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Universidade Aberta

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Alexis de Tocqueville percebeu que “o espírito humano inventa mais facil- mente as coisas do que as palavras [e que] daí vem o uso de tantos termos impróprios e de expressões incompletas”. Por isso, acrescenta o mesmo autor, “é necessária uma ciência política nova para um mundo novo”1

. Também a investigadora Maria Manuel Mota, galardoada em 2013 com o Prémio Pessoa, pelos seus trabalhos na compreensão dos mecanismos pelos quais o parasita da malária se desenvolve no hospedeiro humano, se apercebe, nos dias que correm, de um mundo novo e da necessidade de uma mudança de paradigma visando o conhecimento da realidade. Essa mudança é compreensível, porque a experimentamos todos os dias, mas, segundo Maria Manuel Mota, precisa de ser faseada2

. Esta explicação é pertinente: a nossa história, pessoal e coletiva – que é história do nosso tempo, diferente das histórias de todos os outros tempos – não é capaz de compreender as coisas todas de uma vez, e precisa de tempo. Ou seja, precisa de mais história, de outra história. Estranho paradoxo este de a história precisar de tempo para se fazer compreender pelo sentido da sua própria evolução.



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Refiro-me às conhecidas afirmações formuladas pelo autor em 1835, na “Introdução” da sua obra Da democracia na América. Cf. Alexis de Tocqueville, Da democracia na América, Porto, Rés, s/d, p. 9, com introdução de Paulo Fer- reira da Cunha e trad. de Maria da Conceição Ferreira da Cunha.

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O jornal Expresso, na sua edição on-line de 13 de dezembro de 2013, numa notícia assinada pelo jornalista Paulo Paixão, assinala que Maria Manuel Mota é uma das maiores autoridades mundiais no estudo da malária e que, com 42 anos, é a mais jovem vencedora do Prémio Pessoa. Mas a notícia assinala ainda, como factos radicalmente novos em relação ao passado, outras particularidades da vida profissional e cívica da cientista: o extraordinário número das suas publicações científicas só no ano de 2013, assim como “o seu empenhamento entusiástico no que se pode chamar cidadania da ciência”. Ver http://expresso. sapo.pt/premio-pessoa-para-maria-manuel-mota=f846086 (consultado em 2 de janeiro de 2014).

Se a realidade é evolutiva, também as teorias e conceitos devem evoluir. Para quem, como é o meu caso, defende uma perspetiva realista da política e da vida social, é absolutamente necessário procurar a ver- dade no conhecimento do mundo3. Não só é necessário criar espaço nas ciências sociais e humanas para interpretações pessoais da realidade (a que não são alheias as próprias convicções do autor) como é necessário objetivá-las. A missão do cientista social passa aliás por procurar conhe- cer aquilo que não é evidente para o comum dos mortais4. É a procura da verdade, sem subterfúgios, que permite a liberdade crítica e, em última instância, a esperança, esse bem humano que, na mitologia clássica, se perde entre os males do mundo. É por isso também que, no conheci- mento da realidade, várias abordagens são lícitas, desde que sejamos rigorosos.

Com o presente artigo, escrito sob a forma de ensaio, procuro responder à seguinte questão: no presente momento histórico, marcado por sinais de um globalismo de difícil definição e em que experimenta- mos o radicalmente novo, que devemos fazer como portugueses no mundo?

A resposta a esta questão servirá para compreendermos não só que o mundo mudou mas também como podemos e devemos atuar nele. Há muitas questões em aberto, como seja a questão de saber se, com tantas mudanças, a nossa história nos garante ainda um chão comum e, em caso de resposta afirmativa, que chão comum é esse.

