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A geografia é determinante na função económica a atribuir aos espaços humanizados. Nesse sentido, as condições particulares da Madeira defini- ram-lhe uma vocação eminentemente agrícola. A aposta nos serviços, como o turismo, surgiu por acaso e por influência britânica. A ilha, por força da geografia, apresenta uma forma singular de mundividência. A insularidade é a sua expressão, que pode ser evidenciada na vida, histó- ria e mentalidade islenhas. A ilha é, também, um cadinho da tradição e cultura. O isolamento, definido pela linha de água do litoral, favorece a tradição e dá forma ao cadinho conservador e preservador.

No mundo insular atlântico, o arquipélago da Madeira assume uma posição particular, fruto da quase total ausência da dimensão arquipelágica. Na verdade, apenas duas ilhas mereceram ocupação humana, mas uma, o Porto Santo, pelas dificuldades de abastecimento de água não permitiu a definição de uma situação socioeconómica assente na complementaridade dos espaços. Enquanto nos Açores e Canárias, devido à existência de diversas ilhas, tivemos formas de exploração agrícola assente na complementaridade, no caso madeirense, esta deverá buscar-se dentro do espaço da ilha ou nos arquipélagos vizi- nhos.

A ocupação de um novo espaço obedece a determinados requisi- tos. Primeiro, deve propiciar condições para que sejam garantidas as condições de sobrevivência das populações. Assim, para além da disponibilidade de água, deve apresentar um solo adequado ao cultivo dos produtos básicos da subsistência que, no caso dos europeus do século XV, assentava nos cereais e na vinha. Estas exigências são ainda mais importantes quando se fala de ilhas isoladas no solo, onde as condições de acesso a outros espaços estão muito condicionadas por força do nível de desenvolvimento da navegação à vela. Nos primórdios da ocupação da ilha, dizia-se que esta permanecia isolada cerca de seis meses.

A vinha, os cereais e a cana-de-açúcar foram os elementos aglutinado- res da agricultura e ocupação dos madeirenses. Os dois primeiros garantiam as necessárias condições de subsistência e ritual cristão, enquanto o último ia ao encontro da ambição e voracidade mercantil da

burguesia europeia que transformou a Madeira no principal pilar para afirmação da economia atlântica e mundial. O processo foi irreversível, sucedendo uma catadupa de produtos ou serviços dominantes, com valor utilitário para a sociedade insular, ou com capacidade para ativar as trocas com o mercado externo. Se, na primeira fase, o domínio pertenceu à economia agrícola, na segunda, que se aproxima da nossa vivência, reparte-se entre serviços, indústrias artesanais (vimes e bor- dado) e, de novo, uma variedade de produtos agrícolas, como a vinha, a cana-de-açúcar, a banana e uma variedade produtos hortícolas e frutíco- las. O processo de implantação desta agricultura não foi pacífico, sendo feito de embates permanentes entre a necessária manutenção da subsistên- cia e a animação comercial com o exterior. Do afrontamento, resultou a afirmação de um produto. Foi nesta luta permanente entre produtos de subsistência familiar, local e insular e produtos impostos de fora, pela permanente demanda externa, que se alicerçou a economia da ilha, até ao limiar do século XIX.

A tradição agrícola europeia repercute-se, inevitavelmente na estru- tura agrária do Novo Mundo e, por consequência, está integrada no impacto ecológico que a expansão gerou no espaço atlântico. Da Europa saíram sementes, utensílios e homens que lançaram as bases da nova vivência insular e atlântica, mas também as principais solicitações e orientações para os produtos resultantes. A Europa contribuiu com os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana, enquanto da América e Índia aportaram ao velho continente o milho, o arroz, a batata, o inhame e uma variedade de produtos hortícolas e frutícolas. As ilhas atlânticas, pela posição charneira no relacionamento entre mundos, foram viveiros da aclimatação dos produtos às condições dos novos espa- ços de cultivo. A Madeira assumiu aqui uma posição importante, afir- mando-se, no século XV, como o viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo – os cereais, o pastel, a vinha e a cana-de-açúcar – e, depois, da riqueza e variedade dos produtos que o europeu viria a descobrir. Muitos entraram, desde muito cedo, na cadeia alimentar do madeirense, tornando-a mais variada e rica. O pala- dar do insular e, de forma especial, o do madeirense, estava disponível para a prova e aceitação de novos sabores.

