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Fondazione Dino Terra / Universidade de Cosenza

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O decurso deveras estimulante da discussão, a multidisciplinaridade e diversidade de perspetivas patentes nos textos que resultaram do I Simpósio Internacional “Que Saber(es) para o Século XXI?”, o diálogo iniciado com Marc Augé sobre o tema Não-lugares ou Inter-lugares?  que nos propusemos continuar e desenvolver, cada um de nós aprofun- dando ulteriormente o conceito de “social”, no qual se joga a diferença das posições recíprocas e das perspetivas que emergiram – sugerem-me deixar de parte, por um momento, aquilo que havia pensado expor neste encontro. Uma vez que se confrontam  para convergirem em dire- ção a um moderno “Dicionário Enciclopédico” – os saberes científicos e os saberes literários, como estudiosa e crítica de literatura, mas também como antropóloga das artes, desejo agora colocar sobre a mesa algumas questões.

Antes de tudo, observar que, frequentemente, na história das rela- ções entre os dois saberes, se contrapuseram e se contrapõem por vezes as disciplinas humanísticas e as disciplinas científicas, ou então foram rodeadas de métodos para tornar o mais “científico possível” o estudo da literatura e a própria prática da literatura. São notórias, para nos determos agora nelas, as experiências da galáxia do formalismo ou do estruturalismo, com os seus procedimentos de aproximação aos textos e, se recuarmos, do Naturalismo como o pensou Hippolyte Taine, e do romancista Émile Zola, com instrumentos teóricos e métodos de observa- ção e compreensão da sociedade derivados das ciências naturais.

A primeira questão é: o que é a ciência, e que definição se pode dar dela? Uma resposta problemática mas iluminante é dada por Richard P. Feynman, prémio Nobel em 1965. Na conferência A incerteza da Ciên-

cia, realizada na Universidade de Washington em abril de 1963 no

âmbito das John Danz Lectures Series, o físico norte-americano declara que pela palavra Ciência “geralmente se designam três coisas diferentes, ou um misto das três. […] ‘Ciência’ significa, por vezes um particular

método de descobrir as coisas; outras vezes significa o conjunto dos conhecimentos que nascem das coisas descobertas; mas pode também significar todas as coisas novas que se podem fazer usando o conheci- mento adquirido, ou a efetiva realização destas coisas. Este último campo chama-se ‘tecnologia’ […]”1

. Se a tecnologia não é toda a Ciên- cia, mas antes uma sua parte, tornam-se insatisfatórias, se não caem mesmo por terra automaticamente, certas posições teóricas datadas, de selo ideológico e que devemos aos pensadores de Frankfurt, que no campo humanístico e artístico continuam a demonizar a ciência e confun- dir a técnica com a tecnologia – e nisto remontamos ao filósofo alemão Martin Heidegger. Hoje há, nas disciplinas artísticas, poéticas que se inspiram numa semelhante visão heideggeriana da técnica, ou ainda na estética de Benedetto Croce, cuja ideia era a da arte como intuição ou expressão pura, e da técnica como mero suporte da memória, visto que tudo, na mente do artista, se define e se determina no instante da intui- ção da obra2. Segundo as poéticas que recuperam as posições idealistas de Croce, a técnica é qualquer coisa de “baixo” ou secundário, precisa- mente um mero instrumento, porque a verdadeira obra de arte, marcada pela originalidade da intuição, nasceria exatamente no momento da sua elaboração mental. Não por acaso se trata de poéticas premiadas pelo mercado, seja pelo seu carácter elementar, seja porque delegam total- mente a escolha na razão da economia, que pode impor-se como quer.

A técnica não é, porém, também no campo literário e artístico, para usar as palavras de Feynman, “um método especial de descobrir as coisas”? Quer dizer, é um trabalho, uma série de regras a seguir para apreender as normas dos materiais: palavras, sintaxe, retórica em litera- tura; mármore ou madeira, cores, notas e os valores de tempo nas artes plásticas. A técnica para o escritor e para o artista é uma prática alta- mente libertadora, uma vez que liberta as energias criativas e inventivas quer do próprio artista ou autor, quer da matéria com a qual ele se con- fronta, com a qual – na totalidade do que é corpóreo – entra num cer- rado “corpo-a-corpo”. Em suma, o escritor ou o poeta procuram a



1

Richard P. Feynman, “L'incertezza della scienza”, Il senso delle cose, trad. Laura Servidei, 2.ª ed., Milano, Adelphi, 2012, p.15 (ed. orig.: The meaning of it all. Thoughts of a citizen-scientist, Boston, Addison- Wesley, 1998).