Para que a liberdade humana se realize, é necessário que saibamos fazer perguntas gerais, mas que sejam perguntas novas e fundamenta- das, porque só assim poderemos tomar o pulso ao nosso tempo. É este o tempo da democracia, que, aparentemente, veio para ficar num número crescente de países, embora com muitos problemas; ou não fosse a democracia a bela Pandora com uma caixa debaixo do braço…



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Numa perspetiva inovadora sobre a matéria, cf. José Eduardo Franco, “A História como constru(cria)ção. Uma ciência entre a verdade e a ficção”, Broté- ria, vol. 178, março 2014, p. 263 e ss. Já José Luís Nunes Martins diz o seguinte: “A história resulta do encontro da liberdade individual com a reali- dade. O sentido da vida não surge do exterior. Cada homem é parte integrante da Verdade. Mas a cada um de nós é dado escolher-se dentro dela”. Cf. José Luís Nunes Martins, Filosofias – 79 reflexões, Lisboa, Paulus, 2013, p. 182.

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Cf. António de Sousa Lara, A grande mentira: Ensaio sobre a ideologia e o Estado, Lisboa, Hugin, 2004, p. 7.

Quando olhamos para o mundo, que vemos, ouvimos e sentimos? Como nos comportamos uns em relação aos outros? Que tipos de interações estabelecemos e com que significado? Qual é hoje o sentido da comunidade política? Será que é fazer-nos dignos? E sentir dignos?

A procura de um novo paradigma para o século XXI é um campo de conhecimento interdisciplinar que urge explorar. Até porque não há certezas definitivas. Em linguagem marxista, e muito verdadeira, podere- mos dizer que a realidade está em perfeita e perpétua gestação… Nas Jornadas de Teoria e Filosofia do Direito de 2013, que decorreram na Universidade do Minho, em Braga, João Cardoso Rosas, um ilustre cien- tista político português contemporâneo, numa conferência denominada “A dignidade como igualdade”5

, defendeu um conceito de dignidade diferente do normalmente aceite, de matriz kantiana. Defendeu, concreta- mente, um conceito pré-clássico de dignidade fundado na capacidade pessoal para se obter reconhecimento aos olhos dos outros pelos feitos próprios. A sua posição foi muito criticada por vários dos presentes na sessão, por se afastar da definição habitualmente aceite. No entanto, estando devidamente enquadrada teoricamente, a posição de João Car- doso Rosas aponta para a necessidade de se explorarem caminhos novos no conhecimento da realidade. É ela mesma um princípio e uma tenta- tiva de conhecimento da realidade que atualmente existe.

Ser bom hoje é ser bom à escala do mundo, o que passa por se ter a consciência de quanto se vale e por ser-se capaz de mostrar aos outros o valor que se tem6

. Esta é uma posição liberal, e também verdadeira. Por exemplo, o futebolista português Cristiano Ronaldo tem perfeita consciência de quanto vale. Ele atua num mundo sem fronteiras e muito competitivo, que é o mundo real em que vivemos. O contexto em que atua Cristiano Ronaldo é diferente do contexto em que atuou Eusé- bio, outro futebolista português de renome. Este foi reconhecido, nacio- nal e internacionalmente, apenas pelos seus feitos futebolísticos. Já Cristiano Ronaldo vale pelo que joga e pela sua imagem na comunica- ção social, que o leva permanentemente às pessoas de todo o mundo. Ronaldo faz parte de uma nova elite simbólica fortemente escrutinada



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A conferência foi proferida no dia 22 de fevereiro de 2013.

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Sobre o tema, vide João Caetano e Nicolás Lori, “Ser bom ou não ser”, Público, edição de 16/08/2009.

pelo que significa, no plano do imaginário, para as pessoas de todo o mundo, porque com elas entra em interação. O mesmo se passou, no passado recente, com outro jogador português, Figo, que, durante o período em que atuou no Real Madrid – um dos clubes, se não mesmo o clube, com maior reconhecimento em todo o mundo – foi elevado à natureza de “galáctico”, ou seja, de habitante de outra galáxia, como se as suas qualidades fossem indefiníveis com as palavras disponíveis na linguagem humana. Tal como acontece hoje com Cristiano Ronaldo, Figo “representou”7 Portugal à escala do mundo conhecido. Quem não se recorda da fotografia que correu mundo, nos inícios do novo milé- nio, de uma criança da Indonésia envergando uma camisola da seleção nacional portuguesa com o nome de Figo? Tal como Figo no passado recente, Ronaldo é hoje o homem novo! Sabemos que deixará de o ser, pelo menos da mesma forma, dentro de poucos anos, quando deixar de jogar futebol, mas hoje é o homem novo. Naturalmente que falo de um conceito alternativo de “homem novo”, que não se confunde nem com o “Homem Novo” anunciado por Jesus Cristo nos Evangelhos, nem com o “homem novo” prefigurado por várias utopias, designadamente a marxista. Cristiano Ronaldo é, a vários títulos, um homem do nosso tempo novo cujo modo de construção e simbolismo muito nos dizem do mundo contemporâneo e da sua história.