Na Madeira, o processo de povoamento foi muito rápido, por força da inexistência de populações e da necessidade de ocupação deste

espaço para assegurar o controlo do espaço atlântico. Ao longo dos últimos quinhentos anos, a riqueza dos madeirenses foi gerada por força do seu esforço. Um solo de recursos limitados e de difícil domínio foi o pesado fardo no quotidiano que chegou até aos nossos dias. Por outro lado, o avanço do povoamento e da população conduziram a maiores problemas. Os recursos da terra, por serem mal distribuídos e limitados, não se ajustavam ao crescimento populacional, obrigando, desde o início, à abertura de válvulas de escape como a emigração, que funcionam, ao longo do tempo, nos diversos momentos de crise.

A crise do vinho colocou a necessidade de repensar os produtos dominantes e as formas de exploração económica. As autoridades foram determinadas no combate à tendência para uma exploração de monocul- tivo. A aposta estava num sistema de policultura em que se misturavam as de subsistência com aquelas que manifestavam valor mercantil. Deste modo, o momento da segunda metade da centúria oitocentista foi fértil na experimentação de uma diversidade de culturas com valor mercantil e da mercantilização de algumas atividades artesanais, como o bordado e obra de vimes. A par disso, desde o século XVI, vinha-se experimen- tando novas culturas e frutos com valor alimentar. A ilha foi um dos espaços privilegiados de adaptação dos produtos do Novo Mundo e os madeirenses rapidamente se habituaram aos novos sabores. Assim, de uma alimentação tradicional assente nos cereais avança-se rapidamente para outra, baseada em novos produtos, como a batata, o inhame e a farinha de milho. Tudo isto aconteceu, de uma forma clara, a partir do século XIX e consolidou-se nos primeiros decénios do seguinte.

A expansão europeia, que, desde o século XV, veio revolucionar o cardápio europeu, enriqueceu-se, aumentando a gama de produtos e condimentos. A tradição culinária europeia foi destronada pelo exo- tismo e novas sensações gustativas da descoberta de novos produtos e condimentos que acabaram por afeiçoar o paladar. Mas, até que isso se generalizasse, era necessário conduzir, aos locais mais recônditos, o cereal e o vinho. Assim, as embarcações que sulcavam o oceano leva- vam nos porões, para além das manufaturas e bugigangas aliciadoras das populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou biscoito. O cereal encontrou similar ou substituto, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecendo com o vinho, desconhecido e incapaz de se adaptar, em muitos casos, às novas condições mesológicas

oferecidas pelas colónias europeias. Desta forma, o vinho foi conduzido da Europa ou das ilhas, onde se afirma com esta finalidade, para prover os mais recônditos espaços em que se fixou o europeu. Era também inseparável companheiro dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores.

No imaginário histórico madeirense, paira sempre a visão da faina agrícola tripartida, assente no vinho e cereal, que a tradição impõe como necessários ao quotidiano da crença religiosa e dieta alimentar, e o açúcar, que se afirma como provento excedentário, capaz de atrair a atenção dos mercados europeus e de trazer à ilha as manufaturas de que necessitava. Esta harmónica trifuncionalidade produtiva condicionou a dependência do arquipélago às dinâmicas e diretrizes europeias, sujei- tando-se a sobressaltos que contribuíram para a desarticulação do quotidiano e economia madeirenses. Assim, a concorrência do açúcar americano lançou o pânico na ilha e obrigou à necessária afirmação da cultura da vinha, cujo produto, o vinho, se afirmou como moeda de troca para o mercado externo, capaz de substituir o açúcar.