2

Veja-se, pelo menos, Benedetto Croce, Breviario di Estetica. Quattro lezioni, Bari, Laterza, 1913 e reedições subsequentes.

beleza (um fenómeno, recorde-se), levando a palavra, uma matéria ou um material ao seu grau máximo de expressão, como dizia Ezra Pound na sua Ars Poetica3

; ou criando a matéria formada, para usar uma defini- ção de Schiller no Kallias4

. A coisa, a matéria, é determinada pela téc-

nica e a técnica aparece determinada pela natureza da coisa.

Só que a Ciência dos cientistas é “um método especial de descobrir as coisas” no sentido de que é a aplicação de uma série de protocolos e parâmetros de acordo com um paradigma estabelecido. É, em suma, correspondente àquilo que em cada campo artístico-literário Dino Formaggio chamou “técnica externa”: a apreensão e a aplicação de uma prática objetiva e das suas regras, das suas metodologias, o trabalho sobre os materiais com as suas leis naturais. Não obstante isto, na litera- tura e nas artes a técnica tem um estatuto ainda mais complexo, porque existe em simultâneo uma “técnica interna”. Esta última não é separável da externa, analogamente ao que acontece, por exemplo, com o sinal linguístico concebido por Ferdinand de Saussure, segundo o qual o significante e o significado formam uma união incindível. A técnica interna, para Formaggio, é por um lado o processo de especialização no tempo, de interiorização, e é por outro obra de memória, cultura, refle- xão, através da qual se maturam as escolhas e se superam os obstáculos ao trabalho5

. A técnica artística, nas suas várias declinações disciplina- res, aparece como uma forma especial de somatização da cultura como a compreendeu Bordieu6

. António Damásio confirmou, de resto, como os atos cognitivos são um processo de reapropriação corpórea do mundo, e como a memória, a mente, as emoções e consciência estão estreita- mente interligadas7. Qualquer relação de identificação (técnica=arte) ou



3

Ezra Pound, “Ars poetica”, in Cristina Campo, La tigre assenza, Milano, Adel- phi, 1991, pp. 239-241.

4

Cf. Friedrich Schiller, Kallias, o della Bellezza e altri scritti di estetica, a cura di Cesare De Marchi, Milano, Mursia, 1993, pp. 75-78.

5

Cf. Dino Formaggio, Fenomenologia della tecnica artistica. In appendice: L'arte, il lavoro, le tecniche, Prefácio di Gabriele Scaramuzza, Parma-Lucca, Pratiche, 1978 (1.ª ed. Varese-Milano, Cisalpino, 1953).

6

Pierre Bourdieu, Per una teoria della pratica: con tre studi di etnologia cabila, trad. Irene Maffi, Milano, R. Cortina, 2003 (ed. orig.: Esquisse d'une théorie de la pratique: Précédé de trois études d'ethnologie kabyle, Genève, Droz, 1972).

7

Antonio R. Damásio, Emozione e coscienza, trad. de Simonetta Frediani, Milano, Adelphi, 2000 (ed. orig.: The feeling of what happens: Body and emotion in the making of consciousness, Nova Iorque [etc.], Harcourt Brace, 1999).

de oposição (técnica ou arte) é, assim, enganadora, porque o artista (o escritor) descobre, inventa a técnica das técnicas, isto é, as suas pró- prias regras, diferentemente do artesão, que segue as regras simples- mente aplicando-as.