Que aconteceu? Sensivelmente com a viragem do século XX para o século XXI, teve lugar uma transformação profunda nas relações económi- cas, sociais e culturais à escala global que fez com que o que era e se disse antes seja irremediavelmente velho. As pessoas não se relacionam mais da mesma maneira como acontecia no passado. É dessa “continui- dade” na mudança que se faz o tempo presente e se fará o futuro. Falo de uma mudança nas vidas das pessoas e das instituições, não necessaria-



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Na verdade, Figo não representou Portugal, assim como Cristiano Ronaldo não representa o País. Por isso, utilizei propositadamente a palavra entre aspas. No plano externo, Ronaldo age em nome de Portugal ou, por outras palavras, onde quer que ele esteja, está Portugal. É um exemplo ilustrativo de uma reali- dade que mudou e que precisa de novos conceitos. Neste caso, é o conceito de representação política que, não deixando de existir, cede perante o conceito de ação externa. Enquanto a representação do Estado cabe aos políticos e aos diplomatas e agentes equiparados, a ação externa é levada a cabo por um número muito maior de pessoas, cuja importância é crescente num mundo globalizado como o nosso: desportistas, cientistas, artistas e outros.

mente nas palavras. Algumas palavras também mudaram, mas a maior parte manteve-se, assumindo, porém, muitas delas, em termos sociais e políticos, novos significados. Falo de palavras que têm hoje uma densi- dade e um peso diferentes dos que tiveram no passado, e sobre as quais não há mais certezas, o que é, naturalmente, problemático para a vida em sociedade. É o caso, por exemplo, da palavra “família”: assistimos hoje, no Ocidente, a uma variedade, por vezes muito conflituosa, de significados da palavra “família”, que aspiram a uma consagração não apenas nos hábitos das pessoas mas, sobretudo, nas leis dos Estados. Nunca antes isto acontecera.

A constituição de família nos países ocidentais continua a assentar, no plano jurídico, na relação entre duas pessoas. Mas essa relação já não se constitui necessariamente, no plano legal, através do casamento, ou sequer entre pessoas do mesmo sexo. Quando estudei Direito, na Faculdade de Direito de Coimbra, em finais da década de 80 e princí- pios da década de 90 do século passado, aprendi que um casamento realizado entre duas pessoas do mesmo sexo (invocava-se a doutrina francesa, de caráter estadualista)8 não seria apenas nulo (forma mais severa de invalidade), mas inexistente. Tratava-se de uma hipótese mera- mente académica e extravagante, que, por falta de sentido social em face dos comportamentos reiteradamente observados e reconhecidos como bons, não poderia ter cobertura legal. Ora, assistimos hoje a uma altera- ção profunda, de caráter antropológico, do significado do casamento (sobretudo no plano civil) como realidade social e instituto jurídico, com a curiosidade de se preservar o modelo baseado na relação entre duas pessoas mas de se afastarem, deliberadamente, outras possibilida- des culturais como, por exemplo, a poligamia. Aparentemente há continui- dade, um decalque de formas aceites9

, mas há uma mudança profunda.



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Numa perspetiva positivista, o Estado, como produtor exclusivo do direito válido, definia o casamento entre um homem e uma mulher como o modelo moralmente superior aplicável às relações sociais observáveis. Cf. João Carlos Relvão Caetano e Paulo Ferreira da Cunha, “O mundo visto direito (relações entre a moral e o direito no pensamento de Alberto Salles)”, O pensamento luso- -galaico-brasileiro (1850-2000), vol. II, Lisboa, INCM, 2009, pp. 569 e ss.

