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Interrogar uma terra equivale a confrontá-la com outras conhecidas do investigador ou do viajante. Não faltam exemplos de um tal exercício. Vem-me à mente Jean Baudrillard (1923-2007) e a sua visão obtida numa viagem a uma américa, a dos EUA. Dela, retive dois aspetos: o primeiro é a rejeição do preconceito intelectual europeu em relação àquele país-continente, quando lhe imputamos uma quase menoridade



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António Loja, 1986, A luta do poder contra a maçonaria. Quatro perseguições no séc. XVIII, Lisboa, INCM, 1986.

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A. de Vasconcelos Nogueira, Os exilados da Madeira relacionados com o Dr. Kalley e o desenvolvimento económico do capitalismo moderno: estudo de caso em história económica e emigração da segunda metade do século XIX à primeira metade do século XX, Universidade de Aveiro, 2005 [texto policopiado].

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An island called home. Returning to Jewish Cuba, New Brunswick, Rutgers University Press, 2007.

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Sidney W. Mintz, Sweetness and power. The place of sugar in Modern History, Londres, Penguin Books, 1985.

e também uma atitude de superficialidade no plano cultural; o segundo prende-se com a vastidão dos espaços percorridos e a beleza implícita numa falsa monotonia que deixa de o ser à medida que consumimos distâncias ao volante dum automóvel. Na minha leitura daquele texto deduzo dois eixos analíticos: vastidão e mobilidade. No viajar, Baudril- lard busca sentidos e conjuga significados, neutralizando oposições em favor de relações14

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Enquanto viajante, Bruce Chatwin (1940-1989) percorre a Patagó- nia, descrevendo-a pelo que vê. Observador experimentado e avisado, convive porque interpela e estabelece diálogo com pessoas, injeta temporalidade à experiência vivida ao debatê-la com a bibliografia legada pelos que o antecederam. Chatwin não era antropólogo, mas da sua errância nasce uma ficção que pode ser lida e entendida como uma etnografia autorizada15. Percorrer terras, fixar território, interpretar espaço, pensar limites, avaliar dimensões físicas e mentais leva-nos a ensaios de revisitação dos percursos feitos numa escala transferida para o passado. Extirpa-se o que nos parece recente e moderno, sobreposto ou mesmo imposto. Imaginamos um antes e comprovamo-lo no diálogo com as gentes, que nos respondem em tradição. A retórica da nostalgia revela- -se como uma relação forte, que se presta a abafar dissonâncias do pre- sente.

De e sobre nostalgia muito se tem escrito. A produção de nostalgia, tanto pela escrita como pela imagem, tem sido uma via de convergência entre intelectuais e público consumidor. Pierre-Jakez Hélias (1914-1995) e o seu livro Le cheval d’orgueil16 é a este propósito um caso exemplar. Elaborado como uma autobiografia, descreve circunstanciadamente a vida camponesa numa aldeia da Bretanha: a família, o âmbito domés- tico, a vizinhança, o quotidiano. A confrontação linguística entre o bretão em que decorre a socialização familiar e aldeã e o francês que a escolaridade e o serviço militar obrigatórios impõem são fatores determi- nantes para a criança e depois para o jovem adulto. Autor consagrado, o Hélias-narrador, ao redigir este longo depoimento vertido das suas lembranças, estabelece os parâmetros para a difusão duma cultura bretã



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Jean Baudrillard, América, Lisboa, João Azevedo Editor, 1989 [1986].

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Bruce Chatwin, Na Patagónia, Lisboa, Quetzal, 1989 [1977].

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de feição nostálgica. A subalternidade cultural exprime-se no apaga- mento da língua nativa, o que, por sua vez, produz o ingrediente para a mobilização regionalista, que exprime a rejeição coletiva ao centralismo do estado francês. Acresce a este movimento o pendor nostálgico em que o autor transmite uma vontade de busca dum tempo perdido, por- que esquecida a língua, transformadas as relações de vizinhança e implan- tada uma agroindústria. O cavalo de orgulho desencadeou dinâmicas de consumo cultural. Foi um recorde de vendas, sucedendo-se as edições e atingindo-se as centenas de milhar de exemplares vendidos (em francês, na já então prestigiada coleção Terre humaine, da editora Plon), conside- rando-se um dos maiores sucessos editorais no género. A visão duma cultura regional subjugada por um estado centralizador, narrada na minúcia de recordações pessoais, ditas na primeira pessoa pelo nativo civilizado na língua do dominador, levaram a que as estruturas políticas centrais de vocação hegemónica aceitassem a diferença cultural. No pressuposto desta articulação entre política centralista e regionalismos como cultura de relações culturais, a obra de P.-J. Hélias foi adaptada ao cinema com o mesmo título do livro e realização de Claude Chabrol (1930-2010). A fim de reforçar um sentimento nostálgico, a película é falada em bretão e legendada em francês. Enquanto no livro se lamen- tam o esquecimento da língua e o abandono da sobriedade que regia a vida económica camponesa de então, o filme faz uma leitura da cultura bretã na sua relação com a morte. O mesmo fenómeno – o ocaso de uma cultura regional – é olhado em perspetivas diferentes: o escritor pela língua como ligação dos vivos entre si, o cineasta pela morte como outro modo de comunicação entre os vivos. Na produção de nostalgia, contam mais as relações do que as diferenças.