O segundo significado de “Ciência”, para Feynman, é “o conjunto dos conhecimentos que nascem das coisas descobertas”; tudo aquilo, acrescentamos nós, que se confirma como verdadeiro, com base em precisos paradigmas teórico-operativos, ou seja aquilo que aparece coe- rente, “real” num plano objetivo. A literatura e as artes têm, pelo contrário, como escopo, a verdade do ser humano. A nossa subjetividade percebe o “real”, o mundo; tende a realizar nas artes uma experiência de expres- são (beleza) e conhecimento – de verdade entendida como problemática conquista de valores autênticos. Tal verdade é, porém, necessariamente dinâmica, continuamente colocada em discussão, porque os modos de existência humana, os comportamentos, as coisas e a História mudam incessantemente. Nas várias artes explicam-se sobretudo urgências de teor comunicativo/expressivo, sentimental, especulativo ou ético, enquanto que a Ciência privilegia um intento cognoscitivo puro. Seria, de qualquer modo, um erro, atribuir às artes uma função de conhecimento unicamente por uma via irracional, porque a obra de arte, ou a obra literária, apresenta múltiplos traços. A verdade da literatura e das artes – mesmo tendo origem numa instância profunda da subjetividade e mesmo não sendo atingível apenas mediante um método  apoia-se no entanto sempre num trabalho racional de teorização, de artesanato e de invenção rigorosa.

A verdade não pode ser objeto de estudo ou investigação para o cientista, que se propõe determinar o verdadeiro, embora a verdade e a ética o olhem como homem-cientista: e seria aliás desejável que o fizes- sem sempre, e muito. No seu Leben des Galilei, Bertolt Brecht abordou temáticas similares e a problemática das suas relações, sobretudo onde poder e Ciência entram em conflito. Não por acaso, trata-se de uma obra dramática que sofreu muitas revisões e reformulações.

O escritor ou o artista, porém, não podem prescindir de nenhum dos dois: verdade e verdadeiro. De facto, as ciências e os saberes são úteis para adquirir um maior conhecimento e consciência das coisas, entretecendo-se com todas as experiências da vida vivida; e a própria cultura é vida vivida. Precisamente por tais motivos, Broch pensava que as artes, e com elas a literatura, poderiam dar um contributo importante

para a superação da crise da cultura contemporânea, porque estão em condições de colocar o problema da realidade, da mútua tensão entre belo e bom, e portanto de poder e dever ocupar-se de metafísica8

. Uma vez apurada a necessidade de verdadeiro e de verdade no campo das artes, isto é, da necessidade de recorrer sempre mais às interseções interdisciplinares com as ciências, que parecem conhecer hoje um dina- mismo sem par abrindo perspetivas novas, abre-se uma outra questão importante: como se pode ser autenticamente interdisciplinar?

As modalidades são várias e, como dizíamos ao início, criar, assu- mir ou aperfeiçoar uma série de regras e práticas de investigação, de leitura dos textos e de aproximação a uma obra de arte conduziu, no século XIX, a tentativas vitais de renovação metodológica da filologia e da crítica, sobre cujas virtudes e também fraquezas (por exemplo, uma certa redução da ideia de texto literário, devida a um certo estrutura- lismo redutivo) não podemos deter-nos, porque exigiria um espaço diferente. Pense-se, pois, também, na atividade de restauro das obras artísticas – na importância para a própria crítica de arte das descobertas clarificadoras que chegam de ciências como a química ou a geologia; ou no contributo que forneceu a lâmpada de Wood para a correta leitura e interpretação de textos antigos e medievais.

Os métodos não se confundem porém com os paradigmas, elemen- tos que no âmbito artístico e literário envolvem quer problemas de interpretação e visão da própria arte ou da literatura, quer dos estatutos de tais disciplinas. Importa portanto colocar em tensão os diversos sabe- res, sobrepô-los, estratificá-los, como se poderia fazer com a arte de bordar: sob o tecido que se vai bordar coloca-se uma folha de cartolina onde foram reproduzidos os modelos dos desenhos escolhidos e estes são decalcados com uma caneta. Os saberes, colocados numa perspetiva análoga de sucessivas transparências, conseguem revelar as “fronteiras” das suas normas disciplinares, e deixar precisamente entrevê-los, para que se possam colher os núcleos gnoseológicos de modo a dialogarem entre eles. Poderá assim evitar-se o perigo da citação ornamental, que é capaz somente de embelezar exteriormente um discurso crítico ou de poética; para, em vez disso, se colherem de uma ciência aquisições sóli-



8

Assim pensava Hermann Broch, Hofmannsthal e il suo tempo, introd. Saverio Vertone, Roma, Editori Riuniti, 1981, pp. 35-60.

das, imagens poliédricas, metáforas, que serão fundamentais para olhar e ver com uma ótica diferente os factos da história artística e literária e a história da cultura.