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Na verdade, não só se mantém a forma como, no caso português, se mantêm os tradicionais deveres dos cônjuges no casamento, plasmados no artigo 1672.º do Código Civil: “Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência”.

A mudança começou por ser económica e tecnológica e, posterior- mente, cultural, moldando as nossas vidas de maneira diferente do que ocorreu no passado. A mudança atingiu as principais instituições da sociedade, que perderam influência ou se transformaram: a família, a escola, a(s) Igreja(s).

O mundo da minha infância já não existe10. Na minha aldeia, a escassos dez quilómetros do centro de Coimbra, não havia, há quarenta anos, água canalizada, havia apenas dois telefones (um dos quais público) e três automóveis. Os aparelhos de televisão eram poucos, e a preto e branco. A televisão pública era constituída por dois canais (RTP 1 e RTP 2), cujas programações eram de escassas horas diárias e termina- vam com o hino nacional. Quando morreram os papas Paulo VI e João Paulo I, em 1978, já era possível às pessoas casadas catolicamente depois de 1940 divorciarem-se, em virtude da renegociação da Concor- data entre o Estado Português e a Santa Sé, que ocorreu em 1975, e também se havia eliminado do Código Civil a figura dos filhos ilegítimos e a subordinação jurídica da mulher ao marido (reforma de 1977)11

; porém, a televisão pública, como expressão de luto, própria de um “país católico” (Portugal nunca foi oficialmente um Estado católico durante o século XX, mas a sociedade portuguesa era católica, aceitando o poder político esse facto, pelo menos tacitamente), passou música clássica. Não havia computadores, nem telemóveis. As crianças iam a pé para a escola, ainda relativamente escassa mas fundamentalmente pública. É de notar que, durante o Estado Novo, se criou paulatinamente uma rede de escolas primárias e de liceus públicos de qualidade, que era complementada, sobretudo no interior do país, por uma rede de colé- gios privados que exerceram uma função social muito relevante. Hoje não falta oferta em todos os níveis de ensino – embora de muito dife- rente qualidade –, constituindo o ensino privado, em termos relativos, sobretudo nos segmentos iniciais de formação das crianças e adoles- centes, uma real alternativa para as famílias de maiores rendimentos. Esta realidade tem um significado social importante, justificando, com



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Nasci em 10 de março de 1970, na maternidade Dr. Daniel de Matos, na freguesia da Sé Nova, em Coimbra. Faço parte da primeira geração de conterrâ- neos que, por melhoria da oferta de saúde pública, passou a nascer na materni- dade, não mais em casa.

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um vasto respaldo ideológico, que só não vê quem não quer, que se repense a questão.

Quando eu era criança e adolescente, a maior parte das famílias que eu conhecia ficava satisfeita quando os filhos concluíam o 2.º ano do ciclo preparatório (atual 6.º ano) ou mesmo a “4.ª classe” (designa- ção de uso comum na segunda metade da década de 70 do século XX, apesar de já ter sido substituída na lei; hoje em dia é que já é “arcaico” falar de “classes”…). Não foi felizmente o caso dos meus pais, em espe- cial da minha mãe, que, tendo embora apenas a 4.ª classe (esta, sim, está de acordo com a terminologia oficial), comprava todas as semanas um jornal de referência à época. E que influência esse jornal – o Tempo, título entretanto desaparecido – exerceu sobre mim! Dizia-se, no meu meio familiar, que éramos uma família remediada, categoria que desapare- ceu do imaginário das pessoas. Ora, o imaginário é muito importante. A família remediada era não só a que tinha o suficiente para viver, mas, sobretudo, a que procurava que os seus filhos ascendessem socialmente. A palavra “remediar” teve um importante significado político e social durante o Estado Novo, assim como nos primeiros anos da democracia. O que se podia remediar era o que se podia fazer, constituindo assim o campo de intervenção lícita das pessoas em sociedade e nas suas rela- ções com o Estado. Era o campo de liberdade possível. Nesse período, era certo que quem estudasse, mesmo sendo um estudante mediano ou até medíocre, tinha trabalho garantido e uma posição social condizente com os seus estudos. Ao contrário do que ocorre hoje em que, para se ter um trabalho, é preciso procurar muito. E mesmo assim não é certo que se arranje trabalho. A década de 60 e parte da década de 70 do século passado, apesar de terem sido dominadas, em Portugal, pela guerra colonial, foram anos de crescimento económico, de melhoria progressiva das condições de vida das pessoas e, nesse sentido, foram anos de otimismo e de transformação social. Por estranho que pareça, a expressão “governo das pessoas”, que poderia ser vista como uma expressão pós-moderna, por se referir às pessoas como sujeito político, foi cunhada nessa época em Portugal, como expressão de um Governo que se pretendia eficaz na resposta às necessidades das pessoas, nomeada- mente em matéria social.