No decorrer do processo, assiste-se a uma revolução humana e téc- nica. As condições do novo espaço favoreceram a transplantação das primeiras sementes, estando reservado ao Homem a mais espinhosa e hábil tarefa de tornar o solo produtivo. Primeiro, ergueram-se socalcos (poios), depois, adaptaram-se as técnicas e alfaias agrícolas aos condiciona- lismos do novo espaço cultivado. Hoje, a testemunhar tudo isso, temos os poios, ladeados de levadas, que podem ser considerados entre as principais realizações do Homem sobre a terra. A homenagem a este Homem em perfeita harmonia com a natureza deverá ser concedida ao cabouqueiro, colono que recebeu, das principais gentes da ilha, o encargo de valorizar economicamente as parcelas que tinha como benesse.

O processo económico, quando assume uma posição de sucesso, mercê da inserção no mercado mundial, provoca obrigatoriamente uma forma de exploração intensiva que conduz inevitavelmente ao desequilí- brio entre aquilo que o quadro natural possibilita e o que o Homem exige. Na Madeira, a exploração económica fez-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações do mercado exterior, o que contribuiu ainda mais para agravar o afrontamento entre o Homem e o quadro natural, arrastando os espaços para uma situação de total deterioração. O primeiro testemunho surge já, em meados do século XV, com Cada-

mosto: “As suas terras costumavam dar a princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia”. A situação resulta da solicitação para a explora- ção intensiva, por obrigação geral dos madeirenses em abastecer as cidades do Reino e praças africanas de cereal.

O cereal, que no início da ocupação do solo havia sido a cultura da prosperidade, rapidamente cedeu lugar aos canaviais, que, em pouco tempo, dominaram o espaço agrícola. A indústria para o fabrico do açúcar exigiu muito do quadro natural, lançando a ilha para um pro- cesso de desflorestação, de consequências imprevisíveis, e o solo agrí- cola para a quase total exaustão. A situação é testemunhada em 1689, por John Ovington:

A fertilidade da ilha decaiu muito relativamente ao período das primeiras culturas. A cultura sem descanso dos terrenos tornou os fra- cos espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de ficar de poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta como sinal de fertilidade futura, abandonam-nos, com estéreis. A aridez de muitas das suas ter- ras atribuem-na simploriamente ao aumento dos seus pecados.

No princípio da ocupação, as necessidades do cardápio e ritual cristãos comandaram a seleção das sementes que acompanharam os primeiros povoadores. Assim, o precioso cereal acompanhou os primei- ros cavalos de cepas peninsulares, no processo de transmigração. A fertilidade do solo, consequente do estado virgem e das cinzas fertilizado- ras resultantes das queimadas, fez elevar a produção a níveis inatingí- veis, criando excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa e praças do Norte de África. Até a década de 70 do século XV, a Madeira firmou-se como a posição de celeiro atlântico, perdendo-a, depois, em favor dos Açores, que emer- gem, com uma posição dominante na política e economia frumentárias do Atlântico. Na Madeira, inverteu-se a situação, passando a ilha de área de produção excedentária a uma posição de dependência dos celei- ros açoriano, canário e europeu. O estabelecimento de uma rota obrigató- ria do fornecimento de cereal açoriano à Madeira criou as condições necessárias à afirmação da cultura da cana sacarina, produto tão insistentemente solicitado no mercado europeu. O empenho do senho- rio da ilha, até 1495, e depois da Coroa, no novo produto, conduziu à

afirmação preferencial da nova vertente da economia atlântico-insular. A partir de então, os interesses mercantis passaram a dominar a dinâ- mica agrária madeirense. As searas deram lugar aos canaviais, enquanto as vinhas se mantiveram insistentemente numa posição de destaque.

Se o cereal pouco contribuía para aumentar os réditos dos interve- nientes, o mesmo não se poderá dizer em relação ao açúcar e vinho, que, a seu tempo, contribuíram para o enriquecimento das gentes da ilha. A própria Coroa e senhorio fizeram depender, desta fonte de receita, grande parte das despesas ordinárias com a administração das casas e o processo dos Descobrimentos. A par disso, o enobrecimento da vila, mais tarde cidade do Funchal, fez-se à custa dos dinheiros do açúcar. O Funchal avançou para poente e adquiriu fama em novos e potenciais mercados. Todavia, a opulência foi efémera, pois, a partir da terceira década do século XVI, o açúcar madeirense é destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo a preferência em favor das Canárias, São Tomé e Brasil, que aparecem com preços mais competitivos.