Entrando, por exemplo, por um momento, no assunto do debate sobre “Não-lugares” versus “Interlugares” (esta última alternativa é a sugerida por quem escreve) em curso com Marc Augé – a quem apro- veito a ocasião para agradecer pela generosidade e magistério – pode- mos observar como as investigações neurofisiológicas, especialmente os estudos sobre neurónios-espelho levados a cabo por um grupo de investiga- dores italianos (Leonardo Fogassi e Vittorio Gallese coordenados por Giacomo Rizzolatti9

) contribuem para fornecer um ângulo visual de particular interesse. Os neurónios-espelho são neurónios localizados em áreas cerebrais motoras e pré-motoras, e que se encontram também na área de Broca (envolvida na elaboração da linguagem) e no cortéx parietal inferior. São ativados no indivíduo não só quando este realiza uma ação ou vê/observa um outro da sua espécie realizar uma ação ou, ainda, só e simplesmente, quando imagina realizá-la. Os mesmos neuró- nios também se ativam permitindo predizer as intenções de quem é observado enquanto realiza uma ação. A investigação – cujos detalhes omitimos – tem, entre outras, implicações cognitivas muito significati- vas no que diz respeito à própria noção de “indivíduo”, que muda de configuração, porque a sua capacidade de colocar-se em relação com outro da mesma espécie é iluminada de um modo novo.

Os mecanismos de espelhamento reportam-se não só ao campo das ações, mas também aos das emoções e das sensações. Existem regiões cerebrais, como por exemplo a ínsula e a amigdala, que se ativam experi- mentando em primeira pessoa emoções como por exemplo o medo, ou sensações como a dor e a sua observação, entre outros. De forma aná- loga, no caso das experiências do tacto, certas áreas corticais ativam-se quer pelas nossas próprias experiências tácteis, seja diante das de outros, de forma que visão, tacto e ação estão relacionadas de modo inextrincá- vel10

.



9

A descoberta teve lugar na Universidade de Parma, há cerca de trinta anos, nos anos 80-90.

10

Cf. Vittorio Gallese-Sjoerd Ebisch, “Embodied simulation and touch: The sense of touch in social cognition”, Phenomenology and mind, n.º 4, 2013, pp. 269-291.

Estão de tal modo em primeiro plano os mecanismos de espelha- mento (a chamada “Simulação Incarnada”), que apontam para a corporei- dade como condicio sine qua non e pólo para a construção da subjetividade: quer dizer, para uma corporeidade partilhada, a uma noção inter-corpórea do “Eu” e da intersubjetividade11, confirmando por outro lado a justeza das observações sobre o nexo de reciprocidade Eu/Outro na Fenomenologia da

percepção de Maurice Merleau-Ponty. Se consideramos precisamente o

corpo como condição da experiência na sua globalidade (matéria e mente), o corpóreo com todas as suas características fisiológicas, biológicas, cognitivas e afetivas, podemos tentar olhar a relação “eu mesmo – o outro” de uma perspetiva renovada.

Augé defende que os não-lugares são aqueles espaços nos quais se dissolvem todos os laços identitários, relacionais e históricos que caracteri- zam os lugares antropológicos. Estes sê-lo-iam (precisamente na senda de uma ideia de Merleau-Ponty) exatamente porque princípios de sentido, porquanto neles podem ser lidas todas as inscrições dos liames sociais e da história coletiva. Inscrições “mais raras nos espaços marcados com o selo do efémero e da passagem”12, assinaladas, para o indivíduo, pela experiência do isolamento e do anonimato, ou por um menor grau de simbolização e socialidade (entendida na aceção francesa de “sociabilité”, a tendência para estabelecer relações duradouras ou estáveis). O espaço do não-lugar “não cria, nem identidade individual, nem relação, mas solidão e indiferenciação”; e – vivendo somente no presente – “não deixa também espaço à história; no máximo transforma-a por vezes em ele- mento de espetáculo, e a maioria das vezes em textos alusivos”13.

Nós somos, porém como corpo e no corpo, segundo a definição de Helmuth Plessner14

; e o corpo humano, que medeia entre nós e o resto



11

Veja-se ainda Vittorio Gallese, “Il Sé inter-corporeo. Un commento a 'Il sog- getto come sistema' di Manlio Iofrida”, Ricerca Psicoanalitica, vol. XXI, n.º 3, 2010 on line, bem como “Embodied simulation: From neurons to phenomenal experience”, Phenomenology and the Cognitive Sciences, n.º 4, 2005, pp. 23-48.

