPGH, 1954; Les origines de la civilization atlantique: de la Renaissance à l’âge des Lumières, Neuchâtel, La Baconnière, Paris, Albin Michel, 1966.

20

Confronte-se Alfonso Franco Silva, “La esclavitud en Andalucia a fines de la Edade Media: problemas metodologicos y perspectivas de investigacion”, Studia, n.º 47 (1989), Lisboa, pp. 165-166; Alberto Vieira, Os escravos no arquipélago da Madeira: séculos XV a XVII, Funchal, Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração, CEHA, 1991.

construção de novas fronteiras do mundo ocidental em termos sociais, económicos e políticos, que permitiram a plena afirmação da escravatura e do mercado açucareiro. É por isto que podemos afirmar que a Madeira foi, ao nível social, político e económico, o ponto de partida para o “mundo que o português criou...” nos trópicos, a primeira fronteira entre o Velho e o Novo Mundo. Daqui resulta também a importância que assume para o estudo e conhecimento da História do Atlântico a valoriza- ção da pesquisa histórica sobre os arquipélagos.