Com quatro anos acabados de fazer, assisti, em casa dos meus avós maternos, à Revolução de 25 de Abril de 1974. Lembro-me de estar com a

minha mãe e o meu avô, que olhavam, ao longe, para as inexistentes movimentações na estrada nacional n.º 1. O poder político estava longe, em particular o Estado central, com os seus dignitários. Essas figuras mudaram após a revolução; e as pessoas comuns, que antes se identifica- vam com as noções de situação e oposição, passaram a identificar-se com os partidos políticos. Mas o sentimento da política, apesar das muitas novidades que iam ocorrendo, manteve-se, assim como se man- teve o respeito devido aos políticos e à sua autoridade. Tudo isso mudou entretanto. Falo de uma mudança de comportamentos e de regras sociais. A criação, pela Constituição da República de 1976, de um poder autárquico democrático, apesar de ter tido um impacto muito positivo na vida das pessoas, não alterou essas regras sociais.

Recordo-me do primeiro divórcio na minha aldeia, em finais da década de 70 do século XX, e do impacto negativo que teve. Também isso mudou. Hoje os divórcios atingem todas as famílias e não são maté- ria de discussão pública, sendo também usual as pessoas coabitarem antes ou à margem do casamento, como facto socialmente aceite.

Recordo-me, também, do respeito distante que as pessoas tinham pela professora primária que residia na aldeia, assim como me recordo da implícita autorização que a generalidade dos pais dava para que a referida professora exercesse o seu múnus autoritariamente. Tudo isso mudou. Desde logo, em nome dos direitos humanos… A minha profes- sora primária representava a política da época. Muitos dos seus comporta- mentos mantiveram-se após a Revolução de 25 de Abril de 1974, a par de alguns que mudaram, sem alarde social. O mesmo se passou na vida política. Com a instauração da democracia, a classe política portuguesa renovou-se, mas integrou a maior parte dos que vinham de trás. Prova disso foram os partidos que emergiram no sistema político e que, desde então, têm governado Portugal.

Há poucos anos, um membro da casa civil do atual presidente da República (Carlos Blanco de Morais, Consultor do Presidente da Repú- blica para os Assuntos Constitucionais) escreveu, sob pseudónimo (Diogo de Andrade), um romance intitulado “Alvorada desfeita”. Ins- creve-se o romance no que se chama ficção alternativa (“what if…”, no espaço anglo-saxónico), ou seja, na imaginação do que poderia ter acontecido na madrugada do dia 25 de abril de 1974 se a sublevação militar tivesse sido derrotada. No romance, a tentativa de golpe de

Estado falha, mas o regime evolui para um sistema democrático bipartidá- rio. É um exercício muito interessante, cujos resultados, na verdade, não são muito diferentes do que realmente aconteceu. No essencial, repito, a democracia foi aceite pela generalidade da população portu- guesa e acomodou o pessoal político afeto ao antigo regime, ao qual se juntaram pessoas que estavam excluídas da política. Se é verdade que o regime democrático permitiu, na sua génese, o acesso das pessoas a um conjunto alargado de bens de natureza política, económica, social e