12

Assim refere no Prefácio a Nonluoghi. Introduzione a una antropologia della surmodernità, com um novo Prefácio do autor, Milão, Elèuthera, 2009, 2.ª ediz., p. 8 (ed. orig.: Non-lieux, Paris, Editions du Seuil, 1992).

13

In Nonluoghi, op. cit., p. 94.

14

Il riso e il pianto. Una ricerca sui limiti del comportamento umano, trad. Vallori Rasini, Milão, Bompiani, 2000 (ed. orig.: Lachen und Weinen. Eine Untersuchung nach den Grenzen des menschlichen Verhaltens, München, A. Francke AG, 1950).

do mundo do qual somos parte, não pode deixar de estabelecer relações – qualquer que seja a situação interior do indivíduo que as exprime – com os outros corpos da nossa espécie, na medida em que está progra- mado pela evolução ou pela natureza para reconhecer os comportamen- tos, a pré-selecioná-los. Pode afirmar-se que existe nos factos uma condi- ção de humanismo antropológico, uma realidade corpórea e da mente a

priori, à qual o ser humano não pode fugir e que põe a subjetividade

numa inter-relação complexa e contínua com os outros e com o mundo. Em suma, se, no plano afetivo, é claro que um indivíduo pode também sentir-se só e esmagado entre as massas ou nos aglomerados urbanos do planeta, cada vez maiores, o ser humano são e toda a nossa espécie aparecem distinguidos pela impossibilidade neurofisiológica e antropológica de sair de ou de suspender, ainda que apenas temporaria- mente, uma inata condição de relação com os outros que permanece em cada fase da sua existência. No fundo, o fragmento, o indivíduo isolado, não podem existir se não em coexistência e em relação com um todo que é constituído pelos semelhantes ou pela espécie, por um grupo, por uma sociedade mais articulada, por uma realidade física e natural.

Além disto: se, por exemplo, raciocinamos de acordo com as sugestões da Física e em particular das teorias de Albert Einstein, deve- mos considerar que o homem está imerso num horizonte espácio- -temporal, dentro do qual, em relação com a sua colocação, se vêm a pouco e pouco a definir as coordenadas do passado, presente e futuro nas quais ele se move. Então – se a temporalidade histórica já não é uma só linha reta, formada por uma sucessão de pontos de fuga, e se, somo ensina a Antropologia, os valores da cultura são sempre sujeitos a negociações e o ser humano vive na complexidade de uma coexistência de histórias e geografias culturais – será possível pensar que não existe uma só e única Tradição identificada com a História tout court, mas antes uma multiplicidade de tradições.

Uma tradição é um espaço de significados em conflito, aquilo que herdamos hoje do passado. Pode ser “grande tradição”, enquanto perten- cente à cultura urbana, literata, racionalista das élites, mas também “pequena tradição”: aquela de comunidade rural ou própria da cultura popular15. A



15

Cf. Robert Redfield, La piccola comunità. La società e la cultura contadina, Introdução de Lucetta Scaraffia, Rosenberg & Sellier, Torino, 1976 (ed. orig.:

tradição pode também inventar-se, mostram-no Hobsbawn e Ranger16, criando na repetição uma relação fictícia com o passado para construir uma maior coesão, padrões de convenções úteis e símbolos complexos, e fortalecer vínculos sociais e políticos.

No interior do “ritualismo” da literatura e da arte, uma tradição é aquilo que instaura ou exprime uma relação com o passado, é uma representação e um conjunto de experiências por vezes também muito heterogéneas, de diversos conhecimentos, costumes comunicativos, expressivos, estéticos, de modos, práticas ou poéticas, formas, géneros, estilos, significados, símbolos, valores, que provêm de um passado histórico mais ou menos longínquo e que permanecem, que estabele- cem um nexo de vitalidade e continuidade com o presente no entrelaça- mento jamais concluído entre duração e inovação.

A tradição pode ser oral ou escrita, compreendeu-o Vincenzo Gio- berti17, e pertencer às classes baixas ou altas (é nesta esteira que Ernesto