Comparando

Privilegiar a relação em detrimento da diferença não implica a supres- são do exercício comparativo. Uma vez mais são úteis os exemplos de outros contextos. À questão “o que é ser alemão no presente?”, escolho três modos de abordagem. Do ensaio de Hermann Bausinger 17

retenho a discussão sobre a tipificação de populações, cuja identidade se pre-



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tenda circunscrever ou definir num plano local, regional ou nacional. Este antropólogo propõe a determinação do que é típico pela vertente da sua negação, ou seja, por ação contrastiva (Kontrastprogramm). Nesta ordem de ideias, mais que estabelecer o que é típico num grupo humano importa determinar aquilo que ele define como prerrogativas próprias, gerando semelhanças e sincronismos e, em consequência, identidade cultural pelo contraste criado perante outros. Mais do que um facto, a tipificação é procedimento com vista à operacionalização duma pesquisa. Contrastar e confrontar: no caso presente o autor recorre à comparação que proporcionam materiais vindos de outros que não os alemães, que pretende, no final de contas, estudar. Enumera e debate atitudes e comportamentos da sociedade norte-americana, mas introduz um outro elemento inovador na sua análise na perspetiva da antropolo- gia cultural. Enquanto procurar elementos culturais dissemelhantes entre alemães e americanos (EUA) nada tem de inesperado, é inédito comparar duas sociedades geradas no plano político pelo confronto de ideologias ocorrido durante a Guerra Fria – as Alemanhas nascidas da proclama- ção de dois estados, em 1949. Bausinger aborda os elementos constituin- tes e caracterizadores de culturas em estruturas estatais resultantes de sistemas políticos concorrentes numa anterior entidade nacional. Isto permite quase isolar o papel da política e do estado na criação ou disseminação de processos culturais alargados e a sua hegemonização instigada por regimes políticos.

W. Krämer18

adota outra metodologia para abordar a tipicidade alemã. Recorre a dados estatísticos sobre consumo, comparando-os a outras povos e colocando os alemães num ranking. Mas é sobretudo no fator técnico que ele procura as imagens difundidas da diferença cultu- ral. O caso mais mencionado e debatido é a importância que os alemães atribuem a certos produtos, como, por exemplo, o automóvel. Nele o alemão revê-se, muito mais do que na cerveja ou no futebol, pese a imagem que os outros dos alemães tenham. O autor chega a esta conclusão apoiando-se em dados quantitativos. Sendo especialista em estatística económica e social, faz uma leitura da cultura alemã atual, considerando a performance técnica e industrial – o selo made in Ger-



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Typisch deutsch. Was uns von anderen unterscheidet, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2013.

many – e o quadro económico e social que desde os anos 1950 condu-

ziu ao milagre económico – o Deutsche Mark, a moeda então surgida – seus elementos estruturantes. Estão assim encontrados os dois pilares em que assenta a cultura da identidade nacional alemã no presente: o

know how tecnológico e a moeda, ambos aliados ao consumo.

Duas antropólogas analisam o quotidiano alemão, realçando os aspe- tos que se prendem com as relações de género, o lazer, as transformações familiares e da intimidade, a busca cada vez mais abrangente de modos de vida alternativos19. Para elas, o elemento típico na sociedade alemã nos dias que correm é o pluralismo da moda de feição transnacional e o que caracteriza os consumos. Só aparentemente estamos perante uma dinâmica de homogeneização, uma vez que se geram distinções. Em ambiente globalizado instaura-se uma cultura de massas, onde as auto- ras veem no inflacionamento da diversidade, exemplificada na moda, hoje necessariamente internacional, o elemento típico comum atuali- dade a todas as sociedades.