A persistência de alguns lavradores, a celebridade da superior qualidade e a solicitação pela doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura dos canaviais se mantivesse por largos anos, atin- gindo, em momentos de crise nos mercados americanos, alguma pujança. Contudo, como a cultura estava irremediavelmente condenada, o madei- rense foi forçado a canalizar todas as atenções para as vinhas, fazendo com que assumissem o espaço deixado pelos canaviais. Por mais de dois séculos, a vinha e o vinho foram os principais aglutinadores das ativida- des económicas da ilha, dando ao meio rural e urbano desusada anima- ção. O Funchal cresceu em monumentalidade e as principais famílias reforçaram a sua posição económica. A mudança abalou a estrutura produtiva. Assim, enquanto o açúcar definia apenas um complexo industrial – o engenho, onde decorria a respetiva safra –, o vinho necessitava de espaços distintos: o lagar, onde as uvas dão lugar ao saboroso mosto, e os armazéns da cidade, onde fermenta e é preparado para atingir o necessário aroma e bouquet exigidos pelo mercado. Deste modo, o agricultor, colono ou não, detém apenas o controlo da viticul- tura, ficando reservado ao mercador o processo de vinificação.

A conjuntura da primeira metade de oitocentos, demarcada pelos conflitos europeus, guerra de independência das colónias, associada aos

fatores de origem botânica (oídio - 1852 e filoxera - 1872), conduziu ao paulatino apagamento da pujança económica do vinho. Como corolário disto, sucederam-se fomes, nos anos 40, e a sangria emigratória, nas décadas de 50 e 80, para o continente americano, onde o madeirense foi substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de setenta anos, a confusão institucional e económica alargou-se ao domínio social e alimentar. Assim, sucederam-se novos produtos de importação do Novo Mundo que ganharam uma posição de relevo na culinária madei- rense, como foi o caso do inhame e batata. Por outro lado, definiram-se políticas de reconversão e ensaio de novos produtos com valor comer- cial, como foi o caso do tabaco e do chá. A emigração oitocentista e no período pós-Segunda Guerra Mundial foi responsável por um acen- tuado processo de desertificação da ilha, arrastando muitas terras para o abandono. Foi o início de um pousio para as terras, já de si esgotada com a exploração intensiva das culturas de subsistência e exportação. As políticas de reflorestação permitiram o aumento da mancha florestal, sem conflito com a atividade agrícola.

Em pleno apogeu da indústria vinhateira, tivemos a afirmação de um novo setor de serviços. Na segunda metade do século XVIII, a ilha assumiu outro papel, com espaço de acolhimento de doentes. A Europa oferecia ao aristocrata britânico demasiados motivos para o grand tour cultural, mas as ilhas ofereciam a amenidade do seu clima e ambientes paradisíacos, num retorno implícito ao paraíso perdido. O turismo começou, assim, a dar os primeiros passos na segunda metade do século XVIII, mas foi a partir de finais da centúria seguinte que se consolidou como setor de serviços na sociedade funchalense. No século XX, as duas guerras mundiais provocaram uma paragem, para depois se afir- mar, em plenitude, a partir da década de 70, consolidando-se como o setor mais importante da vida económica madeirense.

A situação com se depara a agricultura madeirense, na segunda metade do século XIX, pode ser entendida como o início do processo de transformação que irá marcar a vida do mundo rural. A transformação política, a partir de 1820, conduziu à desestruturação do mundo rural, acabando com algumas situações que marcavam o dia-a-dia do campo. Acabaram-se os senhorios, mas persistiu o contrato de colónia. A crise do vinho obrigou a repensar a forma de aproveitamento do solo, aca- bando-se, definitivamente, com a tendência para a aposta preferencial